
No vasto e indomável território da música brasileira, existem tesouros que não cabem em prateleiras, mas sim em estados de espírito. Sylvio Fraga, diretor artístico da gravadora Rocinante, mergulhou no cérebro magnético de um dos maiores gênios da humanidade para trazer à superfície o projeto Obra viva de Hermeto Pascoal – Vol. 1 Flautas (lançado no dia 10 de dezembro). O lançamento não é apenas um registro documental; é um portal para composições inéditas que Hermeto Pascoal escreveu entre 1982 e 1985 – agora despertadas pelo sopro de instrumentistas de elite.
O álbum, que inaugura uma série histórica dedicada ao acervo do mestre alagoano, reafirma a missão da Rocinante de tratar a música como organismo vivo e artesanal – do rigor técnico das partituras à prensagem tátil do vinil. Sob a curadoria sensível de Sylvio, a flauta deixa de ser apenas um instrumento para se tornar o fio condutor de uma narrativa que embaralha as fronteiras entre o erudito e o popular, o agreste e o universal, o silêncio e o “som da aura”.
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Em entrevista exclusiva, Sylvio Fraga detalha o processo quase arqueológico de digitalizar o acervo de Hermeto, a parceria fundamental com o diretor musical Bernardo Ramos e o impacto de ouvir, décadas depois, peças que desafiam a própria física do sopro. Ele reflete sobre a “vitalidade interpretativa” exigida dos músicos, o diálogo visual com a obra do artista Véio na capa do disco e por que, no ecossistema da música contemporânea, nada pulsa com mais força do que a imaginação inesgotável de Hermeto Pascoal, nosso eterno “Campeão”.
TMDQA! Entrevista – Sylvio Fraga
TMDQA!: Primeiramente, parabéns pelo lançamento, é um enorme privilégio conversar contigo, Sylvio. Você mencionou que o projeto nasceu de um desejo de ouvir mais músicas do Hermeto em formatos específicos – líricos, agrestes e camerísticos – como nas peças “Auriana” e “Vou Esperar”. Como você traduziu essa escuta íntima em uma missão editorial para a Rocinante? Qual foi o fio condutor para revelar esse “algo a mais” na obra do mestre?
Sylvio Fraga: Primeiramente, o prazer é meu! Essas duas peças que você citou ficaram na minha cabeça por anos. Eu ouvia e pensava: “Caramba, não tem tanta música do Hermeto gravada com essa estética” – e eu já sabia do lado quantitativo dele, daquela rotina absurda de compositor. Quando surgiu a oportunidade de ver os arquivos dele – logo após gravarmos o último disco de estúdio dele pela Rocinante – a ideia inicial era algo editorial, talvez um livro de partituras. Mas quando analisei os arquivos e vi pastas com 20 quartetos de flauta, duos, dectetos… ali nasceu tudo.
O nome “Obra Viva” veio na hora, porque vi que teríamos fôlego para diversos volumes. Começar pelas flautas foi óbvio: é um instrumento central para ele, do coração dele. Agora já estamos trabalhando no segundo volume, com natureza diferente, e espero atravessar esse acervo por anos, pois a quantidade de inéditas é absurda.
TMDQA!: Como foi o processo de imersão nesse acervo para selecionar as peças? E o que essa janela temporal específica, entre 1982 e 1985, revela de único sobre o Hermeto?
Sylvio Fraga: Olhar para uma partitura não revela tudo, a menos que você seja um gênio muito específico – você precisa ouvir. O processo foi reunir os músicos e o Bernardo Ramos, que foi o diretor musical, e começar a tocar, testar e gravar os ensaios.
No caso do Hermeto, é difícil escolher porque tudo é incrível, não tem peças “mais ou menos”. A janela temporal revela que ele foi muito mais fundo no lado camerístico do que imaginávamos. Ele explorou formações como quarteto de flautas com trombone ou piano de forma exaustiva.
Para o grande público, acho que o impacto será esse: descobrir que ele escreveu tanto para essa formação específica.
TMDQA!: Esse foco no lado camerístico contribui para um “embaralhamento saudável” entre erudito e popular. O que essa música exige do ouvinte contemporâneo, tão habituado a fronteiras definidas e ao consumo rápido?
