Flerte Flamingo assume a energia rock mas sem perder seu balanço no disco de estreia "Dói Ter"
Divulgação

O Flerte Flamingo acredita que o público pode mudar sua percepção sobre a banda ao ouvir o seu disco de estreia, Dói Ter, lançado nesta sexta-feira (17).

A obra marca uma nova fase para a banda, reunindo faixas inéditas e regravações que ajudam a costurar a trajetória do grupo entre Salvador e São Paulo. Os singles “Juízo e Responsabilidade”, “Até de Manhã” e “Boletim” foram escolhidos como prévia do álbum, e cada uma dessas canções representou um lado dessa transição sonora. Em conversa com o TMDQA!, o vocalista e guitarrista Leonardo Passovi apontou:

“A gente queria introduzir a chegada do trabalho justamente com esse cheiro de novidade. […] As três regravações fazem sentido na narrativa, mas essas três que a gente escolheu preparam um pouco o terreno para as mudanças.”

Entre os novos singles, “Até de Manhã” ganhou um significado especial para a banda que também é formada por Gustavo Cravinhos (guitarra e teclas), Bruno de Sá (baixo) e Igor Quadros (bateria), já que, segundo Leo, o arranjo remete às origens da banda ao mesmo tempo em que representa uma nova fase:

“O arranjo pega daquele pandeirinho com a guitarra, aquela coisa bem Flerte Flamingo 2017, e termina numa guitarra nervosa, rock’n’roll, uma atmosfera muito mais pesada do que a gente costumava transmitir nas músicas. […] A gente sente que foi essa canção que tirou a gente daquele lugar e trouxe pra onde o som está hoje.”

A banda que ganhou destaque na cena nacional em 2017 com os singles “Ladinho” e “A Falta” define seu som como um ponto entre Arctic Monkeys e Jorge Ben, apelidando o gênero de suas músicas como “indie samba-rock”, e foi com o novo disco que eles conseguiram assumir de vez uma veia roqueira.

Na entrevista, Leonardo comentou sobre o contexto por trás das novas músicas, o que uma imersão realizada para trabalhar nos arranjos gerou para a banda e mais detalhes sobre o processo de produção do álbum. Além disso, você pode descobrir ao final da matéria quais foram alguns dos discos e artistas que inspiraram o vocalista durante a criação de Dói Ter.

Leia a conversa na íntegra logo abaixo e ouça o novo álbum do Flerte Flamingo!

TMDQA! Entrevista Flerte Flamingo

TMDQA!: O Flerte completou 10 anos de carreira esse ano, passando por mudanças de cidade e integrantes, e esse material completo de vocês era algo muito esperado pelos fãs. Como vocês estão se sentindo ao finalmente colocar esse disco no mundo?

Leonardo: Eu não sinto que a gente demorou, porque eu sinto que as circunstâncias tiveram um papel nisso, mas, no fim das contas, a gente demorou. Tem um tempinho já, realmente, que a gente sente que tem pessoas querendo… a gente, principalmente, querendo entregar um trabalho mais extenso, mas o sentimento era de que valia a pena esperar pra fazer da melhor forma. A gente está tentando não prestar tanta atenção nessas coisas dos 10 anos, porque a pandemia comeu dois ali, teve as reformulações e tal.

Eu acho que o número em si serviria se fosse motivo de alguma celebração ou algo assim, tá ligado? Mas, não sei, eu acho que a gente ainda está com a cabeça muito no futuro pra começar a celebrar marcos do passado. O frescor de estar começando meio que ressurge quando sai um primeiro trabalho, como é o primeiro álbum, né? Então, estamos nesse estado mental que a gente está sobre a coisa, animados pra ver a coisa sair, pra ver novas impressões sobre a gente, porque a gente tem a sensação de que a percepção sobre a gente vai mudar com esse trabalho. E a gente está bem curioso, bem animado pra ver isso acontecer.

TMDQA!: Eu vi que no “Dói Ter” vai contar com algumas regravações de músicas lançadas em anos anteriores, mas sobre os singles mais recentes, “Juízo e Responsabilidade”, “Até de Manhã” e “Boletim”, o que motivou a escolha dessas músicas para apresentar aos fãs uma prévia dessa nova fase?

