Detonautas
Foto por Bruno Kaiuca

Com mais de duas décadas de carreira, o Detonautas já é certamente um sinônimo do Rock nacional e resolveu usar essa sua posição em 2021 para protestar — e o fez através do recém-chegado Álbum Laranja, o sétimo disco de estúdio do grupo e sucessor de VI (2017).

O próprio título já mostra que a intenção é abordar todos os escândalos políticos que vêm tomando conta do país nos últimos tempos, como as acusações de “rachadinha” e tantas outras que permeiam o governo de Jair Bolsonaro no Brasil. Esse ciclo ganhou bastante notoriedade justamente depois do single “Micheque”, que faz referência à primeira-dama.

A partir de então, as letras de Tico Santa Cruz partiram para todos os lados. E isso é verdade também para o instrumental do grupo, que vai do Punk Rock raiz até uma mistura com ritmos brasileiros e passeia ainda por sonoridades acústicas e batidas eletrônicas.

O novo trabalho já é um sucesso — acumulou mais de 3 milhões de streams em pouco tempo após o lançamento — e nós tivemos o prazer de bater um papo sensacional com Tico sobre todo esse momento da banda e o processo de composição do Álbum Laranja.

Confira abaixo!

TMDQA! Entrevista Tico Santa Cruz

TMDQA!: Opa, Tico! Tudo certo por aí? Como estão as coisas?

Tico Santa Cruz: Fala, cara! Estamos aí, sobrevivendo.

TMDQA!: Todos nós. [risos] Cara, queria primeiramente te parabenizar pelo disco novo, que tá muito legal. Falo isso como alguém que acompanha o Detonautas desde o começo e, pra mim pelo menos, esse álbum soa de certa forma como se vocês estivessem resgatando as raízes, até mesmo na mensagem social que vocês sempre tiveram, essa pegada meio Punk, diretassa. Foi algo que vocês buscaram mesmo, voltar pra essa coisa mais direta, mais na cara?

Tico: Cara, eu acho que foi uma construção ao longo desse período de pandemia. A gente experimentou uma fase que a gente não tinha há muito tempo, que é o tempo pra poder compor, pra poder parar, pra poder pensar e tal. A nossa vida sempre foi muito corrida por conta dos shows e de tudo que a gente já vem fazendo há algum tempo, e acho que nesse momento a gente conseguiu — quer dizer, por conta de um triste momento, eu tive um pouco mais de tempo pra poder escrever, pra poder pensar, pra poder realizar algumas questões e até pra poder traduzir algumas questões que já estavam na nossa cabeça e que talvez a gente não tivesse conseguido traduzir em outros momentos.

Então, eu acho que a pandemia traz essa parada, vamos dizer assim, esse momento em que a gente tem que parar pra poder repensar a vida e repensar tudo, e trouxe também essa questão da gente conseguir compor e fazer uma obra que está muito correlacionada com o momento que a gente tá vivendo, com esse momento.

TMDQA!: Pode crer. E falando do instrumental, eu senti que tem muita variação — tem coisa mais eletrônica ali, tipo a cover do Gabriel, e umas coisas bem Punk, bem raiz também. Como vocês foram decidindo pra onde ia cada música? Vocês foram brincando com cada uma?

Tico: Não, foi um processo muito natural. A “Carta ao Futuro”, por exemplo, eu fiz ela no violão e aí tipo, postei no Facebook e a galera curtiu muito, teve muitas reações e muitos compartilhamentos, a galera falando, “Pô, tem que gravar essa música, tem que gravar essa música”. Só que a gente estava no processo de composição de um outro disco, que está inédito ainda e não tinha nada a ver com política, não tinha nada a ver com nada e tal. Tinha a ver com aqueles primeiros meses de pandemia ali, aquela coisa da angústia, da vulnerabilidade, etc., e a gente parou, interrompeu esse outro disco e foi produzir essa música, “Carta ao Futuro”, que ficou muito legal, a forma como a gente construiu ela.