Sylvio Fraga: Exige a capacidade de sentar e escutar. Só isso. [risos] Sem checar o WhatsApp ou o Instagram, porque se fizer isso, você perde o fio da meada.
É um exercício importante, como ler um livro: você não lê um livro vendo uma série ao mesmo tempo. Hoje, tudo é feito para funcionar enquanto o cara faz três coisas ao mesmo tempo, e aí a arte fica “aguada”. A música do Hermeto exige que você pare e a sinta na magnitude de sua beleza.
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TMDQA!: Sobre a produção, a presença de Carlos Malta é um ponto alto, pois ele guarda a “memória muscular” dessas peças. Como esse elo com a história viva do grupo do Hermeto influenciou a direção musical do Bernardo Ramos e a abordagem dos outros músicos?
Sylvio Fraga: O Malta exerceu uma liderança natural. Ele tocou 12 anos ao lado do Hermeto, foi criado tocando aquelas melodias – ele é o maior melodista do Hermeto.
Carlos guia a coisa simplesmente tocando, não precisa nem falar… Mas isso não diminuiu a importância dos outros flautistas, que são grandíssimos, claro. Como as partituras originais não traziam marcas de expressão – não diziam onde era forte, piano ou crescendo – todos eles, junto com o Bernardo, ajudaram a desvendar e definir os caminhos de cada peça.
TMDQA!: A capa apresenta uma escultura do artista Véio. Como essa peça dialoga visualmente com a música do Hermeto, que consegue ser erudita e primitiva ao mesmo tempo? Qual a importância desse statement para a Rocinante?
Sylvio Fraga: Foi uma conexão muito feliz. O Véio vem do mesmo sertão que o Hermeto (fronteira entre Alagoas e Sergipe). São dois “velhos do sertão” que criam o dia inteiro, sem parar. Fui até o interior do Sergipe com o fotógrafo Diego Bresani e passamos o dia com o Véio.
Ele é um grande admirador do Hermeto. Escolhemos as obras lá no ambiente delas, não em um “cubo branco” de museu. [risos] O lado visual e o musical se fundiram perfeitamente; foi aquela situação em que tudo dá certo.
TMDQA!: Você escreveu: “Não conheço nada mais vivo que a obra do Campeão”. O que torna a música dele tão perene e urgente para os dias de hoje?
Sylvio Fraga: Toda grande obra de arte permanece viva, mas na obra do Hermeto há uma pujança, uma vitalidade intrínseca ao modo dele de fazer. Ele está sempre criando e isso transborda para a música. É um privilégio estar vivo e se deparar com a obra dele; você sai estimulado.
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TMDQA!: Aproveitando a deixa que você proporcionou na primeira pergunta: o que podemos esperar do próximo volume da série? Teremos novamente um foco em instrumento ou período específico?
Sylvio Fraga: Já estamos trabalhando no próximo, separando as partituras, mas vou manter o sigilo por enquanto! [risos] O que posso dizer é que temos uma pilha de 90 partituras com uma unidade clara.
O trabalho agora é destrinchá-las e, inclusive, escolher alguns instrumentos para compor a formação, já que nem tudo está definido. É um vício, uma “cachaça”.
TMDQA!: Sylvio, aqui no TMDQA!, sempre perguntamos ao artista/entrevistado se eles também “tem mais discos que amigos”. Além dessa pergunta, gostaria de adaptar adicionando uma outra para você: qual peça de Hermeto foi um divisor de águas na sua vida?
Sylvio Fraga: Bom, primeiramente, eu tenho mais discos e muitos amigos! [risos]
Um divisor de águas recente é “Amigo Sion“, que abre este disco novo; sinto que estou redescobrindo a música. Mas, na adolescência, minha porta de entrada foi “Santo Antônio“. É um Hermeto mais lírico, mais “acessível”, entre muitas aspas.
Depois fui para o Slaves Mass, e comecei a explorar os compassos ímpares dele – mas “Santo Antônio” foi o primeiro impacto com aquela beleza. E agora, com este disco de flautas, continuo descobrindo coisas que nunca tinha ouvido. É, de fato, uma “obra viva”. [risos]
TMDQA!: Espetáculo. Muito obrigado pelo seu tempo, Sylvio!
Sylvio Fraga: A honra foi toda minha! Abraços!
Ouça Obra viva de Hermeto Pascoal – Vol. 1 Flautas abaixo
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