Tagua Tagua
Foto: Guillermo Calvin

Mudar, muitas vezes, é um processo complicado. Exige maturidade, compreensão e superação. Baseia-se principalmente na ideia de atribuir um novo significado a algo ou alguém. Mas ninguém disse que é um caminho fácil a ser percorrido. Essa transformação precisa ser feita aos poucos. Em um dia, algo é inteiro. Em outro, torna-se metade, e por aí vai.

É exatamente esse o trajeto percorrido pelo músico Felipe Puperi no disco de estreia de seu mais recente projeto Tagua Tagua. Inteiro Metade, sucessor dos EPs Tombamento Inevitável (2017) e Pedaço Vivo (2018), é sobre ressignificar pessoas, espaços e memórias. A interessante jornada contempla grande variedade de sentimentos e momentos até sua conclusão: euforia, alegria, gratidão, saudade, tristeza, luto…

O processo descrito pelas letras, por sinal, conversa com a identidade instrumental alcançada pelo disco. Timbres eletrônicos e orgânicos, misturados, ganham novos contornos e significados neste trabalho aprovado pela Natura Musical. Beats, metais, guitarra e sintetizadores se organizam de forma a elucidar os sentimentos descritos em cada faixa. Vai da inquietude de “Mesmo Lugar” (“ele vem, dá volta e volta pro mesmo lugar”) à aceitação definitiva de “Do Mundo” (“vem, me abraça e me envolve nos teus sinais, que agora eu sou o mundo”).

 

Da Wannabe Jalva ao projeto Tagua Tagua: a procura pela identidade

Felipe não é nome novo na cena e Inteiro Metade não surgiu do nada. Tudo foi resultado de um grande processo de aprendizagem e desenvolvimento de uma sonoridade singular. Antes, ele integrava a banda gaúcha Wannabe Jalva, que fez barulho tanto aqui quanto lá fora.

Sobre esse desenvolvimento peculiar, que deu vida a uma sonoridade e a uma identidade visual própria, Felipe bateu um papo com o TMDQA!. A informativa conversa também passeou por temas como pandemia, processos de composição e a relação musical entre Brasil e Portugal.

Confira na íntegra a entrevista, logo após a bela capa assinada por João Lauro Fonte:

Capa de "Inteiro Metade" (Tagua Tagua)
Foto: Divulgação

TMDQA!: Como foi essa transição do seu papel no Wannabe Jalva para o projeto Tagua Tagua?

Felipe Puperi: Foi um processo bem longo. Não aconteceu de um dia para o outro. Fui sentindo essa necessidade, enquanto ainda integrava o Wannabe Jalva, de criar outras ideias e soluções sonoras, coisas que tivessem mais a minha cara. Não é que o Wannabe Jalva não tivesse a minha cara, mas eu procurava uma identidade mais própria em que eu pudesse botar todas as minhas ideias e realmente fazer as coisas como eu imaginava. Em uma banda, é sempre uma coisa mais compartilhada, com a opinião de todo mundo sendo muito relevante. Eu estava sentindo a necessidade de me expressar de outra maneira, de fazer algo um pouco mais autoral e mais próprio.

Também tinha a questão da língua. A Wannabe Jalva é uma banda que cantava muito em inglês e eu estava sentindo uma necessidade de me expressar em português, não que não desse para fazer isso na Wannabe Jalva. Fui fazendo tantos estudos em relação a isso que fui desenvolvendo basicamente um projeto novo. Inclusive, a última música da banda, que se chama “Mareá”, já era em português, muito perto das ideias que eu estava desenvolvendo. Eu poderia dizer que ela é a ponte entre a banda e o meu projeto. A própria forma de cantar português já cria uma nova visão sobre a música, né?

TMDQA!: Naquela época, você já estava matutando na cabeça o que viria a ser o Tagua Tagua?

Felipe: Sim! A gente lançou essa canção em parceria com a Red Bull e gravamos no estúdio deles em São Paulo. Chamamos o Curumin para participar. Essa música ficou guardada por um tempo. Nesse período, comecei a explorar e gravar muito na minha casa em Porto Alegre. Já estava virando a chave para outro lugar. Quando chegou o momento de lançar “Mareá”, eu já estava com a cabeça no Tagua Tagua, mas a gente tinha assumido esse compromisso de lançar essa música e fizer isso acontecer da melhor maneira possível. Por isso, digo que representou um período de transição para mim.

