CPI dos Pancadões
Foto: Rede Câmara

Nos últimos anos, a indústria fonográfica, a mídia e até parte do público passaram a usar o termo “música urbana” como uma maneira aparentemente neutra de se referir a gêneros como o rap e o funk. À primeira vista, parece uma tentativa de criar uma categoria estética ampla e moderna. Mas, na prática, essa nomenclatura funciona como uma ferramenta de apagamento. É um eufemismo que higieniza, embranquece e esvazia o sentido político, social e racial de gêneros que são, essencialmente, negros e periféricos.

O termo “urbano” tem uma longa trajetória. Nos Estados Unidos, ele emergiu nos anos 1970 como “urban contemporary”, uma categoria criada para dar conta da diversidade musical negra que crescia nas rádios, como soul, funk e disco. No entanto, com o tempo, deixou de ser uma definição feita por dentro da comunidade negra para se tornar um rótulo externo, operado por agentes brancos da indústria cultural.

Esse movimento não é apenas semântico: ele tem efeitos reais. Quando se troca “rap” ou “funk” por “urbano”, se está diluindo identidades. Apaga-se a origem de classe e de raça das expressões culturais, disfarçando-as sob um guarda-chuva que permite uma melhor circulação no mercado — desde que esvaziadas de seu peso histórico.

A palavra “periferia” some, e com ela desaparecem as marcas de resistência e denúncia que esses gêneros carregam. A “música urbana” é, nesse sentido, um produto adaptado à vitrine da indústria: menos radical, mais palatável, mais vendável.

Não tem CPI da música urbana

Esse contraste se escancara quando observamos como o funk é nomeado em diferentes contextos. Recentemente, a Câmara Municipal de São Paulo instaurou a CPI dos Pancadões, uma comissão parlamentar de inquérito destinada a investigar a realização de bailes funk nas periferias da cidade. Nesse ambiente, não se fala em “música urbana”, fala-se em funk, com todas as implicações morais, jurídicas e estigmatizantes que o termo carrega quando associado à favela, ao barulho e ao “incômodo”. O nome real só aparece quando o objetivo é criminalizar.

Já nos festivais patrocinados, nos line-ups das grandes marcas, nas vitrines das plataformas de streaming e nos relatórios das gravadoras, o mesmo funk e o mesmo rap aparecem suavizados como “música urbana”. Há, portanto, uma escolha deliberada sobre quando e por que usar certos nomes. Nomear é enquadrar, e a maneira como se nomeiam os gêneros periféricos não é neutra: ela obedece a interesses de mercado, de controle e de apagamento.

No Brasil, o uso desse termo repete os mesmos vícios, mas dentro de um contexto próprio de racismo estrutural. Rap e funk foram — e continuam sendo — criminalizados, censurados e marginalizados. São expressões nascidas em territórios de exclusão, forjadas na precariedade e no enfrentamento das violências do Estado. Ao serem enquadrados como “urbanos”, perdem força política, são embalados em novas estéticas visuais e sonoras, muitas vezes reinterpretadas por artistas brancos ou de classes mais altas.

Essa crítica foi feita de forma contundente por Tyler, The Creator, logo após vencer o Grammy de Melhor Álbum de Rap por IGOR em 2020. Embora tenha agradecido o prêmio, o artista apontou o desconforto com o fato de que sempre que “caras que se parecem com ele” fazem algo fora do padrão, acabam automaticamente encaixados nas categorias de rap ou urbana. “Não gosto dessa palavra ‘urbano’ — é apenas uma maneira politicamente correta de me dizer a palavra com ‘n’”, disse.

Por isso, é preciso nomear corretamente. Rap é rap. Funk é funk. São gêneros com história, identidade e lugar social. Reduzi-los à abstração da “música urbana” é parte de um projeto que tenta apagar suas origens para que possam ser melhor consumidos.

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Felipe Mascari
Rap em Pauta com Felipe Mascari

A coluna que mergulha nas histórias, letras e batidas que estão redefinindo o cenário musical do Rap. Acompanhe de perto os lançamentos e a força das rimas que ecoam pelas ruas.

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