Urias
Foto: Divulgação

Há artistas que mudam de era, mas Urias muda de dimensão. Depois de percorrer a intensidade eletrônica de Fúria e as espirais internas de Her Mind, a cantora mineira inaugura em CARRANCA o capítulo mais maduro e simbólico de sua carreira.

O disco, que chegou no último dia 7 de outubro, é um mergulho profundo no mar da ancestralidade, na dor herdada e na liberdade possível. E, como toda travessia, começa com uma proteção: a carranca, figura grotesca usada em embarcações e cultuada na espiritualidade afro-brasileira, que aqui funciona como guardiã, bússola e metáfora.

“Foi uma busca pelo próximo passo”, diz Urias, que viveu transformações internas intensas antes de dar forma ao álbum. CARRANCA nasce desse território turbulento: é fruto de inquietação, de raiva costurada como denúncia e de um desejo insistente de reorganizar memórias, dores e futuros. O resultado é um trabalho que não se limita a romper expectativas estéticas, mas também amplia o alcance político e espiritual da artista.

O símbolo que abre caminho

A escolha do nome não é detalhe, é fundação. A carranca, associada a Exu e às travessias, sintetiza o universo inteiro do projeto. É popular, brasileira, religiosa e profana. E, sobretudo, acessível. “Eu queria que esse álbum se popularizasse tal qual a carranca”, conta Urias.

O mar é outra imagem que atravessa o disco: navegação, travessia, ancestralidade, retorno à fonte. É como se cada faixa funcionasse como uma maré específica, conduzindo a artista de volta a si mesma, enquanto a capa, criada pelo artista afro-surrealista Isaac de Souza Sales, amplifica esse chamado espiritual com imagens que misturam orixás, figuras mitológicas e símbolos diaspóricos.

Se há uma espinha dorsal conceitual em CARRANCA, é a ideia de liberdade conquistada à força. Não uma libertação romântica, mas uma liberdade que passa pela vingança enquanto reparação, enquanto gesto histórico.

“No fim das contas, a minha música sempre foi muito política, porque é o que eu sou. Nesse sentido, eu queria que esse trabalho gerasse discussão, lembrar tópicos que estão no dia a dia e a gente não discute. Então, eu quis resgatar a história, resgatar fatos e trazer novas discussões”, afirmou.

Coletivo negro

Essa direção radical aparece desde “Deus”, parceria com Criolo, que revisita a ancestralidade apagada e confronta a colonização, passando pelo senso de injustiça que costura “Paciência”, com Don L, e pela herança histórica evocada em “Herança”, com Giovani Cidreira.

“O meu intuito com esse disco foi criar um grande coletivo popular negro, pra sempre relembrar da nossa história e sair desse ciclo. Cada um deles representa um contato diferente com a população negra: o Criolo trouxe elegância aos ritmos marginalizados, o Don L tem um contato político forte, enquanto o Major tem essa ligação com a nova juventude. Cada um é uma ponta da estrela que faz a mensagem chegar mais longe”, explica

Entre as 14 faixas, poucas simbolizam tanto o motor espiritual do disco quanto “Águas de um Mar Azul”. Composta por Hyldon na década de 1970 e nunca lançada, a música se perdeu no tempo até ser recuperada por Urias e sua equipe. É uma canção que parece existir em suspensão: antiga e inédita ao mesmo tempo, atravessada por um lirismo quase mítico.

“O intuito do álbum é trazer essa brincadeira do tempo. O estudo por trás do disco pega algumas perspectivas das religiões sobre o tempo e existe uma que diz que o tempo não é linear, onde vivemos o passado, presente e futuro ao mesmo tempo. E a música pode ser vista assim também. E quando essa composição chegou, eu entendi isso: ela é antiga, mas é nova também porque nunca foi ouvida. Quando gravamos, mandamos e ele aprovou, foi um grande presente pra minha carreira”, celebra.

Um disco que é barco e bússola

A estrutura do álbum funciona como uma travessia guiada pelos interlúdios narrados por Marcinha do Corintho. Eles falam sobre liberdade, revolta e retorno, até fechar o ciclo com “Etiópia”, onde Urias resgata a noção de origem como um lugar sem raça, sem dor e sem fronteiras através de um romance afrocentrado.

A composição musical, por sua vez, é múltipla e precisa: rap, R&B, samba, pop, funk minimalista, camadas afro-brasileiras e samples históricos se chocam e se complementam sem hierarquia. “A cada trabalho eu tento não ser repetitiva, sempre mostrar um lado novo para surpreender as pessoas. Então, essa versatilidade vem disso. Já a uniformidade do disco é parte do processo natural da criação, porque uma música puxa a outra, mas sempre com a minha identidade.”

No fim da travessia, o disco volta ao que fundamenta sua criação: a herança. Não a herança material, mas a cultural, a histórica, a que sustenta comunidades inteiras. Urias explica: “No disco, eu falo sobre a herança dos povos negros, onde não é uma herança de acúmulo, mas é a herança dos costumes, de sempre lembrar de onde veio, da resistência.”

É essa continuidade que ela quer reafirmar. Um movimento que olha para trás sem nostalgia e olha para frente sem ilusão. “O legado que eu quero deixar é a continuidade do que foi me passado, de continuar lembrando a nossa história e como ultrapassamos essas adversidades hediondas”, diz.

OUÇA AGORA MESMO A PLAYLIST TMDQA! BRASIL

Música brasileira de primeira: MPB, Indie, Rock Nacional, Rap e mais: o melhor das bandas e artistas brasileiros na Playlist TMDQA! Brasil para você ouvir e conhecer agora mesmo. Siga o TMDQA! no Spotify!