Leonardo: Como o álbum tem três regravações, já eliminamos logo elas da possibilidade de serem os singles. A gente queria introduzir a chegada do trabalho justamente com esse cheiro de novidade, esse frescor de tipo: “a gente está apresentando coisas novas, a gente não está usando o álbum pra ruminar coisas que já foram trabalhadas”. As três regravações que vão entrar fazem sentido pra narrativa do disco, mas essas três que a gente escolheu, em série, na sequência em que vieram, preparam um pouco o terreno justamente pra essas mudanças, sabe?

“Juiz e Irresponsabilidade” é uma música mais upbeat, mais pra cima, até um pouco mais parecida, talvez, com as coisas que a gente lançou em 2020, 2019, ali “Espero que Você Entenda”. Aí, “Até de Manhã” é uma música bem simbólica pra gente, porque ela, estética e cronologicamente, meio que levou a gente do que a banda era pra o que a banda é hoje. Primeiro porque, dentro da música, o arranjo pega daquele pandeirinho com a guitarra, aquela coisa bem Flerte Flamingo 2017, e termina numa guitarra nervosa, rock’n’roll, uma atmosfera muito mais pesada do que a gente costumava transmitir nas músicas. A gente sente que é essa a transição que a gente está passando, então, por isso, é uma música simbólica esteticamente, mas ela também é simbólica cronologicamente, porque era nela que a gente estava trabalhando em 2021, quando a gente apertou o pause no álbum, diante da perspectiva de se mudar para São Paulo.

A gente estava tentando trabalhar essa música na antiga formação da banda, ainda com César Neto e Digão, lá em Salvador, e foi nela que a gente sentiu que a coisa estava encalacrada. A gente já sabia que metade da banda ia se mudar, então, quando a gente parou o álbum ali, ficou com essa música meio que como um dissabor, sem sentir que ela estava indo na direção que a gente sentia que podia ir, sabe? E aí, quando a gente veio pra São Paulo, viveu várias coisas, lançou as que já estavam prontas, “Truques Velhos para Cachorros Novos”, “Ano Que Vem” e tudo mais, quando a gente voltou a atenção pro álbum de novo, recomeçou e foi trabalhar nela, ela soou exatamente da forma como eu, como compositor, tinha visto, da forma como o Nando, como produtor, tinha deslumbrado também e Liber [Igor Quadros], na bateria, que disse que é uma das linhas de bateria das quais ele mais se orgulha. A gente sente que foi aquela canção que tirou a gente daquele lugar e trouxe pra onde o som está hoje.

E aí já vem “Boletim”, que entra com uma pequena amostra do lado mais sombrio que o álbum tem. Ela tem aquele agito, aquela coisa até um pouco mais indie rock, mas ainda tem um balanço de samba. Só que, no meio, tem aquela sessão mais profunda, mais cavernosa e tal. A gente deixou ela como terceiro single porque, tipo, “vamos primeiro mostrar pra galera que tem coisas legais e depois vamos dar um aviso: ó, tem umas paradas estranhas também.”.

TMDQA!: Vocês definem o som do Flerte como “indie samba-rock”, um ponto entre Arctic Monkeys e Jorge Ben. Qual é o desafio de unir essas referências e conseguir transformar isso em um som coeso, que vocês apresentam no álbum?

Leonardo: Rapaz, tem um desafio identitário na coisa como um todo, porque a gente nunca se percebeu, ou pelo menos nunca ficou, até esse momento de agora, à vontade para se admitir como uma banda de rock. Quando a gente começou, não era muito rock, era mais uma nova MPB, um samba rock. Você escuta “A Falta”, você não pensa “isso é rock”, sabe? Como você estava lá, via ao vivo, tinha guitarras, bateria, percussão, soava rock na atitude, mas a gravação não soa rock. Então, a gente não se dizia uma banda de rock. A gente percebe que esse trabalho vai mudar a nossa percepção e vai fazer a gente ser percebido mais como uma banda de rock, e a perspectiva dessa mudança está sendo refrescante pra gente. Porque existia, e é importante admitir isso, existia dentro da banda uma certa resistência em se associar ao rock nacional.

