
Já estamos bastante acostumados com alguns ícones do cinema internacional de terror, seja na figura de um fantasma de cabelos longos saindo da TV, uma figura etérea sentada nos ombros de uma pessoa ou nas vítimas de deformações corporais bizarras.
E é justamente por ser uma linguagem tão maleável que esse gênero consegue carregar os medos de vários países de formas muito únicas, trazendo referências culturais e históricas de onde suas obras foram produzidas.
Os filmes de horror, dessa forma, podem até seguir fórmulas clássicas como casa assombrada, assassino em série e monstro gigante, mas o jeito como ele assusta é profundamente marcado por aspectos sociais de onde sua história nasceu.
Isso é ótimo para os fãs, que podem viajar por alguns dos movimentos mais emblemáticos do cinema de horror ao redor do mundo, entendendo o sotaque de cada lugar e de cada época.
New French Extremity: o corpo como campo de batalha
Começando com sangue, vísceras e realismo chocante: o chamado New French Extremity surgiu no final dos anos 1990 e explodiu nos anos 2000, com filmes como Alta Tensão (2003), Irreversível (2002), A Invasora (2007) e Martyrs (2008). Essas produções misturam terror psicológico, violência extrema e críticas sociais nada sutis.
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O contexto é de uma França pós-colonialismo, mergulhada em debates sobre identidade nacional, crise moral e o entendimento do corpo como ferramenta política. O horror aqui é gráfico, existencial e profundamente perturbador. A violência é tão explícita que boa parte desses filmes foi classificada como “inassistível” por críticos mais conservadores. Mas, para quem topa o desafio, a experiência é intensa e inesquecível.
O New French Extremity, no fundo, não quer te assustar com monstros. Ele quer te fazer sentir desconforto com o que a humanidade é capaz de fazer com ela mesma.
J-Horror: um velho conhecido
O horror japonês ficou mundialmente conhecido nos anos 1990 e 2000 a partir de obras como O Chamado (1998), Pulse (2001) e O Grito (2002). A estética é marcante, com uma atmosfera densa, sons imperceptíveis, fantasmas pálidos de cabelos longos e uma sensação de maldição inevitável.
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O J-Horror não surgiu por acaso, pois se trata de um filho direto de fantasmas que o Japão moderno tentou enterrar. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a derrota traumatizante e a ocupação norte-americana, o país passou por uma modernização forçada, que trocou rituais milenares por arranha-céus, espiritualidade por tecnologia e coletividade por uma lógica de mercado ocidental. Foi uma transição brusca, de um Japão feudal e xintoísta para uma nação industrial capitalista moldada por valores estrangeiros.
O resultado foi um trauma coletivo e os filmes de terror representaram uma forma artística de captar esse momento. Há inúmeros títulos em que a tecnologia isola as pessoas, assombra e transmite a dor de tudo o que foi perdido. O medo aqui não vem só dos espíritos literais, mas da modernidade, que chegou como um fantasma.
Greek Weird Wave: o absurdo pode ser considerado terror?
A Grécia em crise econômica nos anos 2000 virou o berço de um cinema estranho, desconcertante e absurdamente eficaz em causar desconforto. O movimento ficou conhecido como Greek Weird Wave, sendo Yorgos Lanthimos o seu nome mais conhecido graças a filmes como Dente Canino (2009), O Lagosta (2015), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e Pobres Criaturas (2024).
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Embora nem todos esses filmes sejam terror propriamente dito, eles usam o absurdo e o grotesco para desestabilizar o público. A partir daí, marcam um rompimento de estruturas sociais fundamentais, como relações familiares, linguagem e afetos, e é exatamente essa frieza que tira o espectador da zona de conforto.
Com isso, na Grécia em contexto de crise, o medo mora na banalidade do dia a dia, em famílias com noções distorcidas de carinho, em regras absurdas ou no vazio das relações humanas quando já não há mais o que perder.
