
No vibrante cenário da música clássica e instrumental contemporânea, a violonista Gabriele Leite não apenas interpreta – mas provoca. Reconhecida internacionalmente e listada na Forbes Under 30, a artista radicada em Nova Iorque deu um poderoso passo em sua trajetória com o lançamento de seu segundo álbum, Gunûncho.
O disco, que chega pelo selo Rocinante, é mais do que uma coleção de peças; é um manifesto afetivo e um convite à escuta de vozes femininas que desafiaram o silêncio. “Gunûncho”, palavra que batizava a naninha de infância de Gabriele, retorna como símbolo de reconexão e amadurecimento, marcando a estreia da violonista como compositora.
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Em entrevista, Gabriele detalha a audaciosa curadoria de Gunûncho, que reúne obras de quatro gigantes da composição que, embora não fossem violonistas, criaram peças marcantes para o instrumento: as brasileiras Chiquinha Gonzaga e Lina Pires de Campos, a cubana-americana Tania León, e a escocesa Thea Musgrave. A artista reflete sobre a importância de celebrar o legado dessas mulheres, a jornada pessoal que a levou a compor os nano-estudos inéditos, e como o álbum se propõe a desconstruir as rigidezes da performance para se tornar uma experiência de acolhimento e diversidade.
Bora conferir?
TMDQA! Entrevista – Gabriele Leite
TMDQA!: Gabi, primeiramente uma boa tarde e parabéns pelo lançamento de Gunûncho! O título remete à sua naninha de infância, um símbolo de acalanto e silêncio. Como essa peça de crochê, que te acompanhava em silêncio, se transformou na sua “voz interior” e neste convite à escuta? Qual é a diferença entre tocar para o olhar do público e tocar para essa memória silenciosa do seu Gunûncho?
Gabriele Leite: Boa tarde, muito obrigada! É um prazer estar aqui. Bom, o Gunûncho, como você disse, é esse lugar de acalanto, de quietude. O disco conseguiu transbordar muito desse sentimento. Embora tenha reminiscências do meu primeiro trabalho – Territórios –, as faixas aqui são mais calmas e contemplativas. Todo o processo criativo, desde a descoberta das compositoras até a construção do repertório, foi pensando nessa coisa de contemplação. Vivemos uma vida tão corrida e acelerada, cheia de horários… Esse disco vem para relaxar, para ser um momento de você consigo mesmo. Na construção das faixas, eu pensei numa escuta do público, mas nesse sentido de pausa.
TMDQA!: E inclusive, sobre essa escuta íntima perfeita para “um sábado de manhã pós-café”, como a Rocinante, com seu formato em LP, contribuiu para criar o ambiente de escuta desacelerada e ritualística que o álbum propõe? Ainda mais na era dos streamings.
Gabriele Leite: Nossa, a Rocinante é incrível porque instiga muito os artistas a procurarem obras e arranjos que contemplem diversas visões sobre a música. O mais legal que vejo na Rocinante é a fotografia que eles criam.
No momento em que tudo é digital, é muito especial ter a mídia física, o vinil, onde você coloca a agulha e sai um som. Isso é uma marca histórica no espaço-tempo. Toda a ambientação criada pela gravadora foi incrível, desde o primeiro dia de estúdio em Araras, uma zona de mata quieta. Foi um retiro que contribuiu ainda mais para o conceito do disco!
TMDQA!: Você sempre menciona que Gunûncho sugere um “desmame de narrativas amarradas” e marca o seu lapso criativo como compositora, algo que vinha amadurecendo há anos, com os nano-estudos em Nova Iorque. Houve algum gatilho emocional ou visual que te liberou para essa nova faceta?
Gabriele Leite: Esse processo criativo foi coordenado por um grande amigo, o Pedro Matos, meu diretor criativo no projeto, que sempre me instigou a compor. Ele dizia: “Gabi, você é uma compositora, não apenas de notas, mas de performance”. Eu me desafiei no final de 2023: “vou tentar compor alguma coisa até virar o ano”. Eu estava sozinha, no inverno de Nova Iorque, e as atividades eram mais internas. Peguei o computador, sentei e o Gunûncho (o primeiro dos nano-estudos) saiu em cerca de 40 minutos, de forma muito intuitiva, explorando harmonias no violão.
O nome “nano-estudos” foi uma forma de fugir dos “moldes clássicos”. Eu tenho um amigo físico que estuda nanotecnologia, e pensei: por que não nano-estudos? São peças pequenas, mas que sugerem profundidade. É genial. [risos]
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TMDQA!: A frase “Feche os olhos, cada nota que você ouvirá são mulheres dizendo: ‘A nossa música não é aquilo que você quer que ela seja.'” é poderosa. Ao traduzir para o violão obras de compositoras que não tocavam o instrumento (Chiquinha Gonzaga, Lina Pires de Campos, Tania León e Thea Musgrave), o que você descobriu sobre a linguagem e o potencial do violão?
