Percussionista do Jamiroquai lança álbum solo
Foto: Reprodução

Percussionista nigeriano-britânico de classe mundial e responsável por marcar o som do Jamiroquai há quase três décadas, Sola Akingbola lançou em junho seu segundo álbum solo, How Should I. O trabalho chega acompanhado pela banda The Eegun Rhapsodies.

O disco, que mistura inglês e iorubá, sai pelo selo independente Hipsync Records, fundado pelo próprio artista. A obra apresenta o nascimento do Black Atlantic Funk, novo gênero musical fluido que combina afrobeat, jazz, funk, ritmos da diáspora e ancestralidade. Este novo álbum ilustra como o percussionista cria gêneros inovadores.

Não é afrobeat. Não é hip-hop.
Não é jazz, mas dizem: ‘podemos ouvir tudo isso na música.’

Sola Akingbola

Em entrevista exclusiva ao TMDQA!, Sola falou sobre a cultura iorubá que o guia. Ele mencionou a descoberta tardia de que a avó era uma multiartista, a decisão de não lançar o disco nas principais plataformas de streaming e sua conexão com a música brasileira.

É um chamado dizendo: ‘Tem mais alguém aí que consegue se conectar com isso e me responder de volta?’ Estamos chamando com o álbum. Agora, esperamos a resposta.

Se você leu Jamiroquai e espera algo semelhante, esqueça. A banda britânica de acid jazz, liderada por Jay Kay, será uma das atrações do Rock in Rio 2026, no dia 11 de setembro, como já contamos por aqui, mas o trabalho solo de Akingbola pouco tem a ver com essa outra ocupação.

Em How Should I, o compositor mergulha na consciência de suas raízes. Ele atravessa o oceano da diáspora com onze faixas que inauguram o Black Atlantic Funk. Boa parte do disco surgiu de forma intuitiva, quase mediúnica. No processo, ele conecta percussões da África Ocidental à cadência afrofuturista do funk, da dança e da espiritualidade.

Pedi a Sola que explicasse o conceito em uma frase. Muito carismático, ele riu e disse que era difícil:

“É um movimento de consciência. Um movimento que faz: bam, bam, bam, bam, bam. Nos lugares onde as pessoas gostam de se mover, elas vão entender. Se você não gosta de se mover, talvez demore um pouco mais. Todo mundo que ouviu o álbum me diz: ‘Não conseguimos rotular isso.’ ‘O que é isso?’ ‘Não é afrobeat.’ ‘Não é hip-hop.’ ‘Não é jazz.’ Mas dizem: ‘Podemos ouvir tudo isso na música.’ Para mim, estou criando um novo caminho. Em iorubá, chamamos isso de Ogun. Ogun é o orixá da transformação, do ferro e da guerra, mas não só da guerra física. Ogun fala da guerra interna que cada um de nós trava.”

O que é Black Atlantic Funk?

Embora o próprio artista não defina o estilo de forma rígida, algumas características são marcantes no álbum. As melodias que conhecemos como soul e blues, as harmonias que passeiam entre o jazz, o afrobeat e a música popular, além de percussões intensas, baixo elétrico pulsante, sintetizadores e efeitos que criam texturas futuristas em estruturas musicais pouco convencionais. 

Essa descrição ganha sentido à luz do conceito de Atlântico Negro, formulado pelo sociólogo inglês Paul Gilroy. Ele descreve uma cultura híbrida e transnacional, forjada no deslocamento forçado de corpos africanos para o outro lado do oceano. Essa cultura escapa a rótulos fixos e dissolve fronteiras entre origem, estilo e pertencimento.

Sola entende isso muito bem. Nascido na Nigéria e levado muito cedo para Londres, ele começou sua jornada musical nos anos 1990. Ele foi inspirado por artistas como King Sunny Adé e Gasper Lawal. A segunda faixa do álbum, uma das mais envolventes, “Everyday”, soa como um retrato íntimo da história do artista. Ela une os filhos da diáspora.

Além de homenagear os sonhos que sua família cultivava, a canção é dedicada a todos que já buscaram um novo começo ou que carregam, em si, as esperanças de seus antepassados.

All souls from Africa

Your time has come around 

Stand steady, keep your eyes to higher ground

Todas as almas da África

A hora de vocês chegou

Mantenham-se firmes e olhem para o alto

“Acho que, como artistas e pessoas criativas, é muito importante que desafiemos as construções sociais do ser. Para mim, é isso que esse álbum representa. Não é apenas sobre música. É um veículo para explorar o que quero dizer com ‘os iorubás’. […] A beleza que surgiu dessa experiência traumática e dura é, para mim, ilimitada. Beleza em termos de som, de cultura, de novas ideias, de como abrir novos espaços com esses novos povos, isso é uma afirmação muito mais poderosa do que chamá-los de ‘descendentes de escravos”

Canções que contam histórias

O álbum traça um mapa sonoro que vai do íntimo ao político, do contemplativo ao dançante. “Touch My Soul”, uma das músicas mais relevantes do disco, levou duas décadas para ser finalizada. Isso se traduz na profundidade emocional que carrega. Em “Ni Bo Ni Babee”, Sola apresenta uma sonoridade mais meditativa.

