Anitta Girl From Rio
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Um relatório anual da DATA SIM de 2019 mostrou que a posição das mulheres no atual mercado musical é preponderantemente de iniciante, ou ainda, que atualmente as posições de comando nesse mercado não são ocupadas por mulheres.

Além disso, comparando o nível hierárquico de cinco anos para hoje, vemos que o percentual de iniciantes caiu, mas o percentual de diretoras não subiu na mesma proporção.

Um levantamento recente, feito em 2021 pelo ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) sobre mulheres na música no Brasil, revelou que nos últimos dez anos o número de mulheres cadastradas como titulares saltou para 385.940, o que mostra um aumento de 1200%. Ainda assim, os homens representam uma parcela majoritária dessa porcentagem, respondendo por 85,1% dessas titularidades.

Desde 2013, com a chegada do streaming, houve uma mudança no cenário musical: as chances de lançar uma carreira nesse meio haviam aumentado. Mas, obviamente, o avanço tecnológico não iria mascarar as desigualdades de gênero existentes.

No decorrer dos últimos anos, as mulheres obtiveram mais oportunidades dentro desse mercado, mas ainda tiveram e têm que enfrentar diariamente na pele as atitudes machistas que foram perpetuadas socialmente no passar do tempo.

“Quais as maiores dificuldades enfrentadas por mulheres dentro da indústria musical?”. Essa pergunta foi realizada tanto pela pesquisa de 2019 do DATA SIM, como pela pesquisa chilena “Mujeres y disidencias en la industria musical chilena: obstáculos, oportunidades & perspectivas”, realizada em 2020 em conjunto com o DATA SIM.

A resposta é gritante: no Chile, o fenômeno de “mansplaining” responde por uma porcentagem significativa das queixas (30%). No Brasil, a maior queixa é o assédio (49%).

Pensando nestes números e a fim de entender um panorama geral do que acontece hoje com as mulheres na música, conversamos com dois nomes importantes deste meio: Dani Ribas, doutora em Sociologia pela UNICAMP e diretora da Sonar Cultural Consultoria e Pesquisa em Gestão Cultural e Monique Dardenne, gestora de carreiras, curadora, pesquisadora de música e co-fundadora do Women’s Music Event.

Confira abaixo!

As mulheres dentro do ecossistema da música

TMDQA!: Temos várias e grandes intérpretes mulheres, mas por que ainda temos tão poucas em outras áreas deste grande ecossistema musical? O que mais atrasou a obtenção da representatividade feminina dentro disso?

Monique Dardenne: Ao meu ver começamos mais tarde, pois as “prioridades” da vida das mulheres desde o começo do século eram procriar, cuidar da casa e da família. Então é natural que a cada década tivéssemos conquistas e avanços mais lentos do que era aceito para uma mulher se propor a fazer dentro da sociedade.
Se fosse para trabalhar com música tinha que ser cantora e não técnica, produtora ou empresária de artista, isso era quase impossível.

Até pouco tempo, mulheres como a própria Dona Ivone Lara não assinavam as suas composições. As mulheres na música eram as divas intérpretes em cima do palco e pouco se via mulheres trabalhadoras no ecossistema da música. De cinco anos para hoje, senti um salto enorme de visibilidade para quem já estava há um tempo trabalhando no mercado.

Conseguimos perceber agora uma abertura de espaços e oportunidades para as mulheres com menos experiência, além de uma própria cobrança da sociedade por mais diversidade e representatividade. Mas, de fato, teremos décadas para nos igualar em números aos homens e às oportunidades.

TMDQA!: Um dado interessante da pesquisa DATA SIM de 2019: 27% das entrevistadas se consideravam feministas; 3% não se consideravam feministas; 0,7% não se interessavam pelas pautas; 9,8% não se consideravam feministas mas se interessavam pelas pautas.

Esses números me fizeram pensar que muitas mulheres têm ou tiveram essa dificuldade em se classificar como uma ativista, ou de declarar nítido interesse por essas pautas. Por que surge essa dificuldade em reconhecer isso?

Dani Ribas: Durante muito tempo, o feminismo foi visto como o contrário do machismo, para que a realidade não mudasse. Então acontece um discurso ideológico, operado por homens e mulheres machistas. Isso é mantido por essas pessoas, para que o movimento feminista não ganhe força e não consiga romper com as barreiras que se propõe a romper.

Essas respostas, na minha interpretação, já revelam que o feminismo é marginalizado. A mulher chega a perceber a dominação masculina mas, por medo de retaliação, ela não consegue se ver como feminista. É aí que a ideologia opera.