A gente começou a banda muito num espírito de: “a gente quer fazer diferente do que está sendo feito, a gente não quer só participar da cena independente; a gente vê coisas que gostaria de fazer diferente, quer propor diferente”. E essa necessidade de afirmar essa diferença fazia com que a gente, em alguma medida, quisesse negar um pouco do que estava sendo feito. Por isso, a gente não se identificava com a cena de rock nacional, apesar de participar da cena de rock local em Salvador. E esse álbum é sobre isso.
Agora com essa percepção, com o álbum pronto, é inegável que é um álbum mais rock, é inegável. É o nosso trabalho mais rock and roll. Então, assumir isso facilitou um pouco as coisas, porque é meio que se despedir de uma amarra, porque o rock sempre esteve presente na identidade de cada um de nós individualmente. Nós somos pessoas que começaram a fazer música porque, quando a gente tinha 14, 15 anos, a gente gostava de rock. A gente gostava desde um rock mais clássico até um rock mais indie, como é o meu caso. E, na hora que a gente vai canalizar isso, tem que obedecer o que a canção pede, ao mesmo tempo sendo verdadeiro com as nossas próprias vontades, com o nosso próprio sotaque ao propor. Então acaba que tem um componente de espontaneidade na hora de fazer.

Na hora que a gente se juntou na imersão, a gente alugou uma casa e ficamos lá dez dias, nesse momento estávamos dando muita vazão à liberdade das escolhas estéticas. Então, até que não foi tão trabalhoso encontrar esse epicentro no espectro, que é a gente entre Jorge Ben e Arctic Monkeys. Quando eu estou mais pirracento, eu falo que é entre Arlindo Cruz e Madonna, mas é sempre alguma coisa entre samba e música estrangeira.

TMDQA!: E sobre essa imersão que você comentou, eu tinha até separado uma pergunta aqui para saber um pouco dessa experiência. Como foi esse período de convivência e além de vocês terem trabalhado nos arranjos, o que esse momento gerou para vocês enquanto banda?

Leonardo: Gerou muito entrosamento, muita união. Foi bem importante, porque foi meio que um catalisador da união desta nova formação. A gente já tinha recrutado o Bruninho, Cravinho estava entrando na época, o Nando, que é o nosso produtor, mas que fundou o projeto com a gente, está junto há muito tempo, ainda não conhecia o Bruninho direito, não conhecia Cravinhos. Cravinhos e Liber não se conheciam. Cravinhos e Bruninho já se conheciam, mas a gente conhecia Cravinhos há pouco tempo. Bruninho já estava na banda há um ano, mas a gente tinha feito poucas coisas juntos. Então, quando a gente se juntou lá, foi meio que pra catalisar esse processo, e a gente saiu de lá muito mais próximo também. A gente acordava tranquilamente na hora que queria, sem muita pressa, trabalhava relativamente focado, mas trazia ludicidades ao longo de todo o processo.

Teve uma hora que a gente estava meio travado numa música ou já estava um pouco cansado criativamente, porque a gente não teve nenhum dia de descanso, aí a gente meteu um filme pra passar enquanto trabalhava. A gente deixou no mudo ou num volume muito baixo, e começou a emendar um filme no outro. Foi “O Estranho Sem Nome”, “Poderoso Chefão”, aí estava passando um jogo do Corinthians, a gente deixou o jogo do Corinthians. Teve uma hora que teve uma cena chocante num filme e, quando a gente percebeu, todo mundo tinha parado de tocar e estava olhando pra tela embasbacado. E aí saía disso, subia uma escadinha, porque a casa tinha uns quartos meio beliche, até um pouco militar, só que a estrutura era muito boa para além dos quartos. Tinha um piscinão, que a gente sequer entrou porque era inverno, estava fazendo 12 graus.