E aí a gente resolveu lançar, né. Quando a gente resolveu lançar, a gente percebeu que a galera ia curtir — porque a gente lançou o primeiro single ali no início da pandemia que era o “Fica Bem” e deu tipo, sei lá, 50 mil visualizações e “Carta ao Futuro” passou de 500 mil, né.

Aí a partir daí a gente entendeu que existia um caminho pra se falar a respeito de questões sociais e políticas que tava vazio, que não tinha ninguém fazendo no Rock, pelo menos no mainstream, né. E aí a gente resolveu ir seguindo, intuitivamente, com os elementos que estavam acontecendo dentro do país, ir construindo músicas que retratavam esses momentos que a gente estava vendo.

TMDQA!: E justamente outro ponto de virada desse disco foi a “Micheque”, que viralizou pesado e chegou até ao Top Viral do Spotify. Acabou de certa forma dando o tom pro disco? Foi aí que vocês pensaram, “Putz, é isso mesmo” ou foi já com “Carta ao Futuro”?

Tico: No “Carta ao Futuro” a gente percebeu que existia esse diálogo, vamos dizer assim. E aí quando a gente vai pra “Micheque” a gente não tinha a menor ideia do que poderia acontecer. E aí quando a gente lança a “Micheque” e a música pega, porque é uma zoação e tal, uma coisa meio sarcástica, meio irônica, e a galera gosta de humor, e a primeira dama vai até a delegacia pra denunciar os artistas — não só o Detonautas mas vários artistas — ela potencializa a música, né. E aí viraliza o Detonautas, vai parar em quarto lugar lá no Spotify Viral e aí chama atenção pra banda; e aí, uma vez chamada atenção pra banda que já tinha feito a “Carta ao Futuro”, que já tinha feito “Micheque”, a gente falou, “Bom, vamos seguir por aqui porque a gente consegue retratar o que está acontecendo no país através da música e vamos falando dos assuntos que estão em pauta agora”.

A música a seguir é “Mala Cheia”, que fala dessa coisa do fundamentalismo, dos caras sequestrarem a religião pra ganhar dinheiro, pra fazer política, é o que na Bíblia a gente chama de fariseu, né.

TMDQA!: Aí engatou de vez, né.

Tico: É, aí a gente foi seguindo. Seguindo o fluxo da nossa produção; depois foi “Kit Gay”, foi “Político de Estimação”, aí a gente pegou o ritmo da parada, entendeu? Porque aí também quando você entra no ritmo da parada, entra no mood do que você está escrevendo, as músicas começam a vir, sacou?

O desabafo do Detonautas

TMDQA!: Sim! E todas essas músicas, principalmente essas que vieram depois de “Micheque”, são bem intensas. Acima de tudo é um desabafo, né? Algo que estava precisando sair há algum tempo, precisava ser falado.

Tico: É, porque na real assim, isso aí tudo já estava engasgado há muito tempo né, cara. Eu estou já nesse front há muitos anos, entendeu? Só que tem vezes que você fica engasgado e não consegue colocar no papel, não consegue colocar em forma de melodia, e aí de repente você abre um canal que começa a te dar essa fluidez em relação à composição e etc..

Então eu acho que é óbvio que o resultado nos importa, que a gente vê que aquilo que a gente está escrevendo está chegando no público e está somando pras pessoas, e eu não estou nem falando da parte financeira, porque financeiramente a gente não teve ganho nenhum com isso, mas a gente teve um ganho que foi um ganho de conceito, o que eu acho que é muito importante para uma banda como o Detonautas.

Porque o Detonautas sofre muito com muitos estigmas, por conta das minhas posições. Acaba refletindo na banda, então tem uma má vontade de alguns setores do Rock com o Detonautas, até de alguns contratantes, de algumas pessoas e etc., e aí quando, porra, você consegue atravessar essa barreira e chegar nas pessoas, isso dá uma certa satisfação de você falar, “Putz, consegui ser entendido, consegui que vocês compreendam o que eu sempre quis dizer e que talvez eu não estava sabendo dizer”.

