CENA 2K
Foto: Divulgação

Veja o resumo da notícia!

  • O CENA 2K, festival de rap, enfrentou problemas de organização e cancelamentos na edição de 2025, expondo falhas na profissionalização do setor.
  • A falta de informação, cancelamentos de artistas e problemas de estrutura marcaram o evento, culminando na interrupção por questões de segurança.
  • Episódios similares em outros festivais evidenciam a fragilidade do rap nacional, com eventos mal planejados e falta de compromisso com a cena.
  • A crise do CENA 2K é resultado de decisões ruins e negligência, exigindo responsabilização dos organizadores e reflexão sobre o futuro do hip-hop.
  • A entrada de festivais internacionais representa uma ameaça à cena nacional, com potencial para elitizar o acesso e não fomentar a cultura local.
  • Existem exemplos de festivais nacionais sólidos, mostrando capacidade interna para construir uma cena forte, profissional e independente no país.
  • É preciso priorizar organização, respeito e valorização do trabalho, em vez de aceitar condições precárias e romantizar o improviso na cultura hip-hop.

O CENA 2K nasceu em 2019 com a proposta de ocupar um espaço que faltava ao rap brasileiro: o de um grande festival capaz de unir artistas consolidados, novos nomes e atrações internacionais em um mesmo ambiente.

Nas suas primeiras edições, mesmo com erros naturais de crescimento, o evento ainda oferecia uma estrutura razoável e um caminho promissor para se tornar uma referência anual da cultura hip-hop.

A edição de 2025, porém, quebrou essa trajetória de forma brusca. O festival não entrou apenas para a lista de eventos problemáticos, ele se tornou um símbolo de como o rap brasileiro, enquanto indústria, ainda tem problemas profundos de organização, profissionalização e responsabilidade cultural.

Erros e cancelamentos

A pré-venda de ingressos foi aberta antes do anúncio do line-up. A justificativa não é explícita, mas é impossível ignorar o histórico de prejuízos das edições anteriores, que pode ter levado a organização a buscar segurança financeira antecipada. O problema é que essa escolha já minou a confiança do público e sinalizou um desalinhamento entre ambição e capacidade de entrega.

Quando os primeiros nomes foram divulgados, Young Thug, A$AP Ferg e Skepta, apenas o primeiro foi tratado como headliner, enquanto os principais headliners de sexta e sábado nunca foram anunciados, nem mesmo às vésperas do evento. E, quando a sexta-feira chegou, o festival ainda não havia divulgado o line-up detalhado, nem os horários dos shows, nem a lista final de artistas confirmados.

Para um evento desse porte, a falta de informação básica não é apenas uma falha operacional: é um sinal claro de desorganização profunda.

O primeiro dia foi marcado por cancelamentos sucessivos, começando por atrações internacionais — como Lil Gotit — e seguidos por artistas brasileiros em ascensão, como a rapper Plumasdecera alegando que o festival anunciou seu show sem aceitar pagar o cachê solicitado. Ao passar das horas, Ferg e outros nomes internacionais, incluindo o único headliner Young Thug, também anunciaram que não viriam mais ao Brasil.

A programação, quando finalmente veio à tona, mostrava palcos com shows encavalados, sem pausas, sem transição e sem condições de cumprir horários minimamente viáveis. Esse cenário levou a atrasos em cadeia e ao cancelamento de apresentações, como aconteceu com Ryu, The Runner, que soube que não se apresentaria enquanto estava no camarim.

Além disso, artistas relataram problemas graves de camarim e alimentação, mudanças de horário sem aviso e tempo de show reduzido de forma arbitrária. Os rappers LH Chucro, Trunks e Alee tiveram seus microfones cortados — assim como o rapper Djonga, na primeira edição do festival.

Confusão no CENA 2K25

Na noite de sábado, um atrito envolvendo a segurança da Neo Química Arena, o estádio do Corinthians, levou ao fechamento dos acessos aos camarins e à interrupção da programação.

Segundo relatos, o rapper Kyan se apresentaria com um adereço do Santos, e a administração do estádio proibiu o acesso dos artistas aos camarins. Na sequência, a equipe do rapper Major RD forçou a entrada no local, quebrando uma das portas de acesso e atirando uma bomba caseira dentro do local.

No domingo, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros não concederam alvará para a continuidade do evento, resultando no cancelamento completo do terceiro dia. O episódio foi grave, mas ele não deve ser analisado isoladamente. Ele apenas acelerou o fim de um festival que já havia colapsado do ponto de vista operacional.

Um problema profundo na cena

O caso do CENA 2K não é um ponto fora da curva. O rap nacional acumula episódios semelhantes: o REP Festival, no Rio de Janeiro, já havia apresentado falhas graves de infraestrutura e segurança; o Trappy Festival foi cancelado após o anúncio por motivos contratuais e falta de organização.