A gente fazia fogueira, fazia churrasco, cozinhava junto, saía pra comprar marmita. A gente fez amizade com locais da região também. E a gente sentiu que estava sendo uma banda sendo banda. Foi bem uma experiência de banda. Uma coisa que, quando a gente estuda, pesquisa, lê sobre, motivado pela própria curiosidade ou por trabalho, a gente fica sabendo de momentos como esse de artistas que a gente admira. E a gente sempre se pergunta, “Quando e como a gente vai fazer isso?”

Então, eu já vinha me programando pra poder proporcionar isso pra banda. A gente vinha juntando caixa. Eu, que fico mais a cargo dessa parte operacional, business da banda, já estava calculando o que seria necessário, quando a gente poderia fazer, quando seria melhor pra todo mundo. E a gente conseguiu convergir todas as agendas pra liberar a segunda quinzena de julho de 23. Tinha um dinheiro exato pra a gente conseguir alugar a casa e não se preocupar com muitas despesas, pra não ser uma coisa custosa que impactasse no mês de cada um. Aí foi positivo a banda não estar fazendo muitas coisas, porque não estava tendo tantos gastos. Estava podendo acumular dinheiro pra isso. A gente já estava guardando para o disco, mas foi um momento muito precioso. Porque você chega num espaço, você molda esse espaço da forma que serve melhor à criação, e esse espaço vai, aos pouquinhos, se transformando ao longo daqueles dias. Você tira uma foto no primeiro dia e outra no décimo, o ambiente está transformado, ele está tomado pela energia daquilo. A gente conseguiu um lugar com uma energia muito boa. Isso é raro, não é sempre que se consegue.

TMDQA!: E falando um pouco do processo de gravação, eu li que vocês gravaram a parte instrumental em São Paulo e os vocais em Salvador. Qual foi o impacto desse processo no resultado final do álbum?

Leonardo: Invariavelmente ficou impresso alguma coisa ali. As partes de banda, toda a sessão instrumental, a gente matou em uma semana aqui em São Paulo, porque tiramos um tempinho para realmente malhar entre a imersão e a gravação definitiva. Tem gente que prefere trabalhar numa circunstância como a imersão e já sair de lá com coisas gravadas para serem o definitivo. Inclusive, Cravinhos e Bruninho chegaram achando que a gente ia fazer isso. Só que aí eu achei melhor botar um pé no freio. Eu falei: “Vamos fazer demos aqui, vamos sentir as músicas, montar prévias, mas não se apegar a isso. Não tentar dar um ar de definitivo agora. Vamos voltar para São Paulo com o que a gente tem aqui e trabalhar em cima disso. Vamos lapidar as ideias que a gente teve com o tempo”, porque a gente não tinha pressa naquela altura. É óbvio que eu queria, e Liber também queria muito, que a gente terminasse rápido, porque estávamos com aquelas ideias há muito tempo e queríamos mostrar para as pessoas. Mas não tinha exatamente um motivo que nos obrigasse a ter pressa.

Então, pegamos ali pelo menos uns seis meses entre a imersão e a gravação definitiva, período no qual fizemos dois shows em Salvador até, para chegar sabendo exatamente o que íamos fazer e matar rápido. Se tivéssemos tido essas ideias já na hora de gravar, elas teriam sido diferentes. Tem linha de guitarra ali, por exemplo, na última música, você vai ver, tem uma guitarra que fica repetindo uma mesma nota, como se fosse uma emissão de um sonar no fundo do oceano. E é o tipo de ideia que você não tem quando está no estúdio, já tendo ideia e gravando imediatamente, porque você tenta fazer coisas que já sabe que funcionam, caminhos mais rápidos. E quando você vai para um espaço no meio do mato e se liberta de tudo, sem se preocupar com o tempo ou com a obrigatoriedade de entregar o definitivo imediatamente, você tem ideias mais soltas. E aí surgem coisas como essa, uma guitarra que soa como um sonar, ou você se permite parar, e no meio do sono tem uma ideia, volta e experimenta algo. Num estúdio, com o relógio batendo e o dinheiro escorrendo, você sente a pressa e não tem aquela liberdade para ter esse tipo de ideia. Uma vez que isso tudo já estava montadinho, sólido, chegamos ao estúdio sabendo o que íamos fazer, gravamos tudo e fomos para Salvador, eu fui para Salvador com o Nando, e como já estava tudo montadinho, tínhamos a liberdade para nos soltar em cima daquilo.