TMDQA!: É bem notável mesmo que a percepção do público de vocês mudou bastante com essas novas músicas! Falando nelas, uma das que mais me chamou atenção foi “Bandeira Brasileira”, que eu achei uma grata surpresa na versão cheia do disco agora. Foi minha preferida e achei bem curioso ela usar esse ritmo bem brasileiro, justamente em uma música que fala sobre o falso patriotismo e essa coisa que vemos tanto diariamente. Você pode falar um pouco mais sobre ela? Como ela surgiu, como veio a ideia de usar esse ritmo mais brasileiro?

Tico: Cara, legal você estar falando isso porque eu hoje fiz uma agenda de entrevistas e estou impressionado com como a galera gostou de “Bandeira Brasileira”, que os jornalistas gostaram, essa galera que está fazendo essas entrevistas comigo. Porque essa música é de 2010, cara, e a gente teve uma dificuldade enorme de criar uma roupagem pra ela porque ela é uma música que tem essa coisa dos ritmos brasileiros e a gente não estava conseguindo encaixar um formato pra ela, sabe?

A gente tinha tentado colocá-la no álbum A Saga Continua e não tinha conseguido, e ela ficou meio que abandonada. E aí quando foi agora eu peguei de novo e refiz a letra, reescrevi a letra pra poder atualizar porque de 2010 pra cá muita coisa mudou, e aí a gente conseguiu fazer um arranjo que contemplasse essa mistura, essa pluralidade da cultura brasileira dentro da música. Eu estou me surpreendendo muito com a galera que está falando dela, porque é aquela música que você deixa na gaveta ali e que, tipo, você não dá nada pra ela, a gente que está há muito tempo batalhando pra fazer essa música e nunca conseguiu colocar em prática.

Quando eu for conversar com a galera da banda eu vou falar, “Cara, a galera que tem feito as entrevistas tem falado muito de ‘Bandeira Brasileira’”. E pra mim é o maior astral, assim, porque ela reflete mesmo essa diversidade que a gente tentou colocar — rítmica e até da própria letra, na música. Então acho que vai ser uma surpresa boa também pros ouvintes quando tiverem a oportunidade.

TMDQA!: Boto fé, concordo! Outro destaque pra mim do disco é a versão de “Racismo É Burrice”, do Gabriel O Pensador, porque vai bem nisso que você falou de algo que foi atualizado — ainda que, infelizmente, a letra original continue bem atual. É bem legal também a inserção dos seus discursos na música, e parece uma conversa bem direta com o ouvinte, como se você estivesse tentando mostrar que todo mundo pode aprender tudo que você aprendeu com relação a esse tema.

Tico: Cara, essa questão do racismo é uma questão que faz parte da minha vida desde os meus doze anos. Porque eu cresci em uma família muito racista que… enfim, por conta obviamente dessa coisa do racismo estrutural, que está inserido dentro da nossa sociedade de uma maneira muito encruada, e de certa forma eu cresci ouvindo as pessoas falando que preto era bandido e coisas muito racistas dentro desse universo da classe média-alta carioca e brasileira.

Eu acabei conhecendo uma pessoa muito importante pra minha vida quando eu tinha 12 anos, em um clube de hipismo — porque eu fazia hipismo, que é um esporte de elite —, que era o único preto que tinha dentro do clube. E em uma ocasião que a gente estava jogando futebol, a bola desapareceu e eu acusei ele de ser o ladrão da bola por causa daquilo que eu ouvia quando era criança — que preto era bandido, que preto era ladrão. Então, sumiu a bola, só quem pode ter roubado é o preto. Então, tipo, eu briguei com esse cara, a gente teve um problema grave, tipo uma porradaria, foi uma parada horrível. E depois eu achei a bola e vi que não tinha sido ele, e aí eu me desculpei com ele e acabamos nos tornando grandes amigos.