São sinais de uma lógica que se repete, com os artistas, o público e a própria cultura sendo colocados ao redor de eventos mal planejados, administrados por estruturas frágeis e, em muitos casos, conduzidos por pessoas que não possuem vínculo real com a cena.

Além disso, o CENA 2K — idealizado por Alex Ribeiro e Gabriel Romano—, não pode ser tratado apenas como um erro “do festival”, como se a falência organizacional pudesse ser jogada sobre um CNPJ abstrato. Eventos não se estruturam sozinhos. Eles têm responsáveis, decisões, escolhas. É essencial que quem concebeu e executou o CENA 2K25 dê a cara, explique o que aconteceu e seja responsabilizado publicamente pelo desastre que entregou à cena.

A crise do festival não ocorreu por má sorte, ela é resultado direto de decisões ruins, falta de planejamento, negligência com artistas e público, promessas que não poderiam ser cumpridas e uma ambição desconectada da capacidade real de entrega. Esses erros têm donos. E é preciso dizer isso com clareza.

A cultura hip-hop sempre se sustentou na disciplina, na responsabilidade comunitária e na ética. Quando os eventos passam a operar sob lógica do amadorismo, vaidade e ganhos imediatos, esses princípios se perdem — e com eles se perde também a credibilidade da cena.

Do lado dos artistas, também existe um ponto que não pode mais ser ignorado. A visibilidade é importante, mas não pode continuar justificando a aceitação de condições indignas de trabalho. O rap cresceu demais para que artistas topem horários inviáveis, estruturas precárias, falta de pagamento, atraso de informações e improviso como regra. O respeito pelo próprio trabalho também exige negar certas propostas, porque aceitar esse tipo de evento legitima uma lógica que já demonstrou ser insustentável.

Enquanto organizadores se escondem atrás da marca do festival e artistas se calam para “não perder oportunidade”, todo mundo perde: a cultura, o público, o mercado e a credibilidade do rap. E esses casos se repetem porque há anos ainda naturalizamos o amadorismo e usamos o subterfúgio de ser “o real trap” para justificar eventos ruins.

Players internacionais são a solução?

O fracasso do CENA 2K também abre espaço para a entrada de festivais internacionais, como o Rolling Loud, que já sinalizou interesse no mercado brasileiro. À primeira vista, isso pode soar como um avanço. Mas, na prática, representa uma ameaça ao fortalecimento da cena nacional.

Muitos argumentam que a entrada de festivais internacionais como o Rolling Loud é positiva porque “o público quer ver seus ídolos gringos”. Esse desejo é legítimo. Mas a realidade é que a chegada desses players não democratiza o acesso, ela elitiza.

Atrações internacionais vêm dolarizadas, os ingressos seguem a mesma lógica, e o acesso se torna limitado a uma parcela muito pequena do públicom principalmente em um país onde o real está desvalorizado.

Além disso, esses eventos não têm compromisso algum com o rap brasileiro. Eles chegam trazendo seus próprios line-ups, suas próprias prioridades e sua própria lógica de mercado. Não fomentam a cena local, não oferecem espaço significativo para artistas nacionais e não deixam legado estrutural. Eles apenas ocupam o mercado e extraem lucro.

É uma lógica clara de colonialismo cultural: importar o modelo, ocupar o território, sugar a demanda, esvaziar a economia local e levar o lucro para fora. Nada fica aqui.

Além disso, o problema não é falta de capacidade interna. Pelo contrário: há festivais sólidos no país: Rap in Cena, Sons da Rua, Alma Festival, e eventos estruturados criados pelos próprios artistas, como os de BK‘ e Matuê. Esses exemplos mostram que existe conhecimento, capacidade técnica e público para sustentar uma cena forte, profissional e independente.

O CENA 2K não pode ser tratado como um fracasso individual, mas como um alerta coletivo. O episódio deve servir como gatilho para que toda a cena — artistas, produtores, empresários, público e comunicadores — reflita sobre o que espera do hip-hop daqui para frente.

Não dá mais para aceitar improviso como regra. Não dá mais para colocar “visibilidade” acima de respeito. Não dá mais para normalizar atrasos, cancelamentos, desinformação e instabilidade. Não dá mais para romantizar o “corre” quando o corre é fruto de descaso.

A cultura hip-hop sempre se fundamentou em organização, inteligência comunitária, disciplina, autonomia e construção coletiva. Esse é o único ponto de partida possível e seguro para que a cultura cresça de forma saudável e sustentável.

Felipe Mascari
Rap em Pauta com Felipe Mascari

A coluna que mergulha nas histórias, letras e batidas que estão redefinindo o cenário musical do Rap. Acompanhe de perto os lançamentos e a força das rimas que ecoam pelas ruas.

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