Fiz questão de que fosse em Salvador justamente para me reconectar com aquilo, porque esse álbum… e é muito interessante o fato de essa entrevista estar sendo contigo, porque outra pessoa não entenderia tão bem, você viveu aquilo, você estava lá, sabe?
Esse álbum é sobre aquele período pré-pandêmico em que eu percebia uma efervescência na cena cultural independente de Salvador, e o Flerte Flamingo era uma parte disso. Era uma força motora de eventos e momentos em que a juventude se sentia parte de algo e gostava de celebrar bandas que estavam surgindo, outras bandas da cena. Aquilo tudo enriquecia a coisa como um todo, e a gente estava muito feliz de fazer parte daquilo, nesses anos entre 2017 e 2019. Apesar de o álbum não narrar explicitamente aquilo, ou histórias daquilo, ele se ambienta ali. Ele se passa naquele tempo e tenta colocar a pessoa que está ouvindo para experimentar as sensações mais próximas possíveis do que era estar ali, sem necessariamente alguém lhe dizer o que estava acontecendo, apenas transmitindo a sensação. A gente também fornece isso de outras formas, temos lances de sound design, temos os interlúdios em que tentamos criar situações. Era algo que eu estava estudando no curso de Produção Musical do Souza Lima, de pegar uma cena e criar a trilha sonora e a sonoplastia dela.

A gente quis fazer isso tudo pra colocar o ouvinte como se estivesse em um ambiente de festa, em um show à noite, no fim de semana, ou até em um carnaval. Tem uma faixa em que o ouvinte parte disso, vai de um ambiente a outro, vive uma espécie de jornada. Tudo isso para acessar essa profundidade. Porque, assim, o que está na frente do disco é o vocal. A primeira impressão que você tem é da sensação que a pessoa que está cantando, o sentimento é transmitido na voz, se a pessoa está tensa, alegre, confiante, ou num momento mais introspectivo e intimista. Isso acaba ficando impresso na voz. Você entende, pelo tom de voz, o estado de espírito da pessoa e a grande chave da música é justamente essa, a capacidade de transportar o ouvinte para o estado de espírito do criador de maneira instantânea, às vezes até sem precisar de palavras.

Ir para o mesmo estúdio que a gente gravava, com a mesma atmosfera, o mesmo cheiro, o estúdio, inclusive, tinha mudado para uma sede nova, é interessante ter levado o cheiro de uma sede para outra. A sede nova era ali na Rua do Cienfuegos, então, para ir gravar, a gente tinha que parar o carro no Rio Vermelho. O cenário era o mesmo. A gente saía da gravação e estava ali, o Rio Vermelho entardecendo. Isso tudo acabou sendo impresso na voz. E quando eu escuto, percebo que é talvez a gravação em que minha voz está mais solta de todas, obviamente por causa de algum amadurecimento e envelhecimento, mas também por causa dessa conexão.

TMDQA!: Com certeza. Eu sinto que esse álbum é muito reflexivo, abordando o impacto do amor em quem sente, mas ao mesmo tempo, falando sobre introspecção e resgatando essas memórias, com vocês destacaram nas faixas “Vida de Cigarra” e “Até de Manhã”. Em algum momento, você já sentiu algum receio de se expor demais, de ficar vulnerável ao abordar esses temas?