E essa pessoa se tornou uma pessoa muito fundamental na minha vida, porque em um dado momento quando a minha família se desfaz — meus pais se separam e eu tenho um problema familiar muito grave — é a família dele que me acolhe. Então, eu vivenciei com ele a experiência da adolescência inteira, porque ele era um preto de classe média, e era raro você ter um preto de classe média. A gente estudou na mesma escola, andava junto pra cima e pra baixo, então ele tratava muito dessa questão do racismo porque ele sentia muito na pele essa questão do racismo. Ele falava sobre isso, então é um tema que já está aí dentro do meu círculo de conversas há muitos anos.

Obviamente, depois com a vida a gente foi cada um pra um lugar e ele hoje em dia é instrutor de tiro, é um cara que trabalha como agente penitenciário e tal, mas é um cara extremamente consciente do lugar dele e da questão toda relacionada à opressão que o povo preto sofre e etc., e tudo isso permeou muito a minha adolescência e a minha idade adulta. E à medida em que eu fui aprendendo, a pauta também foi evoluindo para a questão do racismo estrutural que não era muito debatido naquela época.

Hoje, a gente [tem] a Djamila [Ribeiro], tem o Silvio Luiz de Almeida, a Katiúscia [Ribeiro], o Preto Zezé e mais um monte de outros intelectuais negros que estão debatendo sobre essa questão. Então, quando a gente tem acesso a esse conhecimento e faz esse exercício, do “Peraí, olha só, dá um chega ali cara no restaurante e dá uma olhada em quem está te servindo e quem está comendo”… isso é um exercício que é um exercício básico pra você entender a estrutura do racismo.

Então, eu entendi que nessa música dava pra pontuar entre os intervalos — já que eu não estava fazendo o refrão, porque o refrão da música era o instrumental da música, que era um instrumental muito conhecido e que a gente mudou, eu aproveitei para colocar essas pontuações. E acho que essas pontuações são pertinentes porque elas atentam para pessoas que estão inseridas dentro dessa estrutura racista e que às vezes nem têm consciência disso, entendeu?

“Quem é o Tico Santa Cruz?”

TMDQA!: Entendo demais. E já emendando com um outro assunto, eu descobri quando ouvi o podcast que você fez com o TMDQA! que você estudou Sociologia, né? E eu achei muito doido porque você é uma das pessoas mais questionadas, tipo, “Quem é o Tico pra falar de política?”, essas coisas assim. Às vezes dá uma coceirinha pra responder esses comentários dizendo que você sabe do que tá falando, que você estudou isso e ainda está estudando?

Tico: Na verdade, assim, eu entrei na UFRJ em 1997 e saí da UFRJ no meio de 1998, porque a gente estava vivendo uma fase no Brasil de destruição do ensino público nesse período. Tinha muita greve, muito problema, e eu queria ser cientista político porque eu queria fazer jornalismo na área de política. Então, a minha ideia era obviamente estudar Ciências Sociais porque, dentro das Ciências Sociais, você tem Antropologia, Sociologia e Ciências Políticas que você escolhe a partir do quarto período pra onde você vai se aprofundar.

E eu acabei não me formando, mas ao longo desse período todo eu sempre estive conectado com livros, com professores, com grupos de estudo que me deram, obviamente, capacidade e condição de poder aprender e ter conhecimento. Só que de 2014 até agora, cara, eu praticamente fiz uma pós-graduação em política.

Porque no momento em que eu me inseri no momento — na época, do levante contra o impeachment da Dilma — eu vivi 24 horas do meu dia a questão institucional da política e o jogo do xadrez político por dentro na prática, não na teoria. Uma coisa é você pegar a teoria política e você vai ler ali, sei lá, Sérgio Buarque de Holanda ou então até os mais clássicos mesmo, Darcy Ribeiro, “O Povo Brasileiro”, enfim, os livros que já estão ali mais basicamente. Outra coisa é você viver a parada no dia, sacou? Vendo o que está acontecendo, olhando os movimentos que são feitos nos bastidores, etc..