Foto por: Patricia Soransso, estúdio: Pedro Marguerito
Dani Ribas. Foto por: Patricia Soransso, estúdio: Pedro Marguerito

TMDQA: Falando sobre esse levantamento do ECAD de 2021 (mencionado no início), como podemos ler isso? Ainda temos um alto número de homens compositores porque essas mulheres ainda estão sendo agenciadas por terceiros ou isso se justifica realmente por uma falta de espaço no mercado?

Monique Dardenne: Os números estão crescendo e acredito que na última década — por causa do acesso, incentivo e valorização — a mulher vem assinando mais títulos como compositora. Acredito também que no passado as mulheres até participavam de composições, mas não eram creditadas, por darem mais importância em se mostrarem como intérpretes.

Então a corrida pela igualdade nesses números vai levar décadas, assim como em muitas outras áreas da música. Temos um atraso brutal com relação aos homens, a título de oportunidade e confiança do mercado, que ainda acham que “não damos conta” de muitas funções, principalmente em cargos de liderança e técnicos.

De dez anos para cá, as mulheres estão mais confiantes em tornar seu trabalho reconhecível, profissional e acessível, pois espaços estão se abrindo para nós. Além de incentivá-las a compor, temos de incentivar também o registro do fonograma. O acesso à informação cresceu muito nesse período de pandemia. Por isso a procura por registro de fonograma; assuntos referentes a direitos autorais e recebimento de royalties estão sendo muito procurados.

Monique Dardenne. Foto por Mariana Smania

Mulheres diretoras na música

TMDQA: Segundo dados do levantamento do DATA SIM de 2019, o número de mulheres iniciantes na área diminuiu, mas o de diretoras não subiu na mesma proporção. Como interpretar isso?

Dani Ribas: Ampliando para além da questão do feminino e do mercado especificamente feminino, temos um problema de profissionalização do mercado musical no Brasil. Ele é um problema maior do que a participação feminina — eu não estou com isso minimizando, porque obviamente o meu foco de atenção é sobre como as mulheres entram nesse mercado de trabalho.

Temos que sistematizar várias perguntas para colher esse resultado. Por fim, percebemos que entraram mais mulheres no mercado. Elas deixam de ser iniciantes, mas o número de diretoras e posições de comando não crescem proporcionalmente.

TMDQA: Pensando neste dado acima sobre a proporção de mulheres diretoras, do levantamento de 2019 da DATA SIM, e olhando para um caso como o da Anitta, é possível dizer que ela virou um tipo de referência ao falarmos de artistas que vieram gerenciando a própria carreira? Ou casos como o dela representam coisas isoladas e pontuais do mainstream?

Monique Dardenne: Sim, Anitta é referência em gerenciamento de carreira, crise e marketing em todos os sentidos. Muita coisa que ela faz vira um case a ser estudado. Com certeza o caso dela é um caso isolado, mas não deixa de ser um grande incentivo para mulheres iniciantes e já veteranas da área.

Dani Ribas: Eu queria dizer antes de mais nada que eu acho isso extremamente positivo. Mas a minha visão é bem crítica, porque eu sou socióloga e eu não consigo ver o mundo de outra maneira (risos). Por que quando falamos desse desafio de equilibrar vários pratos na vida ao mesmo tempo, nós só lembramos das heroínas? A sociedade coloca esse jeito feminino de trabalhar como se fosse uma competição. Então a gente só olha para aquelas que ganharam.

Eu tenho certeza que todas as mulheres do meio musical, sem exceção, equilibram os mesmos pratos. A diferença é que os pratos dela (Anitta) são pratos de boutique. Sem ser pejorativa, mas esses pratos são colocados na vitrine e vendidos como produto. Não é uma crítica à Anitta. Ao contrário, eu acho ótimo que a gente possa se espelhar nesses exemplos, mas isso não é suficiente, é preciso olhar para além disso.

Outro ponto foi quando essa discussão saiu dessa questão das heroínas e veio para a vida real. No momento que alguém enxerga que a gente tá aqui equilibrando tantos pratos ao mesmo tempo, a gente vira “guerreira”. Usar esse termo é naturalizar o fato de que mulher pode se “ferrar” desse jeito e que homem não precisa.

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O impacto do streaming para as mulheres

TMDQA: Em 2013 temos a chegada das plataformas de Streaming. Como isso impactou positivamente e negativamente esse cenário todo de mulheres na música?