Leonardo: Com certeza. Muitas vezes o amor acaba sendo o mote de algo que vai além dele, especialmente nesse álbum, porque a ambientação vai muito além do que a letra está falando. Eu não acho que nesse álbum a narrativa dele se costure necessariamente pelo que é dito em letra. Mas o que é dito em letra, de alguma forma, ambienta a pessoa na sensação que a música propõe. A gente discorre sobre sentimentos que, no fim das contas, estão na superfície do que a gente percebe quando está num final de semana na rua. As pessoas saem à noite, em alguma medida, para socializar, mas em outra, muito para destilar os próprios sentimentos amorosos, os interesses por pessoas com quem querem se relacionar ou com quem já se relacionaram e ficam com aquele resquício. E numa cidade, como a gente tanto gosta de chamar de provinciana, como Salvador, você está o tempo todo cercado pelo seu passado ou pelas suas perspectivas de futuros amorosos. Onde quer que você vá, não tem por onde correr. Você vai para o Carmo, tem lá. Você vai para o Rio Vermelho, tem lá. Você vai para o Clube do Samba, tem lá. Você vai para a Pituba, no Baixo Itaigara, você vai achar alguém do seu passado. Salvador é um pouco sobre isso e acaba que as músicas serem românticas elas entram em consonância por mais que seja um pouco sobre mais do que isso. Mas esse álbum é muito imersivo.

E eu sente esse receio quando eu estava gravando a primeira versão de “Calma, Carolina”, porque eu nunca tinha colocado o nome de uma pessoa explicitamente numa canção. E aí eu me lembro que perguntei pra Nando, o produtor: “Você, como produtor, acha que eu estou me passando?” Ele falou: “Man, não. A música é boa. Você talvez estivesse se passando se fosse ruim.” Mas é uma música singela e em outras músicas desse álbum, talvez esse reúna a maior quantidade de faixas que me fizeram perguntar se eu não estava me deixando ser lido demais, mas no fim das contas, vale a pena. Porque, hoje em dia, estamos eu e Carolina juntos.

No fim das contas, não dá para ter muito medo dessas coisas. É uma parte muito importante do artista. Acho que é um ônus, mas é um bônus ao mesmo tempo. Porque, uma vez que a gente tem essa incumbência, que é, ao mesmo tempo, uma dádiva de se expressar artisticamente, de canalizar nossas experiências de maneira mais complexa esteticamente, mais apreciável, a gente sente e vive algo, e canaliza isso de um modo que uma pessoa que não nos conhece consegue, mesmo sem saber nada do que estamos falando, gostar daquilo.

Dizer se acha bonito, feio, bom. Às vezes não só se identificar, mas dizer: “Isso é a cara de fulano”. Acaba que a gente meio que tem o dever de fazer isso. Se eu vivi uma experiência e fui agraciado com a capacidade de canalizar isso de modo que outra pessoa consiga sentir alguma coisa, eu tenho mais é que usar isso a serviço. Isso ajuda um pouco a não ter medo de colocar suas experiências na ponta da faca. Eu acho que pessoas que… e agora falando mais de um lado individual, por eu ter sido o compositor da maior parte das músicas, tem duas que eu escrevi em parceria, o resto foi tudo só eu. Tem gente que talvez vá entender um pouco, tem gente que vai ouvir e pensar “será que ele está falando disso?”. Tem gente que não vai entender nada, e isso enriquece a coisa como um todo. Eu me divirto um pouco com isso, se eu disser que não, estou mentindo.

TMDQA!: Total! Quando eu estava lendo, inclusive, a definição dessas músicas que eu citei, eu consegui visualizar um pouco. Mas é como você disse, tem gente que viveu e tem gente que vai ouvir e vai pensar em outros momentos.

Leonardo: Para quem cria, para quem compõe, pelo menos para mim, no início tinha muito isso. Tinha um componente de atrevimento, de você se sentir fazendo meio que uma traquinagem, uma peraltice, uma peripécia, e ter aquele gostinho de pensar: “Como será que as pessoas que me conhecem vão reagir ao ouvir isso que eu falei? Será que vão achar um absurdo? Será que vão falar nada, nem perceber?”. A gente que cria se pega nessas coisas, e isso acaba sendo um combustível para fazer mais.”

TMDQA!: E quase finalizando nossa entrevista, vamos falar sobre o título do disco. Você disse que “Dói Ter” surgiu de uma forma quase intuitiva, quase como um enigma. Hoje, depois de vocês concluírem o álbum, o que “Dói Ter” significa para vocês?