Eu acho que a grande maioria das pessoas que discutem política no Brasil sequer sabem o que que é o conceito político, do ponto de vista do conceito mesmo — o que que é direita, o que é esquerda, o que é centro, o que é liberalismo, o que é socialismo, o que é comunismo. Então, assim, o que eu tenho tentado fazer hoje, obviamente além de continuar estudando, porque eu continuo estudando até hoje — eu até tentei voltar agora pra faculdade, a UFRJ até abriu um processo interno pra eu tentar fazer o retorno pra faculdade, mas eu não sei se vou conseguir por causa do tempo, mas o conteúdo que eu absorvi ao longo de todos esses anos é um conteúdo que eu gosto.

Quando a gente gosta de música, quando a gente gosta de tecnologia, quando a gente gosta de política ou gosta de futebol, a gente se aprofunda naquilo que a gente gosta. Então, eu acho que as pessoas confundem muito, elas têm muitos estereótipos, entendeu? Elas olham pra mim, “Olha, o cara todo tatuado, roqueiro, blá blá blá”, elas têm o estereótipo de que o tipo de pessoa que eu sou não condiz com o tipo de conteúdo que eu tenho.

E aí eu acho engraçado, porque na verdade, tipo, eu estou debatendo política desde 2014 dentro de universidade, cara. Se eu não tivesse competência pra fazer isso, eu já teria sido desmascarado; já teria vídeo meu sendo desmascarado, ridicularizado em público. Porque quem ia perder a oportunidade de pegar uma pessoa pública como eu e me colocar em uma posição de otário dentro de um debate público como a gente vê sistematicamente os bolsonaristas sendo colocados, entendeu?

TMDQA!: É curioso porque, guardadas as devidas proporções, eu entendo o sentimento. Antes de vir pro jornalismo, eu estudei economia e é bem claro como boa parte das pessoas se afunda na própria ignorância — em especial as que têm acesso à educação — em relação a esses temas que você mencionou pra validar seus pontos, e acaba virando isso que você falou, são pessoas que sistematicamente se colocam nessa posição.

Tico: É, porque na verdade eles se apropriaram de um discurso que não tem nenhuma profundidade. Eles são formados por memes, entendeu? Então se você quiser aprofundar um pouquinho mais, mesmo esses autores aí, tipo o Rodrigo Constantino que adora citar “Ah, não sei quem, a escola de Chicago” e os caralho, o cara não entende porra nenhuma, bicho! Porque na verdade quem usa muito esses caras para se defender só tá usando isso como escudo, a teoria ou a prática mesmo o cara entende pouco. Ele só repete.

Então quando ele se pega em uma posição onde não está prevista alguma coisa que está escrita no livro ele não consegue desenvolver, entendeu? E isso você vai ter prática quando você vai estar no embate, e esses caras não estão no embate, os caras estão reproduzindo meme, reproduzindo discursos prontos.

TMDQA!: Voltando no podcast com o TMDQA!, você estava lá junto com o Pe Lu e a gente fez uma matéria pra destacar o que vocês falaram sobre o Rock atualmente, e a gente obviamente fez na maior boa intenção. Mas acabou rolando uma repercussão bem negativa, e eu achei curioso porque era exatamente o que vocês falavam por lá sobre a posição antiquada do Rock. Um monte de gente falando, “Ah, quem são Tico e Pe Lu pra falar de Rock?” e coisa assim. Não sei se você viu isso, mas acha que é exatamente por isso que o tal do “roqueiro reaça” tá vendo o Rock se afundar e perder espaço?

Tico: É porque na real, sabe o que acontece? “Quem é Tico Santa Cruz e Pe Lu pra falar de Rock?”. Porra, o Tico Santa Cruz é um cara que vive há 23 anos de Rock.

TMDQA!: [risos] Exato.

Tico: [risos] Então, tipo assim, quem são essas pessoas que estão falando, o que essas pessoas têm de experiência e de vivência pra falar sobre Rock, na verdade? Se a gente for colocar nesse caráter de relativização, quem é mais o quê, quem é o quê, quem dá carteirada, a gente não avança pra lugar nenhum. A internet é esse campo onde as pessoas ficam fazendo perguntas sem efetivamente terem nenhum tipo de experiência.