Já em “My Brother’s Keeper”, o foco muda. A letra aborda exclusão social e vulnerabilidade com crueza, e a música ganha contornos mais dramáticos. A faixa “Look At You” revela o lado mais cinematográfico de Sola, com arranjos de cordas densos, e reflete sua experiência como compositor de trilhas.

Esta habilidade lhe rendeu o prestigiado Prêmio BMI de Melhor Trilha para Cinema e TV por dois anos consecutivos, em 2023 e 2024. A surpresa instrumental fica por conta de “Dagley’s Ayinla”, um jazz-funk de precisão cirúrgica. Nela, cada músico parece conversar um com o outro.

“Eu reconheço esse som no Brasil”

Não por acaso, é possível identificar traços do Black Atlantic Funk em várias partes do mundo, incluindo o Brasil.

Eu reconheço esse som no Brasil. Reconheço em Cuba. Reconheço em Nova York. Sei de onde vem. E amo a forma como ele muda por estar em um lugar diferente. Mas tem algo essencial nele que nunca muda. E eu reconheço isso.

Akingbola reconhece na música brasileira uma construção rítmica com raízes semelhantes às da sua própria linhagem. Ao falar de influências, ele cita o amor por gigantes: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Naná Vasconcelos, Airto Moreira e Sérgio Mendes.

“Cresci dançando essa música. Eu era DJ também. Então, para mim, dançar é muito importante. O sentimento que tenho pela música brasileira veio do corpo, da dança. Como aconteceu com a música cubana e com a música negra americana.”

“Olukumi (My Friend)” é uma das faixas mais dançantes do álbum. Ela conta com a versão ao vivo gravada no lendário estúdio londrino Abbey Road, casa do décimo primeiro álbum de estúdio da banda de rock inglesa The Beatles, lançado em 1969.

Desde o início, a faixa prende o ouvinte ao mesclar samba com uma convocação direta aos filhos da diáspora no Brasil. Sola afirmou que espera que os ouvintes brasileiros se conectem com as letras. Em versos como “Mo fẹ́ kí gbogbo ọmo Ọ̀yọ́ ní Bahia”, que significa “quero saudar todas as crianças de Ọ̀yọ́ na Bahia”, a voz forte do dançarino nato constrói uma ponte espiritual entre a língua iorubá e o imaginário brasileiro, cantando para os seus e para nós.

Ao trazer essas referências para o centro da canção, pergunto a ele se acredita que as pessoas estão preparadas para ouvir palavras em iorubá e menções aos orixás africanos. No contexto brasileiro, esse questionamento ganha ainda mais força. Segundo o último Censo, de 2022, religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, foram as que mais cresceram no país. Elas registraram um aumento de 233% e alcançaram 1% da população. Ele responde com honestidade:

“A hora da mudança é agora. Acho que há uma nova geração de meninas e meninos muito espertos. São muito inteligentes e estão fazendo as perguntas certas, do tipo: ‘Espera aí, vocês disseram que esse povo era selvagem. Vocês disseram que esse povo não podia fazer isso. Que eles não podiam fazer aquilo.’ E agora estamos descobrindo que, naquele continente, esse povo criou ideias, conceitos e dinâmicas incríveis. E parte disso chegou ao novo mundo por meio de uma experiência traumática. Isso é uma prova clara do poder e da magia que esse povo possui.”

A escola Jamiroquai

Em 1997, Sola entrou para o Jamiroquai e, ao longo de vinte e oito anos, se tornou um dos pilares rítmicos da banda, tocando nos maiores palcos do mundo. A longa parceria com o líder e cantor Jason Kay é marcante não só pela projeção internacional, mas também pelo rigor criativo nos bastidores. “Uma das grandes qualidades de J.K. é que ele é implacável no estúdio. Ele não se apega às coisas”, lembra.

Se algo não funcionava para ele, mesmo que todos nós achássemos que era uma música brilhante, ele mudava tudo. No dia seguinte, voltávamos ao estúdio e ele já tinha apagado tudo.

Essa busca obsessiva pela materialização do imaginário musical deixou uma marca no percussionista.Eu realmente admirava essa determinação. E gostava do fato de que J.K. nunca se deixava apressar. Você não podia apressá-lo.

É uma filosofia que Sola carrega para o projeto solo.

Fora do mainstream por escolha

O álbum completo pode ser ouvido com exclusividade no Bandcamp. Só a primeira parte do disco, lançada em outubro passado, está disponível em plataformas de streaming. A decisão de manter o disco fora do Spotify se soma a um movimento crescente no meio artístico.

