Rafael Bittencourt se prepara para desbravar universo infantil

No sofá do centro da sala, dedinhos pequenos corriam, escalavam e saltavam entre as almofadas-cordilheiras. A orquestra na TV Cultura fazia a trilha sonora da aventura. Os pais dormiam enquanto a imaginação tenra dos 4 anos estava acordadíssima, alimentada por música e por uma criatividade especializada em criar mundos desde sempre.

Os dedinhos nunca pararam de assumir movimento e, cada vez mais acelerados, um dia pousaram numa guitarra para correrem indefinidamente entre toneladas de notas que transformaram seu dono em sumidade no instrumento. Os projetos de mundos imaginários idem: ficaram cada vez mais sofisticados arquitetando obras que arrebatam multidões.

O menino fez sua travessia e os 54 anos já acenam no horizonte do final do mês. Ele se vai, mas deixa para o mundo Rafael Bittencourt. Para este Dia das Crianças, comemorado em 12 de outubro, o guitarrista e fundador do Angra bateu um papo com o TMDQA! sobre sua intenção de lançar-se na música infantil.

Lya Luft acertou quando disse que a infância é um chão que pisamos a vida inteira. Para muitos de nós, será um algo a ser curado num grande “programa de redução de danos” que se arrastará por toda existência. Para Rafael (gracias!), a via é de bem aventurança e isso se reflete na arte que entrega e na forma de enxergar as coisas.

Ele revela que a infância é o seu grande refúgio, um lugar mental que revisita com frequência em meditações, em busca de segurança, serenidade e criatividade atrás de um estado de espírito que sua criança carregava.

A vontade de fazer músicas para as infâncias parte de um lugar onde ele mesmo é muito bem relacionado: ele gosta e cresceu cercado delas. É pai e curiosamente tem o sonho de ser avô! Além do mais, artistas carregam, todos eles, muito do arquétipo infantil, um puer aeternus, ao se permitirem ser gente grande que cria e “inventa moda”, como diria nossa avó.

Ele explica que o primeiro ato do que pretende criar em termos de música – mas não só – será dedicado às grávidas. Para ele é importante considerar que é ali que a criança emerge como esse-vir-a-ser no mundo. A simbiose mãe e bebê é algo de fato singular e ele não pretende apartar a mulher do processo, nem o organismo família como um todo deste seu trabalho.

Embora não tenha ainda criações de fato, ele suspeita que pode haver algo de embrionário nas músicas que fez há muitos anos para seu filho enquanto criança, mas que nunca registrou.

Como quase todo artista que se dedica às infâncias, ele entende que a arte tem potencial de ser um ponto de virada na cultura e dar melhores direcionamentos à quem está começando na senda da vida. Ele considera que as crianças estão um tanto perdidas com informações conflitantes que recebem da escola, da família, da religião, da internet.

Então mais do que canções de ninar, que devem aparecer, na fase da gravidez, a maior parte das letras pretende cutucar o bichinho do questionamento nos pequenos sendo um contraponto às músicas dedicadas ao ensino ou somente ao lúdico. “A minha parada é ser um pouquinho mais provocativo e menos bonitinho”, diz.

Ele considera que a arte é muito mais do que algo que embeleza o mundo — ela o transforma.

“Essa é uma verdade absoluta na minha vida: minha arte é para gerar transformação. E o mundo precisa dessa transformação. Acredito que ela começa na forma como instruímos e nos comunicamos com as crianças, que chegam ao mundo com um ‘hardware’ mental cada vez mais sofisticado. O cérebro humano é surpreendente em sua capacidade de adaptação e aprendizado, especialmente diante das mudanças tecnológicas. Mas, ao mesmo tempo, as crianças estão emocionalmente perdidas, e é nesse ponto que a arte pode entrar como guia e referência”.

O projeto não deve se restringir ao heavy metal; outras possibilidades de ritmos farão parte. A ideia de Rafael é desdobrar as canções em audiovisual, livros, teatro e criar uma grande frente de comunicação ampla com as crianças, abarcando também seu podcast Amplifica, canal dedicado a música na Internet.