O Einstein diz uma coisa que é o seguinte: você só é profissional em alguma coisa de verdade depois de 10 anos praticando diariamente a sua profissão. Aí você pode se considerar profissional. Mesmo as pessoas que estão ali trabalhando, todo dia, antes desse período todo ainda têm coisas a amadurecer; quando você passa de 10 anos de prática, você começa a ver coisas que você fazia — até de boa intenção ou até mesmo de forma eficiente em outros momentos — que você tem já a capacidade de conduzir de maneira profissional.

Então, porra bicho, eu tenho 23 anos de estrada. O moleque tá ouvindo música dentro da casa dele e vai questionar quem sou eu e quem é o Pe Lu pra falar de Rock? É o mesmo moleque que vai escrever lá qualquer coisa a respeito de qualquer tema e provavelmente ter uma profissão que ele nem teve 10 anos ainda pra dizer que ele é profissional no que ele faz.

E a repercussão negativa pra mim é muito relativa. Porque eu acho que quando você tem uma pauta sendo debatida, mesmo que essas pessoas entrem pra falar mal, muitas vezes a gente consegue reverter pessoas que estão ali e que teoricamente tinham uma visão deturpada — como eu mesmo tinha uma visão deturpada do Pe Lu e que trouxe pra mim uma perspectiva muito mais interessante de quem ele é, do que ele representa, qual tipo de diálogo que ele tem, da profundidade que ele sustenta. Então, pra mim, vale muito quando você descobre uma pessoa contra a qual você mesmo tinha um preconceito.

Eu acho que independentemente da repercussão pro público, o que eu ganhei com essa entrevista, de conhecer uma pessoa legal e de estar junto com vocês nessa atmosfera, pra mim já valeu o bate-papo, já valeu a experiência e já valeu o que a gente vai poder fazer pro futuro em relação a isso.

TMDQA!: Gostei! [risos] Voltando um pouco no que você falou do Detonautas estar ocupando um espaço que ninguém estava ocupado no mainstream do Rock brasileiro, a gente tem uma geração muito boa mais no underground que a mesma galera que critica o Rock atual fecha os olhos pra essas bandas. Você enxerga o Detonautas hoje como uma liderança pra essas bandas, a voz dessa galera no mainstream? E você acompanha essas bandas, pensa em — no futuro, claro — de repente montar uma turnê com umas bandas que estão nessa pegada?

Tico: Cara, o que eu tenho feito por enquanto nesse momento de pandemia é que tenho gravado com algumas bandas. Esses dias eu ouvi uma parada muito legal com o Meu Funeral com a Tati Quebra Barraco. Eu acho legal pra caralho quando alguém ousa, alguém sai do lugar comum. O Rock me incomoda um pouco, porque fica sempre no mesmo lugar por medo da reação, do que a galera vai falar e blá blá blá.

Então, por exemplo, o Meu Funeral quando entra com essa coisa da Tati Quebra Barraco, quebra o paradigma, o que eu acho que é muito relevante. Quando você pega por exemplo o Francisco, El Hombre, a gente já tocou várias vezes com eles em vários lugares; o show dos caras é poderoso pra caralho, sacou? E os caras são super criativos, misturam Rock com outros gêneros, gêneros latinos.

Eu acho que esse caminho pro Rock é um caminho interessante. O Jonnata Doll [e os Garotos Solventes] lá de Fortaleza é outra banda que me chamou bastante atenção, eu estou fazendo um trabalho agora com o Marcus Menna, que é um cara que porra, sofreu aquela situação toda na época do LS Jack e está aí tentando se reerguer e fazendo um trabalho bonito com pessoas que também não estão dentro do gênero do Rock, fui convidado pelo Unabomber agora para fazer uma música com eles e vou fazer…

Eu acho que a forma que a gente tem de dar visibilidade, além de chamar pra fazer show depois da pandemia que é importante, é você também estar junto dos caras pra fazer os feats, pra fazer música, pra compor uma cena, entendeu? E isso eu tenho feito porque eu sempre me coloquei à disposição pra fazer, mas talvez as pessoas não me procurassem antes e agora as pessoas me procuram. Eu estou totalmente disponível pro que eu gosto — também não vou entrar em qualquer projeto — pra poder fazer parcerias.

