Maglore, João Marcello Bôscoli e Junior
Maglore por Renata Monteiro; João Marcello Bôscoli por Divulgação; Junior por Breno Galtier

Houve uma época em que o Acústico era um rito de passagem. Lulu Santos já comparou o formato ao alistamento compulsório para o serviço militar – ao longo dos anos 90 e 2000, era inescapável passar pela fase “desplugada”. O cantor e compositor carioca entende bem do assunto – ele possui não um, mas dois álbuns no formato.

O Acústico tirou da zona de conforto grandes figurões da música, de Bob Dylan a Gilberto Gil, além de oferecer novas possibilidades sonoras chegando até a última década. Nomes como Katy Perry e Miley Cyrus tentaram usar essa linguagem para mostrar que suas canções iam além do pop. Sua onipresença, no entanto, parece geracional – como aponta o produtor musical João Marcello Bôscoli:

Possivelmente, para quem tem menos de 30 anos, soe uma novidade – como foi um dia. Assim como os remixes, o formato ‘Acústico/Unplugged’ em determinado período parecia ser quase inevitável.

Não foram raros os casos em que bandas e artistas ganharam um novo fôlego na carreira graças ao apelo popular de seus álbuns acústicos.

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É o caso de Capital Inicial, Engenheiros do Hawaii e Ira!, bandas inegavelmente consagradas – mas que foram alçadas a outro patamar ao mostrar novas nuances de seus arranjos. Tanto que, neste fim de semana, a banda brasiliense sobe ao palco do festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro, com um show que comemora os 25 anos do lançamento de seu Acústico MTV, com direito a participações de Zélia Duncan, Kiko Zambianchi, Denny Conceição e Marcelo Sussekind.

Junior Lima teve uma experiência diferente – o Acústico MTV que gravou ao lado da irmã, Sandy, foi uma espécie de despedida da dupla, que anunciou seu fim naquele mesmo ano, 2007:

A gente já tinha recebido um convite para fazer um Acústico MTV, mas a gente tinha tido a sensação de que precisava esperar um momento especial, certo, pra fazer isso, pra revisitar um monte de coisa. E como a gente teve uma carreira – eu e minha irmã – que começou muito cedo, e no final a gente já estava com vinte e poucos anos, havia uma diferença muito grande. Tinha música que não cabia mais, que não cabia mais na nossa embocadura. Então a gente ficava tipo, ‘Como a gente vai revisitar grandes clássicos?’. Eu não me sentia à vontade pra isso e fomos meio que deixando pra frente. Quando chegou a nossa decisão de encerrar a dupla, a gente pensou, ‘Agora faria sentido um projeto especial que homenageasse a carreira toda’. E aí agora é a hora daquele Acústico.

O momento agridoce já via o apagar das luzes, também, da venda de CDs. Ainda assim, o Acústico MTV: Sandy & Junior vendeu mais de 200 mil cópias e foi certificado com platina pelas vendas do CD e platina dupla pelas vendas do DVD.

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Naquela época, não era apenas o catálogo autoral dos artistas estava pra jogo – uma boa grana foi feita ao requentar canções de grandes nomes da música internacional.  Emmerson Nogueira que o diga – o mineiro por trás do álbum Versão Acústica chegou a vender 2 milhões de discos.

Seu repertório foi calcado em nomes como Supertramp, Pink Floyd, The Police, Eric Clapton, Joe Cocker, entre outros, e atingiu a vendagem de mais de 100.000 cópias em apenas alguns meses. Seguiram-se outros onze álbuns e dois DVDs ao vivo, todos certificados com Disco de Ouro e alguns também com Disco de Platina.

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Fim de uma era?

A tradição, porém, se dissipou logo depois. O que antes era uma aposta certeira para levantar a carreira de qualquer grande artista deixou de ter relevância mercadológica. Uma possível saturação do cenário pode estar por trás dessa mudança de ciclos no music business – um setor que passa pelas Quatro Estações – já diriam Sandy & Junior. Essa é uma das hipóteses levantadas por João Marcello Bôscoli:

Como funcionava bem na ampla maioria das vezes, creio ter havido talvez um uso excessivo do formato e, consequentemente, um desgaste. Nada que um descanso não restaure. Acho um formato básico e seguro, tal qual uma camiseta branca.

Não é mera coincidência o fato de que a MTV Brasil, o maior expoente do acústico nacional, deixou de existir como a emissora que muitos conheceram. Hoje, quem zapeia por seus reality shows nem suspeita que ali foram feitos clássicos atemporais e carreiras renasceram das cinzas.

No auge das vendas de CDs e também do formato acústico, surgiram verdadeiros clássicos contemporâneos – alguns com vendas expressivas a ponto de se tornarem os maiores sucessos de bandas veteranas. Segundo dados da Pro-Música Brasil, o Kid Abelha (2002) foi o disco mais vendido dentro dessa estética, com cerca de 2 milhões de unidades. Ele é seguido de perto pelo 1,8 milhão dos Titãs (1997). Completa o pódio o Acústico MTV do Legião Urbana (1999), com 1,5 milhão. 