 

“O projeto se tornou algo mais aberto”

TMDQA!: A identidade visual mudou bastante desde o EP “Pedaço Vivo”. Após uma capa mais monocromática, focada na escala de preto-e-branco, o novo disco conta com uma identidade visual bastante colorida e plural, construída a partir de uma espécie de colagem. Como isso se deu e o que essa explosão de cores significa?

Felipe: É bem interessante falar sobre isso, porque foi uma coisa que fui mudando ao longo do processo. Fui criando novas formas de enxergar o próprio projeto. São três anos de processo basicamente, já que o primeiro EP [Tombamento Inevitável] foi lançado no final de 2017. Teve um processo de amadurecimento: fui entendendo o que eu queria dizer e como eu queria dizer. É claro que eu já comecei sabendo muita coisa, por conta da minha bagagem. Ainda assim, todo projeto é uma descoberta até a gente aprender a se sentir confortável nas músicas, descobrindo o timbre ideal e o que faria com que eu me sentisse mais confortável ao vivo. Foi tudo uma descoberta.

Essa coisa das cores tem uma virada de chave. Acho que foi justamente no Pedaço Vivo. A partir dele, o projeto se tornou algo mais aberto, mais vivo. Me parece que eu me tornei uma pessoa mais versátil. Minhas letras acabam indo para um lugar mais melancólico por causa dos temas mais introspectivos que abordo. De toda forma, acho que, em Inteiro Metade, fica muito claro que existe muita vida nisso. Ele é mais para cima, contando com temáticas mais complexas e alegres, mas possui várias nuances. Muito dessa coisa da cor já está presente em “Peixe Voador”, que também é uma música super viva.

TMDQA!: Por falar em “Peixe Voador”, ela acabou não entrando na seleção de faixas do disco, apesar de ter a mesma ideia “colorida” das novidades. Por que essa canção ficou de fora?

Felipe: É uma música um pouco mais antiga. Tal qual a “2016”, que é a faixa mais antiga do Inteiro Metade, essa música foi gravada em 2016. Eu não conseguia encontrar muito lugar para ela dentro do contexto do disco. Ela parecia fazer parte do passado, fazendo mais sentido numa linguagem como “Do Sufuco”, que abre o Tombamento Inevitável. Eu tinha até dúvidas se eu lançaria ou não esta músicas, mas, como ela entrou na trilha sonora do FIFA, eu acabei lançando.

 

“Não soar muito parecido com nada específico”

TMDQA!: Na minha opinião, o som do Tagua Tagua é um ótimo exemplo de uma nova forma de cultivar a cultura antropofágica brasileira. Considero uma espécie de “futurismo tropical”. Além dos elementos eletrônicos, a gente consegue pescar elementos que nos lembram do trabalho de grandes nomes da MPB. Como foi desenvolver isso?

Felipe: Eu concordo contigo. Gosto muito dessa mistura. Eu tenho falado bastante justamente isso: que faz parte de um certo interesse em buscar uma sonoridade própria. Essa mistura toda acaba vindo dessa necessidade, de não soar muito parecido com nada específico. Eu tenho um certo pânico de soar parecido com outras coisas. Gosto de tentar criar uma linguagem diferente. Além disso, a gente tem muito disso no Brasil. Desde muito novos, sofremos com esse bombardeio cultural de vários lados diferentes e tentamos criar nossa identidade própria. O Brasil é gigante e tem muitos lugares diferentes. Por conta disso, muitas vezes a própria compreensão de “tropical” pode variar. Eu acho que a gente vem com essa busca de “encontrar” o Brasil.

TMDQA!: Sinto que essa questão da procura da identidade brasileira nunca morreu, mas é interessante ver vários artistas que estão tentando atualizar esse discurso.

Felipe: Sim! Eu acho que a ideia é encontrar esse meio do caminho entre explorar a cultura e também conciliar com as novidades que vêm surgindo. Não tenho interesse em reproduzir coisas de fora, tentando “americanizar” a música. Não acho que seja por esse lado. A ideia é justamente encontrar uma identidade.