“As pessoas têm ideias muito definitivas e esquecem que as interrogações que o artista propõe importam. Hoje, o artista é mais cobrado por atender expectativas do que por provocar ou mexer com a alma e isso me cansa. Trabalhar com crianças é diferente: elas são páginas em branco, curiosas, e é mais fácil propor ideias que gerem perguntas e insights. Vejo nelas o ‘Reino dos Céus’, a ingenuidade e a humildade de quem sabe que não sabe tudo — um verdadeiro ponto de partida para a imaginação e o aprendizado”.

Entre a voz da avó e o rock da Turma da Mônica

O canto do Assum Preto se aproxima, não dos ouvidos, mas dos olhos, que fechados trazem de volta o passarinho injustiçado de Luiz Gonzaga que encontrava consolo na voz da avó de Rafael. Voltam também o cheiro da casa, as luzes amareladas, a textura do sofá — e a vida novamente se parece com os domingos de sarau e roda de violão no avô, as idas ao Sítio Santa Teresa (musicada no Bittencourt Project), mostrando que a música é um lugar subjetivo, feito não só de notas em velocidade shredder, mas também de sinestesia.

“Sou muito sensorial na hora de criar minhas músicas. Não penso só em notas ou letras; busco sempre construir um ambiente que existe aqui dentro, entende?”.

Influências Musicais

Rafael Bittencourt ouvia de tudo. Lembra da ‘Arca de Noé’, de Toquinho e Vinícius, e conta que o primeiro disco que o viciou foi a trilha sonora do musical Mônica e Cebolinha em Romeu e Julieta. Ele foi assistir à peça e saiu de lá decidido a ter o LP.

Pediu pra mãe que comprasse o disco, que, segundo ele, “era mó rockão, muito bem feito”, na linha Secos & Molhados, com pitadas de progressivo. Anos depois, descobriu que Marcio de Souza, irmão de Maurício de Souza, foi o responsável por boa parte das músicas do espetáculo e de outras trilhas da Turma da Mônica.

Ainda menino, ele ouvia de tudo: rock, Kate Bush no rádio (que surge mais tarde na obra do Angra), MPB, samba — herança da família —, música erudita, trilhas de desenho, de filmes. “Tudo que passava de música me chamava atenção”, resume.

“Boi da Cara Preta é total Heavy Metal!”

O Rafael que mostra publicamente ter um pé no mistério aguça muito os fãs entre teorias e verdades, e traz desde muito cedo — mesmo! — uma sensibilidade incomum.

“Eu tinha, o quê? Três, quatro anos?”, ele faz as contas enquanto conversamos sobre memórias da primeira casa que morou. “Eu tenho memórias que eu não sei se são fantasias, memórias da pré-vida, como se fossem lá da barriga da minha mãe, coisas assim. Muitos sonhos que eu tinha quando bem pequeno eram sonhos muito doidos”.

Esse era o Rafael, sempre muito criativo, tranquilo, curioso. “Eu era um anjinho, acho mesmo, um cara muito bonzinho”, diz, assim como lembra das muitas canções de ninar e cantigas de roda que a mãe cantava. Ele cita “Serenô” e “Boi da Cara Preta“.

“‘Boi da Cara Preta, pega essa criança que tem medo de careta’, é total heavy metal! No Brasil, especialmente, muitas canções de ninar são meio absurdas, cheias de tristeza: ‘Perdi meu anel, o anel quebrou’, ou ‘Fui no Tororó beber água e não achei…’. Cheio de desapontamentos e frustrações. E eu acho isso ótimo. O universo infantil não precisa ser sempre feliz; o final feliz não é obrigatório. Esse padrão, de esperar sempre finais felizes, pode gerar o chamado complexo de Cinderela, não só nas meninas, mas também nos meninos. Nem tudo termina bem”.

Rafael Bittencourt

Ao imaginar esse projeto infantil, Rafael sente uma luz atravessando o caos do dia a dia, trazendo esperança no meio dos problemas, das buchas e das preocupações da vida real. Sonhar com ele é, de certa forma, uma maneira de colocar de volta sua criança interior no comando, deixando-a falar mais alto, sonhar sem limites e lembrar que a magia de imaginar ainda pode transformar tudo ao redor. Feliz Dia das Crianças!

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