Leonardo: Significa uma sensação. Mais do que necessariamente uma construção semântica. É como se fosse uma conjunção de palavras, uma união de palavras que forma uma figura pontiaguda, sabe? É como uma pontadinha. É um beliscão das coisas que lhe trazem prazer em você. Eu acho que é isso.

TMDQA!: Para encerrar nosso papo, fazendo uma referência ao Tenho Mais Discos Que Amigos!, eu queria saber quais discos, ou até mesmo artistas, foram seus melhores amigos durante a construção de “Dói Ter”?

Leonardo: Tiveram alguns que, antes, durante e depois, sempre serão referências. Entre eles, acho importante colocar “Tranquility Base Hotel & Casino”, porque eu sempre fui muito fã de Arctic Monkeys, mas esse é um disco mais imersivo deles. É um álbum que não é só uma conjunção de canções, na verdade com eles nunca parece ser apenas uma seleção de músicas. Sempre tem um conceito amarrado. Mas esse é o que tem o conceito mais amarrado, e foi o que me fez prestar atenção de que, às vezes, vale a pena fazer algo assim, e que não precisa ser aquela coisa hiperelaborada, como um Pink Floyd, que amarra um álbum inteiro e deixa até difícil de executar ao vivo. E a gente tem um apego muito grande com o poder de executar ao vivo de forma fiel à gravação, porque é isso que a gente gosta de consumir. Mas, para além disso, o disco de Luiza Lian, foi uma referência, este último, “7 Estrelas | quem arrancou o céu?”, por causa do vocal dela. Isso é muito doido, porque na música brasileira a minha principal referência vocal não é um vocal masculino. E por mais que a pessoa queira se desconstruir, tem uma questão do registro. Você precisa se referenciar em pessoas com um registro vocal parecido com o que você vai trabalhar. Só que ela tem alguma coisa de rouquidão, que pega no meu ouvido e me dá vontade de exprimir algo parecido com aquilo. Tem uma novidade ali, parece que ela acabou de acordar e está cantando do seu lado. Mesmo que o arranjo seja mais elaborado, o vocal dela soa muito espontâneo.

Eu estou tentando fugir das obviedades, tipo falar “Tábua de Esmeralda” Teve um disco do Wilco, teve “Pet Sounds”, dos Beach Boys, foi um disco que foi bastante referência. “Sgt. Pepper’s” dos Beatles, porque eu fiz um TCC sobre esse álbum e pra fazer ele eu me inspirei em um livro que o produtor do “Sgt. Pepper’s” sobre o disco. E ao ler o livro e escrever sobre “Dói Ter”, eu comecei a perceber algumas semelhanças filosóficas na produção, na escolha de fazer uma parada mais imersiva, testar, pegar texturas que são extramusicais. Neste álbum a gente pega ali trecho de narração de jogo de futebol, eu peguei uma briga entre Brasil e Uruguai no Maracanã, em 1976. Uma briga que meu pai me contava quando eu era criança. E aí eu fui atrás desse áudio, a gente captou e e aí eu coloquei o narrador falando no final de “Ano que Vem,” que é uma música meio de carnaval. E isso foi uma das coisas que esses álbuns de 66, 67 faziam muito. Então esse período influenciou bastante.

Mas para além disso, a gente se inspirou muito em primeiros álbuns. Porque esse é um primeiro álbum de banda. Então a gente foi atrás dos primeiros álbuns das bandas que a gente gosta. Então o primeiro álbum do Led Zeppelin foi uma referência gigantesca. Assim como o do Black Sabbath, assim como o do Arctic Monkeys, assim como o dos Strokes, que foi um álbum que foi pioneiro no indie rock. E essa percepção foi o que fez a gente abraçar essa nova nomenclatura indie samba-rock. Porque a gente percebeu que o que tá acontecendo ali basicamente é um indie rock com um samba no meio. Então indie samba-rock. Assim, eu nunca vou ter a sensação de que eu falei exatamente os discos. Ah, e eu queria frisar um disco chamado “Arrogance is the Death of Men”, de Skinshape.

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