TMDQA!: Sim. O Brasil, enquanto país continental, tem muito da diversidade, e é interessante explorar e misturar isso.

Felipe: Exato! Se você for de Belém para Porto Alegre, é um choque cultural maluco. São basicamente dois países diferentes.

 

“Encontrar prazer no novo”

TMDQA!: Falando ainda sobre essa fluidez do disco, ela acaba condizendo também com a questão lírica. Como a faixa-título indica, é um pouco de saudade e um pouco de aceitação, misturado com vários sentimentos que dão essa paleta diversificadas de cores ao disco. O que você buscou de influências para esse resultado sonoramente tão amplo?

Felipe: Quando comecei a compor o disco, em meados de Maio de 2019, eu não sabia muito bem para onde ele me levaria. Eu gosto muito de compor e de deixar a coisa fluir instintivamente. Isso acabou me deixando mais livre. Eu até brinco que algumas músicas são resultados de conversas gravadas. É quase uma sessão de análise. Ao longo do processo, me dei conta que estava girando sobre um tema central, que é a ideia da ressignificação. Eu estava falando sobre ressignificar uma pessoa dentro de sua vida, sob uma nova perspectiva. É um relacionamento que acaba de repente. Por mais que você queira manter aquela pessoa em sua vida, ela pode se tornar outra coisa e encontrar um novo espaço. Esse processo todo é esse carrossel de sensações e de emoções, que vai desde um primeiro momento de alegria até outros sentimentos como saudade, tristeza, solidão, luto…

Mistura também as ideias de encontrar prazer no novo. É todo um movimento até a aceitação, de que uma relação que terminou até o início de outra. Quando me dei conta de que estava falando sobre isso, me abriu uma gama de possibilidades gigantescas, especialmente sonoramente. Quando eu estava refletindo sobre uma emoção mais eufórica, por exemplo, a música me permitia ir para uma disposição diferente de instrumentos, com mais sopros. Já quando ela estava mais introspectiva, mais para dentro, ela acabava sendo mais lenta. É o caso da “4AM”, por exemplo. Parece urgente, mas está falando de um sonho que ressignificou algo que estava para ser esquecido. O beat é feito para passar essa certa urgência. “Sopro” também. Fala sobre estar esperando que apareça outra pessoa para preencher o vazio que ficou. Ela também tem uma batida contínua. Nessas brincadeiras, consegui dar origem ao disco, sabe?

TMDQA!: O que surge primeiramente para você? A letra ou a base instrumental?

Felipe: Meu processo de composição varia bastante. Não tem muita regularidade. Algumas músicas são compostas inicialmente no violão, e depois eu tento passar o sentimento para a letra. Normalmente, a melodia surge antes e depois eu entendo como aquilo pode funcionar em um arranjo. É complexo, porque eu tenho muito essa cabeça de produtor e acabo pensando sempre as questões de arranjo, captação… Me dá uma autonomia gigantesca para chegar no resultado desejado. Mas, ao mesmo tempo, tenho curiosidade de trabalhar com algum produtor. Poderia ser super rico trabalhar com um produtor que admiro.

 

“Andam dizendo que o agora é tão diferente…”

TMDQA!: O que significou lançar esse disco em plena pandemia? O quanto tudo isso que vem acontecendo impactou o processo do disco não só em termos técnicos, como também conceituais?

Felipe: Impactou completamente a minha vida. Inicialmente, meu plano era lançar esse disco em Abril. Eu já tinha até algumas datas marcadas e tive que cancelar. Dei sorte que cancelei antes de divulgarmos a agenda. Então, não passei por perrengues de avisar todo mundo, mas tive que repensar tudo novamente. Os singles, por exemplo, seriam lançados com maior proximidade entre si, mas acabaram ficando super espaçados. Deu novas perspectivas ao trabalho. O disco ganhou um novo significado, inclusive para os ouvintes. Se você fizer sua leitura dentro de seu momento de crise, em que você precise rever seus valores, aquilo pode ter um significado pessoal. Muitos acharam, conforme os singles saíam, que as músicas falavam sobre a pandemia.

