
O duo carioca Setor Norte lançou recentemente seu primeiro álbum de estúdio, Palavras Inteiras, pelo selo Alma Music. O disco marca a estreia oficial da parceria entre os produtores musicais Pedro Yuka e Rômulo Catharino.
Ao longo das faixas, o álbum aborda temas pessoais e sociais de forma direta. As letras passam por questões íntimas, como luto e processos individuais, e avançam para discussões mais amplas, como desigualdade, violência policial, política e saúde mental. Esses assuntos aparecem conectados dentro do universo proposto pelo duo, sem separação rígida entre o pessoal e o coletivo.
A faixa “Herói”, lançada em setembro, funciona como um ponto central do projeto. A música foi escrita por Pedro após a morte do irmão, Marcelo Yuka, músico e compositor conhecido por seu trabalho à frente d’O Rappa. Pedro e Rômulo já haviam trabalhado com Marcelo anteriormente e decidiram dar continuidade ao estúdio do artista. Foi nesse espaço que, entre produções para outros nomes, os dois passaram a desenvolver o Setor Norte e a reconhecer afinidades criativas próprias.
Durante esse processo, Pedro assumiu os vocais e passou a interpretar as próprias letras, tratando de temas ligados à sua visão de mundo, à sociedade e às experiências pessoais. O álbum também abre espaço para assuntos mais cotidianos, como a paternidade – inspirada no nascimento da filha de Rômulo -, sempre inseridos dentro de um contexto mais amplo.
Musicalmente, Palavras Inteiras transita por referências que vão do Volt Mix dos anos 90 ao funk e ao R&B, com o vocal de Pedro conduzindo as faixas. Marcelo Yuka completaria 60 anos em dezembro, e o disco dialoga com sua trajetória sem se apresentar como um tributo direto, buscando afirmar a identidade do Setor Norte como um projeto autoral.
Nós conversamos com Pedro Yuka e Rômulo Catharino sobre a criação do álbum, as temáticas abordadas e o início do duo na entrevista que você confere a seguir.
TMDQA! entrevista Setor Norte
TMDQA!: Antes de assumirem uma carreira artística, vocês já eram produtores. Como foi produzir o próprio álbum? Como esse olhar influenciou o resultado?
Pedro: É um trabalho que surgiu organicamente, a gente começou ele lá no estúdio, quase como uma forma de passar o tempo, uma brincadeira entre nós, entre um cliente e outro. E a gente começou a ir se entendendo muito bem, criando junto e se aprimorando, tendo cada vez mais facilidade, sabendo melhor onde queria chegar. Então tudo começou dentro daquele estúdio, que era do meu irmão.
E, como um processo, a gente conseguiu aproveitar muito bem, com bastante liberdade pra trabalhar a nossa criatividade. E nós sendo dois produtores, acaba que a gente tem muita facilidade pra se entender e entender onde quer chegar. E talvez o mais interessante disso tudo é que eu acho que até o momento a gente também não tem uma forma de operar, não tem uma receita de bolo. Tem faixa que surgiu com a gente cantarolando, tem faixa que o Rômulo me mandou alguma coisa e eu complementei, tem faixa que eu mandei alguma coisa pro Rômulo e ele complementou, faixa que a gente fez junto, faixa que a gente fez separado e depois uniu forças. Então o processo foi muito bonita, e cada faixa teve o seu.
TMDQA!: Qual a sacada do título do disco?
Rômulo: O título do álbum, Palavras Inteiras, remete ao contraponto com a expressão “meias palavras”, e isso simbolizou muito o nosso disco, por meio das letras do Pedro, por causa da veracidade e da forma íntima com que ele retratou os assuntos. Ele deu a cara a tapa em vários momentos, ali, falando sobre coisas íntimas da própria vida, suas dores, suas perdas recentes dentro da família. Isso tudo foi pano de fundo para o disco. Por isso a gente utilizou esse nome. Porque a gente não se privou de falar sobre nenhum sentimento de forma explícita, sincera e íntima, nem sobre nossas convicções em relação à sociedade e tudo que está à nossa volta, do ponto de vista de uma pessoa comum da classe trabalhadora. Então eu acho que a gente divide essa realidade com muita gente, e é o que a gente espera em relação à aceitação desse disco.
Pedro: Esse é um disco de manifesto, e, muitas vezes, de denúncia, e fala diretamente de muitas coisas. Sim, tem a poesia, tem muita melodia, mas também é muito direto em vários momentos.
O título vem dessa incisividade do texto, porque nós não viemos aqui pra dizer meias palavras. São, de fato, palavras inteiras. Viemos para falar sobre tudo que toca a gente nesse momento, e, de novo, tivemos bastante liberdade pra desenvolver isso. O que nós queremos é que as pessoas prestem atenção e ouçam. Que enxerguem todo isso que está acontecendo. Parece besteira, mas às vezes a música consegue entrar em ambientes e conversas com pessoas que não são atingidas por outras formas de comunicação, e não enxergam a vida dessa forma, com todos os problemas que estamos expondo. Nesse sentido, nos usamos a arte como ferramenta.