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Dá pra dizer que, quando a MTV passou a fazer essa aposta no Acústico, foi um divisor de águas. É assim que vê o baterista Felipe Dieder, da Maglore:

Eu acredito muito que isso, esse boom, ele veio muito quando teve a MTV, porque aqui no Brasil, antes da MTV, isso aconteceu aqui, ali. Eu lembro de um disco do Kid Abelha que tem a proposta de ser acústico, que eles gravaram lá nos anos 90, eu acho. Lembro que é um acústico de uma banda que tem essa pegada da canção pop. Mas eu não consigo me recordar antes do Acústico da MTV, vir com força essa proposta. Para além do fato de que talvez a gente tenha cada vez mais perdido esse protagonismo dos violões, para além de artistas que já trabalham muito com a coisa do violão como instrumento principal. Tô falando do universo da música pop. A MTV trouxe isso e na medida em que ela virou outra coisa, deixou de ser aquilo que era lá atrás, aquela coisa maravilhosa que formou a todos nós, esse formato perdeu também. 

O Acústico não deixou de existir, claro. Não faz muito tempo que a própria MTV embarcou de novo na onda com Tiago Iorc – mas o mundo era outro em 2019. O ano seguinte veio como uma avalanche em inúmeros aspectos, e o Acústico deixou de ser prioridade do mercado major, de novo.

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Porém, existe vida para além das maiores gravadoras – ainda bem. Prova disso é o lançamento do novo álbum da Maglore, que não poderia ter outro título: Maglore Acústico. O disco chega como uma celebração dos 15 anos da banda e já engata uma nova turnê. Essa gira vem na sequência da recém encerrada tour que a banda empreendeu por diversos estados brasileiros para divulgar o ótimo trabalho V

Não deixa de ser o próprio rito de passagem da Maglore – afinal, em 2019, quando a banda completou 10 anos, os músicos comemoraram com a gravação de um álbum e DVD ao vivo no Cine Joia. É o que conta o baterista Felipe Dieder:

Existe o marco celebrativo. Data dos 15 anos de banda, como também tinha uns 10 anos lá em 2019, quando a gente fez o outro, ao vivo. E parte também isso acaba coincidindo com o momento em que a banda lançou um disco de inéditas há dois anos já. Preferimos não lançar um outro disco de inéditas esse ano. E aí, como a gente percebeu essa janela um pouco maior de intervalo entre um disco e outro, a gente acaba sentindo também a necessidade de fazer alguma coisa que tenha um sabor de novidade e que não necessariamente esteja ligado a um disco inteiro de inéditas. A gente preferiu dar um passo que eu acho que é um passo além, no sentido de buscar alguns centros de criação em meio a um trabalho que não é um trabalho integralmente novo, que é a releitura. E também da escolha, né? Era pensar com carinho o que entra e o que não entra, as razões para algumas músicas estarem ali e para outras não estarem também. Enfim, reinventar isso. 

Não que a Maglore queira reinventar o acústico, mas sim recriar as próprias músicas, com outros tons e sabores. Buscando refletir fases distintas da discografia, o álbum apresenta uma sequência de hits e canções menos óbvias numa roupagem mais minimalista, o que confere outras possibilidades e texturas para letras já conhecidas dos fãs: “Invejosa”, “Não Existe Saudade no Cosmos” e “Calma”, entre outras. 

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E, embora os músicos não tivessem intenção de lançar um álbum de inéditas, uma canção nova entrou nessa leva: “Tela Quente”, parceria do vocalista Teago Oliveira com o baixista Lucas Gonçalves. Completa o quarteto Lelo Brandão, na guitarra. O desafio foi buscar novas abordagens para canções já conhecidas.

Você, evidentemente, recria bastante algumas músicas e você não recria tanto em outras. E esse é também um desafio. Algumas versões originais já abrem um pouco menos de escopo para recriações absolutas, e acabam fazendo com que o sabor de novidade, o frescor, venha de outros aspectos; de repente, de um instrumento ou de outro, ou da própria textura final, quando você tem violões e teclado no lugar de guitarras. Tradicionalmente, a banda usou guitarras ao longo dos anos, salvo algumas baladas. Mas tem esse desafio também, que se aplica bastante a músicas que não necessariamente passam por uma renovação absoluta de arranjos, e a gente sente que conseguiu ser respeitoso com relação a isso. Eu tô tocando absolutamente diferente, meu jeito de tocar, de encarar o instrumento, a sonoridade que a gente extrai dele. Isso leva a gente a fisicamente tocar no instrumento de maneira diferente, então são redescobertas que você vai fazendo. Foi muito divertido, porque algumas músicas puxavam já coisas diferentes, puxavam por si só, assim, quase que naturalmente. Algumas outras a gente quebrou um pouco mais a cabeça, ficou matutando um pouco mais o que é que podia ser, às vezes uma estrofe ali que podia ser diferente.