A “Mesmo Lugar”, primeira faixa do disco, tem uma parte em que é dito “Andam dizendo que o agora é tão diferente e a vida vai passando pela frente”. Estamos vivendo exatamente isso, né?

Tagua Tagua
Foto: Thiago Picolli

TMDQA!: Como você espera que esse disco vá tocar os ouvintes? Inteiro Metade é, no geral, um disco bem introspectivo, mas possui temas muito palatáveis. Como você falou, qualquer pessoa pode interpretar os assuntos sob uma perspectiva própria, gerando diversas significações.

Felipe: Eu acho que é um disco que precisa de um tempo para ser digerido para ir chegando, aos poucos, às pessoas. Quem já acompanha meu trabalho conseguiu se familiarizar com o disco. Acabou que lancei tantos singles que a pessoa, ao ouvir a versão completa, já conhece quase metade do conteúdo. É legal porque a pessoa acaba se sentindo íntima do trabalho, porque as faixas que vieram depois condizem com o universo que eu estava criando. Para essas pessoas, funcionou muito bem. Já para as pessoas que ainda estão descobrindo, essa construção pode levar um ano ou mais.

É um disco para ir conhecendo aos poucos, até por conta dos detalhes sonoros contidos nele. Mas não foi em vão que lançamos agora no fim do ano. Eu precisava lançar neste ano, não tinha como segurar por muito tempo. A ideia era lançar o mais perto possível de poder apresenta-lo ao vivo, para aproveitar enquanto ainda está “fresh”. Até porque estou lançamento simultaneamente na Europa e nos Estados Unidos. É uma confusão de territórios. Eu já estou programando apresentações para o meio do ano que vem.

 

“A música consegue transcender o idioma”

TMDQA!: Você também está trabalhando o lançamento dos discos em países da Europa e nos Estados Unidos. Como você têm encarado a recepção dos gringos ao seu trabalho. Você conseguiu emplacar “Peixe Voador” na trilha do FIFA 2020, por exemplo.

Felipe: Isso está sendo bem legal. Eu sempre acreditei muito na ideia de explorar outros territórios e outras culturas. Nunca pensei em ficar preso no Brasil por estar cantando português. Acredito que a música consegue transcender o idioma, dependendo de como ela é feita e de como ela chega. Ela consegue fazer com que a letra não seja o principal canalizador. Eu presto muita atenção nas melodias. Para mim, elas possuem o tremendo poder de causar sensações e emoções. Acho que dá para chegar lá com instrumental. A recepção tem sido muito em torno disso. As músicas estão tocando em algumas rádios dos Estados Unidos, e eu reparei nos apresentadores dizendo exatamente isso, que é incrível como a música consegue fazer esse papel de “linguagem universal”. Em Portugal, já é diferente, porque você conecta a música com a letra.

TMDQA!: Por falar em Portugal, você pretende voltar para Lisboa em 2021, certo? Tenho visto uma aproximação cada vez maior entre Brasil e Portugal, nas mais diversas esferas musicais. Como você tem visto isso? Como acha que essa troca pode ser benéfica para as duas culturas?

Felipe: Eu acho isso incrível. Tem muito português talentoso por aí. Para eles, acaba sendo mais complicado ainda, porque Portugal é um país muito pequeno. Quando fui lá, a sensação que tive foi a de que parecia um estado do Brasil. Isso me fez pensar no quão difícil é para nós, artistas, viver em apenas um estado, sabe? Para o próprio Inteiro Metade, por exemplo, eu não tive dúvidas em sair de Porto Alegre e ir para São Paulo, porque fazia muito mais sentido. Não que isso seja fundamental, mas acho que acabou sendo um facilitador.

Em Portugal, tendo as dimensões de um estado brasileiro, o artista acaba não conseguindo se manter. Conheço alguns artistas incríveis de lá, e não é nada fácil para eles. É uma luta diária viver de arte. Portugal também não tem muitas portas abertas na própria Europa. Eles acabam ficando ilhados dentro do próprio país. O Brasil, que é gigante, fala português, mas nunca abriu a porta para músicos portugueses. Acho essa troca muito benéfica. Eles estão mais acostumados com o falar do português brasileiro, enquanto, para nós, o português de Portugal soa “enrolado” ou “polido” demais. Mas é uma questão de costume.

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