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TMDQA!: E qual a mensagem que vocês pretendem passar com essa ferramenta?
Setor Norte: A mensagem surgiu naturalmente durante o processo do álbum. Ele não foi pensado desde o início, as coias simplesmente aconteceram naturalmente. As portas foram se abrindo e a gente foi construindo. Eu falo muito sobre o que eu observo diariamente, quando saio na rua, vivo a cidade, leio jornais. Então é um grande relato de tudo que acontece ao nosso redor e nos afeta a todo momento. A gente fala sobre violência policial, falta de oportunidade, preconceito, saúde mental.
Eu abordo muito também processos individuais, essa descoberta minha enquanto artista, compositor, músico, intérprete. Então a gente fala sobre perspectivas individuais que acabam batendo na experiência coletiva e social.
TMDQA!: E como vocês definiriam musicalmente esse disco?
Setor Norte: Cara, esse é um álbum difícil de ser definido. Acho que a beleza dele está justamente em não ter um rótulo. A gente passeio por vários gêneros. Tem faixa que traz rap e dub, trap, funk, Volt Mix anos 90, soul, R&B, música orgânica, música eletrônica, drum bass, rock. Eu diria que é um álbum de música, mesmo, no geral, sem se agarrar a algum gênero específico. Talvez a única coisa que esteja presente em todas as faixas seja o rap, que é a forma que eu encontrei de me expressar como letrista e vocalista. E como eu expresso aquilo que eu vivo e observo na cidade, eu diria que é também, de certa forma, um disco de música urbana.
TMDQA!: Uma das músicas mais simbólicas do disco é “Herói”, que está intrinsecamente ligada ao início do projeto. Como ela deu origem ao que viria a se tornar o Setor Norte?
Pedro: Foi a primeira música feita, né? Inicialmente, o projeto não tinha vocal. A gente entrava no estúdio e começava a fazer um som, criar uns beats – porque ambos somos produtores. Eu nos vejo dessa forma: dois produtores dentro de um projeto. Chegou um momento em que precisamos achar alguém pra dar voz a essa parada, E o Rom ainda não tinha visto umas paradas que eu vinha escrevendo. Quando ele viu, ele falou “Não, cara, a gente tem que dar voz a isso!” Até buscamos pessoas para interpretar aquilo, mas ninguém conseguia botar a energia que a gente queria. Um dia, eu tava em casa e tinha anotado uma expressão que alguém falou durante a sessão de produção de um artista, enquanto a gente conversava sobre Planet Hemp: “Hemp Street Boys”. Eu fiquei com aquilo na cabeça. Uma ideia levou a outra e eu cheguei a “Black Street Boys”, que foi o gatilho pra eu escrever a letra toda em 20 minutos, pegar um microfone e gravar uma guia. Foi aquele dia, naquele momento [que ficou registrado e deu início a tudo]. A gente até tentou regravar, mudar a base da música, mas não ficou a mesma coisa. Foi uma coisa do momento, mesmo. Foi uma música muito forte, eu até me emocionei enquanto gravei. Quando eu mandei pro Rômulo, ele ficou maluco. A gente produziu a faixa e foi ela que nos levou até um empresário, até a Altafonte, enfim, que abriu as portas pra gente. Por isso é uma música muito especial.
TMDQA!: Além disso tudo, o nome Marcelo Yuka parece indissociável da origem do Setor Norte. Aliás, o álbum chega apenas um mês antes de quando ele completaria 60 anos. Vocês já disseram em algumas entrevistas como ainda precisam se preocupar com as mesmas temáticas que ele denunciava há 30 anos. Como vocês equilibram essa herança simbólica com a construção de uma identidade autônoma?
Pedro: Cara, a herança tá ali, né? Não tem como a gente não falar dela, que é muito forte pra gente. Nós começamos o álbum lá no estúdio, com exatamente os mesmos equipamentos que meu irmão usava nas composições dele, a mesma estrutura. Então a nossa escola é a mesma. Nossas referências têm esse mesmo ponto de partida. Eu sempre tive isso muito claro e sempre falei pra todo mundo, desde que eu resolvi trabalhar com música. No início eu não sabia muito bem o que fazer nem como fazer, mas sabia que tinha a missão ali. Foi minha forma de lidar com o luto, né? Ter a missão de assumir esse legado, mas da minha forma. Da minha maneira, com a minha linguagem. Então é claro que tem uma semelhança, mas tem suas diferenças também. Nós temos em comum essa coisa da rua, do urbano, das letras, que é algo que está dentro de mim assim como tava dentro dele, sabe? A questão do legado surge daí, de você fazer de uma forma própria e a partir disso criar sua própria identidade. É orgânico, não é nada pensado nem objetivado. E eu nem saberia fazer de outro modo.