Para um produtor musical como Bôscoli, surge aí uma oportunidade de explorar novas possibilidades sonoras:

A parte legal é resolvê-la esteticamente dentro dessa premissa acústica. Tirar som dos instrumentos, aperfeiçoar as performances nesses instrumentos, pensar no repertório que ‘pare em pé’ sem apoio elétrico/eletrônico e avaliar o quão fundo podemos ir. Por exemplo: piano elétrico e órgão entram? Se é ‘unplugged’, instrumento na tomada pode? E por aí vai.

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Talvez parte da graça para um artista consagrado seja se propor um desafio à altura de uma carreira já cravejada de hits. Foi assim com Sandy & Junior quando se propuseram a recriar alguns sucessos da carreira conjunta, da qual se despediam naquele momento:

O acústico tem um pouco isso de te permitir revisitar, até porque você vai ter que rever os arranjos todos, transformar em acústico e tudo mais; e aí você revisitar momentos da sua carreira, momentos diferentes, grandes sucessos e tal. Ao mesmo tempo eu acho muito interessante, porque é, assim, você despir a música. É você tirar todos os artifícios e deixar a canção ser revelada acima de tudo. E às vezes vêm grandes surpresas, e até algumas decepções. ‘Ah, então é isso essa música? Como é que eu vou fazer isso ficar interessante agora?’ Na verdade, é porque era o arranjo, o clima, que deixava aquela música tão legal. Então é uma experiência muito interessante você revisitar um repertório e ter que criar um arranjo todo acústico e entender quais são as belezas que você precisa realçar naquela música. É um pouco despir a canção. 

A Maglore não mirou no Acústico MTV, a começar pelo fato de que a banda gravou seu disco em estúdio. Porém, é inegável a influência desses álbuns em qualquer brasileiro que viveu as décadas de 90 e os anos 2000:

Do Unplugged, todo mundo é super fã do grunge e tal, então o acústico do Nirvana foi um marco. Eu mesmo tinha o CD e todos na banda certamente têm como grande marco. A nossa geração, todos lá da banda, é da geração do Acústico antigo mesmo. Faz parte da formação da gente. De todos eles, o dos Titãs foi, talvez, no Brasil, o grande marco inaugural de um Acústico que teve o poder de ser massivo. Tudo bem que era outra época, né? Era a época daquela coisa mais verticalizada das grandes gravadoras, das majors. Mas enfim, à parte disso, teve uma chegada muito forte aquele Acústico. E aí depois tem várias coisas: a Cássia Eller, os Paralamas, os Titãs, Legião, que foi lançado muitos anos depois, tem toda uma aura ali, o do Kid Abelha é maravilhoso, dos Engenheiros também, Cidade Negra fez um acústico também muito legal.

A Maglore já está circulando com o novo show, que começou com três datas esgotadas em São Paulo. Mas uma nova turnê não foi, necessariamente, o alvo da banda. Shows diferentes vão pintando de forma meio despretensiosa – foi o caso de um repertório que mesclava as canções da Maglore às de Tim Maia, em uma espécie de tributo que chegou a circular por alguns palcos de SP – e o mesmo se aplica à situação atual, de certa forma:

A gente não pensou nessas variáveis [mercadológicas]. As motivações que levaram a esse disco foram outras. Mas é interessante porque isso também traz essas questões. A gente, a princípio, pensou em rodar com set realmente acústico durante bastante tempo, mas a gente também enxerga espaço aqui e ali, para fazer o show com guitarras em alguns contextos onde seja mais apropriado. A banda não limita a circulação a algum show específico, mesmo que ele seja o foco principal agora. A energia que a gente quer investir mais no momento acaba sendo atraente porque você deixou – se você pensar em termos puramente mercadológicos – comercial. Acho que, ainda que não tenha sido a proposta inicial, sim, abre outras oportunidades que a gente não sabe muito bem quais são ainda. Mas a gente vai saber com o tempo, elas vão se apresentar, a gente vai descobrindo.

Mas ainda há espaço para o acústico em pleno 2024? João Marcello Bôscoli não descarta o estilo:

Se surgir naturalmente, se emanar de um desejo sincero ou alguma necessidade criativa, vejo nenhum problema. Por ser um formato elementar, creio na possibilidade de sempre ser possível utilizá-lo.

O Acústico continua sendo uma das múltiplas possibilidades para a expressão artística, para o desenvolvimento de novas turnês e para jogar nova luz sobre o catálogo de um artista ou banda. Seu retorno como sucesso comercial é improvável, mas seu lugar na música que é feita hoje está mais que mantido.

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