Gabriele Leite: Essa é uma ótima pergunta. O interessante é que, ao pegarmos a partitura delas, que é uma linguagem, e transmitirmos para o violão, sabendo que a pessoa que escreveu não é violonista, nós temos que nos moldar. É preciso pesquisar o que elas estavam fazendo em outras obras para entender a correlação, ou se é apenas uma imagem externa que elas tinham do instrumento.
As peças no disco – de León e Thea Musgrave, por exemplo – representam a percepção dessas compositoras sobre o violão. Elas enxergavam o instrumento de uma maneira, mas nem sempre funcionava exatamente como escrito. Isso nos mostra o quão versátil e importante é o violão, que alcança esses outros espaços. Meu objetivo é reavivar essas memórias e ampliar o palco para compositoras que não necessariamente tiveram engajamento para ter suas obras escutadas.
TMDQA!: Se Gunûncho fosse um diário de bordo da sua jornada de 2023 a 2025, tem alguma página que seja a mais vulnerável, que você sente ter virado para o público neste disco?
Gabriele Leite: Sim, Gunûncho é sobre amadurecimento – tanto no nível pessoal quanto profissional. É a Gabi instrumentista se consolidando, e as responsabilidades e expectativas criativas chegando. Para mim, foi uma mudança de chave em coisas que eu queria desconstruir no meu fazer musical, sabe? O violão clássico me trouxe até aqui, mas com Gunûncho, a ideia é transformar essa conexão com a música.
O mais vulnerável foi decidir fazer algo inesperado. Uma amiga me disse: “Eu estava esperando outra coisa, mas o que você nos presenteou é maravilhoso porque é muito diferente do primeiro disco. Territórios era virtuoso; este é um acalanto”. A virada de chave foi não querer mais me provar o tempo inteiro enquanto violonista.
TMDQA!: Desde a lista Forbes Under 30 até o doutorado em Nova Iorque, sua trajetória é de consolidação internacional. Gunûncho é um cartão de visitas diferente para o público europeu e americano em comparação com Territórios?
Gabriele Leite: Sim, é diferente porque ele vem para ampliar a escuta de repertório. Eu já vinha plantando essa ideia de questionar: “Estamos escutando o feminino na música?”. Gunûncho vem para dizer: “Gente, a gente precisa escutar mais mulheres compositoras.”
Para o público estrangeiro, é uma provocação: “Caramba, quem é Thea Musgrave, trazendo algo que não estamos acostumados com?”. É a percepção delas. Eu me voltei mais para a minha cultura e me conectei com minhas raízes a partir do momento que saí do Brasil. O disco propõe que esse público entenda a importância de repertórios de mulheres que talvez não tenham o mesmo palco.
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TMDQA!: Após celebrar essas mulheres e trazer suas próprias peças à luz, qual é o próximo tema ou desafio que a Gabriele Leite – agora compositora-, planeja explorar?
Gabriele Leite: Eu estou me aventurando em outras coisas! O próximo disco provavelmente não será solo. A ideia é fazer um trabalho de música contemporânea com música regional brasileira.
Quero explorar a “Gabi arranjadora” e trazer a música contemporânea para um público maior, para que as pessoas vejam que é algo interessante e com perspectiva. Um próximo passo também pode ser um disco de violão com voz, convidando cantoras (eu não cantando, claro! [risos]) para mostrar a versatilidade do violão.
TMDQA!: E Gabi, para finalizarmos esse papo sensacional: você considera ter mais discos que amigos? E se pudesse escolher algum álbum importantes para sua trajetória, qual seria e por quê?
Gabriele Leite: Nossa, muito mais discos que amigos! Sim, fácil. [risos]
Em relação aos discos importantes, tenho fases, mas ultimamente:
- Anelis Assumpção – Sal: Uma artista completa (participei desse disco).
- Liniker – Indigo Borboleta Anil: Gosto muito do primeiro álbum de Liniker, e claro, todo meu amor para CAJU também.
- Gilberto Gil – O Sol de Oslo: Foi como “o melhor amigo que eu podia ter encontrado na rua”.
- Milton Nascimento – Travessia: A música dele tem uma profundidade incrível, impossível não falar do Bituca.
- Cartola e Nelson Cavaquinho: Grandes referências, especialmente a forma icônica como Nelson toca violão.
Sim, sou de poucos amigos, mas muitas dessas referências musicais que mencionei são essenciais!
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