Recentemente, a banda australiana King Gizzard & The Lizard Wizard retirou seu catálogo da plataforma após vir à tona que Daniel Ek, CEO do Spotify, investiu 600 milhões de euros em uma startup de tecnologia de defesa militar baseada em inteligência artificial.

“Tenho lido muito sobre o que eles estão fazendo com os lucros enormes, investindo em IA e em armamentos militares. Acho muito difícil aceitar isso. Estão usando os lucros gerados por pessoas criativas, jovens vulneráveis tentando encontrar seu caminho através da música, tentando se expressar. […] Uma vez que você entende como quer se mover, vai ficar mais claro para onde você quer ir e do que precisa se afastar. E, lendo sobre o Spotify, sinto que preciso me afastar. O Spotify está criando ainda mais vantagens para as grandes gravadoras. Quando a plataforma foi criada, não havia um único artista, compositor ou músico na mesa de negociação. Nenhum.”

O álbum nasceu longe do circuito comercial, com outra urgência, e Sola não parece preocupado com métricas.

“Talvez não seja sobre o retorno financeiro. Talvez seja sobre a investigação, a jornada. E quando tocamos ao vivo, se eu tiver 50 ou 100 LPs, posso vendê-los no local. Existem outros caminhos. Estou convidando as pessoas a participarem do som, não só para nos assistirem. Seria incrível estarmos no palco e eu apresentar músicos incríveis de São Paulo, ou do Rio, ou da Bahia, que vocês já conhecem, e tocarmos juntos. Esse é o plano.”

O homem por trás do tambor

Conversar com Sola é como entrar em contato com uma sabedoria que vai além da música. Ele medita, caminha todos os dias para se conectar com a natureza, dança como quem se entrega ao ritmo da vida e faz da intuição sua bússola criativa. Suas colaborações atravessam gerações e estilos, incluindo parcerias com nomes como David Bowie, Stevie Wonder, Damon Albarn, Tony Allen, Lokua Kanza e Idris Elba.

Aos 55 anos, ele conta que só descobriu sua linhagem artística depois dos 30. O pai, um acadêmico, havia escondido tudo, com a intenção de que os filhos seguissem os mesmos passos nos estudos. Foi só após assistir a um show do Jamiroquai que a verdade veio à tona, nos bastidores, em lágrimas: Sola, eu te devo um pedido de desculpas. Vi no palco que você é filho da minha mãe.”

Foi assim que ele soube que vinha de uma família de artistas Egungun, que se apresentavam para famílias nobres no norte da terra iorubá. Sua avó era a estrela do grupo: cantora, dançarina e imitadora brilhante. O lado artístico também se estende ao irmão, o ator e produtor Jimmy Akingbola, e a filha, Fola Evans-Akingbola, que também é atriz, conhecida por papeis em filmes e séries como The Night Agent (2023), da Netflix.

À falecida avó e pais, Sola dedica a faixa de abertura do álbum, em que canta em iorubá as palavras “Ó dìgbà” e “Ó dàrìnnàkò”, que significam ‘adeus’ e ‘até que nossos caminhos se cruzem novamente’. É um gesto de despedida, mas também de continuidade, o mesmo espírito que permeia todo o disco. Ao falar sobre influências e pertencimento, Sola revela o coração do projeto e mostra exatamente o que esse trabalho carrega e o que entrega ao mundo:

“Entende o que quero dizer sobre acessar diferentes mundos? Não precisa ser tudo iorubá. Nem tudo espanhol ou chinês. Pode ser tudo. Basta usar o que te faz bem. Não importa de onde vem. Essa é a beleza da influência. A influência não liga para sua cor, gênero, raça, posicionamento político ou religião. Se você gosta, você gosta.”

How Should I é isso. Um convite à travessia, à escuta, ao encontro. Não importa de onde você vem. Se a música te tocar, já é sua.

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Liz Sacramento

Liz Sacramento é jornalista há 10 anos e cantora. Já passou por grandes telejornais da TV aberta, e atualmente atua como correspondente internacional. Ao longo da carreira, percorreu diversos estados do país cobrindo grandes eventos, política, cultura e meio ambiente. Com paixão pela música, pesquisa trajetórias sonoras marcadas por autenticidade, identidade e transformação social. Sempre sonhou em unir jornalismo e música, e para isso tem se dedicado a escrever sobre narrativas que celebram a música preta, brasileira e global.

Liz Sacramento é jornalista há 10 anos e cantora. Já passou por grandes telejornais da TV aberta, e atualmente atua como correspondente internacional. Ao longo da carreira, percorreu diversos estados do país cobrindo grandes eventos, política, cultura e meio ambiente. Com paixão pela música, pesquisa trajetórias sonoras marcadas por autenticidade, identidade e transformação social. Sempre sonhou em unir jornalismo e música, e para isso tem se dedicado a escrever sobre narrativas que celebram a música preta, brasileira e global.