Coreia do Sul: fantasmas de guerra e feridas do capitalismo
O horror sul-coreano também é construído sobre as ruínas de uma história marcada por guerra, desigualdade e modernização acelerada. Após a ocupação japonesa (1910–1945) e a devastadora Guerra da Coreia (1950–1953), o país mergulhou em décadas de regimes opressores e pobreza generalizada. A partir dos anos 1980, veio o milagre econômico dos Tigres Asiáticos, com crescimento vertiginoso, urbanização forçada e um salto tecnológico; contudo, a que custo?
Essa modernização imposta trouxe também desequilíbrio social, colapsos familiares e um sentimento geral de alienação. A crise financeira asiática dos anos 1990 só agravou esse cenário, deixando cicatrizes profundas naquela população, acostumada a viver em estado de alerta. O horror coreano canalizou esses traumas, transformando medos coletivos em alegorias assustadoras.
Filmes como Whispering Corridors (1998) e Medo (A Tale of Two Sisters, 2003) exploram repressão, luto e as pressões do sistema educacional; O Lamento (The Wailing, 2016) mergulha no medo do desconhecido; enquanto Invasão Zumbi (Train to Busan, 2016) usa o apocalipse para escancarar as injustiças sociais e a frieza do mundo corporativo.
No entanto, foi com O Hospedeiro (2006), de Bong Joon-ho, que o terror coreano encontrou sua assinatura definitiva, com a crítica social ainda mais pesada. Já Parasita (2019), embora não seja um terror formal, é o exemplo máximo do terror de classe que virou marca registrada do cinema coreano contemporâneo.
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Brasil: o medo político e folclórico
O cinema brasileiro de horror vive uma fase prolífica e autoral. Filmes como As Boas Maneiras (2017), O Animal Cordial (2017), Morto Não Fala (2018), A Mata Negra (2018), Bacurau (2019) e Noites Alienígenas (2023), entre outros, mostram o sobrenatural convivendo com a violência urbana, a desigualdade e o autoritarismo.
Muitas vezes, o horror mostra o que o Brasil tem de mais violento e contraditório; porém, há espaço para o folclore, para a magia e para os medos ancestrais.
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América do Sul: supense com sotaque castelhano
Nos nossos vizinhos sulamericanos, o terror também carrega o peso de décadas de repressão, censura e violência de Estado. Países como Argentina, Chile e Uruguai lidam até hoje com as cicatrizes deixadas por regimes militares brutais, e esse passado sombrio tem se transformado em matéria-prima para um tipo de horror bastante puxado para a política. Na América do Sul, o significado de um corpo desaparecido é muito mais profundo do que um mero recurso narrativo.
O caso de sucesso mais recente e impactante talvez seja O Mal Que Nos Habita (2023), do argentino Demián Rugna. O filme parte de uma premissa sobrenatural – pessoas possuídas por uma entidade demoníaca que se espalha como uma doença -, entretanto a mensagem é clara: o verdadeiro mal é aquele que fingimos não ver, que se alastra pelo silêncio e pela negligência institucional. A possessão, aqui, não é só espiritual, mas de classe. Dessa forma, a desesperança dos protagonistas reflete o desamparo de gerações inteiras marcadas pela omissão e pela violência estatal.
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Essa tradição de usar o terror como crítica já vinha sendo construída em obras como Quando Eu Era Vivo (2014) e Aterrorizados (2017), que tratam de luto, culpa e questões históricas não resolvidas. No Chile, filmes como Trauma (2017) e Na Trama do Medo (2019) resgatam os horrores da ditadura de Pinochet com uma brutalidade perturbadora. Eles transformam torturadores e as próprias instituições de repressão em figuras literalmente monstruosas.
Horror como linguagem é reflexo do seu tempo
O terror no cinema é um espelho e cada país o aponta para os seus próprios fantasmas. Uns veem a crise da família; outros, o colapso da política. Uns preferem o sangue; outros, o silêncio.
Mas todos, sem exceção, usam o horror como forma de dizer: “tem algo muito errado por aqui”.
Claro que faltaram alguns movimentos de cinema pelo mundo que não foram citados por aqui, mas já deu para ter uma boa noção de como esse gênero é fascinante. E pra você, qual é o horror que mais te tira o sono?
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