(Nota: É importante levantar aqui a questão da má remuneração dentro dessas plataformas. Inclusive, em um dos dados dessa pesquisa de 2019 da DATA SIM, vemos sobre essas longas jornadas de trabalho que ultrapassam a carga permitida por lei)

Dani Ribas: Eu vou falar das minhas percepções, porque eu não fiz pesquisa sobre isso em si. O streaming, de maneira geral, tornou possível que todo mundo pudesse ser artista. Por um lado, possibilitou que todos tivessem um trabalho ali dentro, mas é algo muito diferente do que viver de fato do streaming.

Aquele que olhar a superfície, pode achar que agora a situação ficou igualitária para homens e mulheres, mas não está. Antes de falar do streaming, precisamos deixar claro que o peso social entre ser uma mulher da música é diferente de ser um homem da música. O peso social da maternidade ainda recai sobre as mulheres. Supondo que fosse “tudo igual” entre homens e mulheres na sociedade, dentro do Spotify, as regras do jogo continuariam sendo da mesma maneira.

Ou seja, quem tem mais tempo (de espaço e oportunidade), que seriam os homens, certamente iria promover mais a sua música ali dentro. Isso não significa que eles terão mais sucesso do que mulheres, pois dentro da plataforma em si todos estão nadando no mesmo jogo de funcionamento.

Os maiores obstáculos

TMDQA: Quando olhamos as maiores queixas das mulheres no mercado da música, percebemos reclamações diferentes daqui para o Chile. Por que no Brasil o cenário é de maior violência?

Dani Ribas: No Brasil, assédio sexual e moral aparecem em primeiro lugar. No Chile, é mansplaining. Também são formas de opressão, mas já aparecem como opressões mais “sutis” do que no Brasil. Significa que o nosso capitalismo é muito violento, especificamente com o corpo da mulher.

Por que aqui no Brasil é mais violento? Temos uma escravidão até ontem. No Chile não. Lá não teve uma escravidão do mesmo tipo que a nossa, não foi tão duradoura também. Então existe um outro entendimento sobre o corpo feminino. E isso ficou evidente na comparação das duas pesquisas.

Fortalecendo a cena musical feminina

TMDQA: Falando um pouco da “cria” que nasceu entre a Monique Dardenne e a Clau Assef, queria que você contasse um pouco o como e o porquê do Women’s Music Event — inclusive, a partir de 2019, a premiação passou a ser exibida pelo canal TNT, né?

Monique Dardenne: O WME surgiu em primeiro lugar por causa de uma necessidade de nos conectar com outras mulheres do mercado em nossos próprios trabalhos. A plataforma de música foi pensada em 360º, com o intuito de promover a visibilidade, abrir mercado de trabalho, formar mulheres e fazer conexões. O Women’s Music Event tem 4 pilares: a WME Conference, WME AWARDS by Music2!, um app que é um banco de profissionais da música e um site de notícias.

O WME AWARDS é a única premiação da música brasileira que celebra o legado feminino na música. Homenageando, reconhecendo e de certa forma reescrevendo o reconhecimento da mulher na história de nossa música. Pelo terceiro ano, somos transmitidos pelo Canal TNT, que é a casa das premiações mundiais. É um orgulho para nós ter conseguido levar a mulher da música para um público além do nosso mercado.

Claudia Assef, Monique Dardenne e Fátima Pissarra
Monique Dardenne e Clau Assef, durante a WME. Foto por Mariana Smania

TMDQA: Por fim, como fortalecer no dia a dia e em ações viáveis a cena musical feminina?

Monique Dardenne: As formas mais fáceis e que todos podem fortalecer são: ouvir, pesquisar, compartilhar o trabalho, indicar para um trabalho e contratar mais mulheres. Fazer um exercício quando estiver em um ambiente muito masculino, se ele seria diferente se existisse mais diversidade.

Dani Ribas: Todas as opções indicadas na pesquisa DATA SIM 2019 — contratação de mulheres, voto em candidatas com agendas feministas, entre outros — acabam contribuindo para este fortalecimento.

Além disso, fazer com que esta não seja apenas uma luta de mulheres. Enquanto for só de mulheres, vai haver todos os estigmas ideológicos que existem sobre isso. Essa tem que ser uma luta global. Homens precisam se envolver sabendo o seu lugar de fala. Ou seja, todas as ações que contribuam para visibilizar que um mercado mais justo é bom para todos e não só para as mulheres.

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