Então tem bandas, por exemplo como o Maglore, que eu adoro, escuto há muitos anos. Selvagens à Procura de Lei, eu acho do caralho. Tem a Anacrônica lá de Curitiba que eu já fiz feat com os caras, já toquei com os caras. Tem a Venosa, que é de Uberlândia, uma banda que eu também já fiz feat. Então, assim, se procurar direitinho, a gente vai ver que o Detonautas sempre esteve junto, sempre deu suporte pra essa galera.

ConeCrew, por exemplo. Os primeiros shows que a ConeCrew abriu aqui no Rio de Janeiro foram do Detonautas, eu convidei os caras pra abrir. Só que essa busca não é feita, e a gente não gosta de ficar ostentando como se a gente fosse alguma liderança, “Ah, vou por aqui, vou por ali”. Eu não gosto muito desse papel, sabe. Acho que se for acontecer um papel nesse sentido ele tem que ser natural, as pessoas têm que olhar e falar, “Pô, eu acho que é legal o que o Detonautas está fazendo e vamos reconhecer isso”, sabe. Não porque eu estou me colocando como tal. Talvez por isso também que não aconteça muito — eu não me coloco, o Detonautas não se coloca como líder de nada, a gente faz o nosso trabalho e se porventura a galera reconhecer e achar legal e quiser colar junto, a gente está junto, cara.

TMDQA!: Legal demais. Tico, pra finalizar, esse é o primeiro disco do Detonautas depois da saída do Cléston, que obviamente era uma parte importante da banda e virou também uma grande figura da música brasileira, até por conta do Rockgol e tudo mais. Como foi esse processo pra vocês, da saída dele e de trabalhar pela primeira vez sem ele?

Tico: Cara, a escolha do Cléston foi muito particular dele. A gente, pelo amor que tem com o Cléston e pelo carinho que a gente tem, ainda tentou fazer obviamente com que ele mudasse de ideia e enfim, tentasse entender que dava pra ele conciliar essa parte espiritual pra onde ele caminhou e ao mesmo tempo conseguisse fazer música com o Detonautas.

Mas eu acho que tem certas coisas que realmente são incompatíveis dentro da cabeça das pessoas, e o Cléston é uma figura muito emblemática como ser humano. Eu tenho um amor tão profundo pelo Cléston, ele é uma pessoa tão importante pra mim que eu jamais iria contra a ideia dele de não misturar as coisas. Se ele acha de fato que não dá pra fazer as duas coisas, cabe a mim só respeitá-lo. Eu não tenho como obrigá-lo, não tenho como tentar convencê-lo. Se eu fizesse isso eu estaria tentando me privilegiar para ter a companhia dele, e eu tenho que olhar pra ele e pensar, “Pô, o cara tem uma missão ali que ele descobriu e que é direito dele seguir na missão”.

Então, é isso. A gente tentou de todas as formas manter o Cléston na banda mas ele não quis por uma questão espiritual que ele identificou no comportamento dele, nas coisas que ele descobriu durante a pandemia, e só cabe à gente dar suporte pra ele e respeitar. Se em algum outro momento da vida ele mudar de ideia e voltar atrás, o Cléston vai ter sempre as portas abertas no Detonautas porque a gente tem uma admiração e um respeito muito grande pela figura dele. Não foi uma coisa bélica, de confronto, de estresse, nada disso. Foi uma escolha individual dele e que, enfim, só cabe a nós respeitar mesmo e seguir fazendo o que cada um acredita. E o caminho espiritual dele é muito nobre também.

TMDQA!: Entendi. Tico, muito obrigado pelo papo, foi sensacional! Espero que possamos nos falar de novo mais pra frente e, novamente, parabéns pelo disco. Até a próxima!

Tico: Cara, eu que agradeço. Adoro a página, adoro o conteúdo de vocês. Sempre que precisarem, contem comigo e com o Detonautas. Falou!

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