Kendrick Lamar é o mais adorado, temido, respeitado e reverenciado rapper da atualidade. São raros os que ousam criticá-lo, e ele de fato dá poucos motivos para isso: consegue combinar experimentalismos movidos por um ímpeto criativo sem barreiras dentro do universo pop, costurando cada passo com uma linha vigorosa que passeia com flexível vigor pela cultura negra, inspirado majoritariamente pelo rap de rua e muito pouco pela versão aguada dele, o hip-hop oco feito para boates. Ainda assim, consegue unir os dois mundos: é capaz de fazer ignorantes declamarem versos contestadores a plenos pulmões, e fazer o mais sério e antipático gangsta bater o pezinho com produções musicalmente ricas e cativantes.

Kendrick provocou furor com o conceitual good kid, m.A.A.d. city (2012), e a expectativa pelo seu próximo lançamento era palpável. Um verso furioso em “Control”, um b-side de Big Sean lançado online em 2014 monopolizou o Twitter por dias nos Estados Unidos pela agressividade de Kendrick direcionada a outros rappers (“sou cria de Makiavelli, sou o rei de Nova Iorque [Kendrick cresceu em Compton, na periferia de Los Angeles] (…) / o rolo compressor está na jugular de vocês, e vocês não me levam a sério (…) geralmente eu sou amigo de quem rima comigo, mas este é o o hip-hop e vocês deveriam saber que horas são / eu amo todos vocês, mas estou tentando matá-los”).

Enquanto isso, Taylor Swift postava vídeos de si mesma no Instagram cantando versos de Kendrick, “Bitch, Don’t Kill My Vibe” deixou de ser apenas mais um single de sucesso para virar hashtag e gíria, e ele ganhou um Grammy pelo outkastiano single “i”, em um mea culpa da indústria que ignorou Lamar no ano anterior, ao presentear Macklemore com o prêmio de Melhor Álbum de Rap. Em uma relação sadomasoquista com o pop, Kendrick passou a dominá-lo.

Por tudo isso, o lançamento cada vez mais próximo do terceiro álbum do californiano era esperado ansiosamente. Anunciado para 23 de março, o disco foi lançado no dia 15, em um suposto erro do selo responsável pelo disco nos EUA. Em uma coincidência questionável, To Pimp a Butterfly saiu no aniversário de 20 anos de Me Against the World, o disco mais intimista, confessional e importante da carreira de Tupac Shakur, o grande mentor de Kendrick, morto em um tiroteio em 1996 e figura primordial no conceito de To a Pimp a Butterfly. A hora havia chegado.

To Pimp a Butterfly é intrinsecamente complexo. Quase um mês desde o parto, o álbum segue intrigante e misterioso, da capa subversiva e provocadora ao corte repentino no fim dos 80 minutos de duração do disco. Para quem não cresceu com o inglês como língua-mãe, é ainda mais difícil, pois nem só de música se faz um trabalho desses, repleto de temas, ideias e reflexões elementares para uma absorção aceitável. O resultado, no entanto, é recompensador.

O jazz livre de “Wesley’s Theory” abre as portas com produção impecável de Flying Lotus, versos igualmente livres de Kendrick sobre a vida pós-sucesso comercial, participação discreta do papa do funk George Clinton e a primeira aparição de Thundercat, um dos melhores baixistas da atualidade, que permeia quase todas as músicas de To Pimp a Butterfly.

Kendrick Lamar - To Pimp A Butterfly

O azedume cítrico do jazz segue no interlúdio “For Free?”, que conta com um flow virtuoso do rapper de Compton, e antecede o groove e a positividade de “King Kunta”, segunda faixa do álbum a ganhar clipe, e exemplo ideal da habilidade de Kendrick em tornar o pop contestador: é hit certo nas pistas, enquanto louva, como rei, o escravo africano Kunta Kinte, que no século XIX teve o pé direito amputado na Virgínia após sucessivas tentativas de fuga.

Em “Institutionalized” e “These Walls”, o hip-hop do começo dos anos 90 se junta com o R&B da mesma época para compor duas das músicas mais acessíveis do disco. “u”, contraponto a “i”, surge como devaneio experimental antes da ótima “Alright”, uma produção de Pharrell Williams moldada à perfeição para as paradas, inspirada por uma viagem que Kendrick fez à África do Sul. O baixo soul de “For Sale?”, outro interlúdio, encerra a primeira metade do álbum.

O lado B de To Pimp a Butterfly é mais denso que a primeira metade, inaugurada pela reflexão confessional de “Momma”, replicada sob outro ponto de vista na tensa “Hood Politics”. A culpa de Kendrick por negar esmola a um sem-teto viciado em crack na África do Sul é o mote dos excelentes versos de “How Much a Dollar Cost?”, que antecipa “Complexion (A Zulu Love)”, um hino contra o racismo com contribuição inspirada de Robert Glasper, um dos tecladistas mais inspirados e criativos da atualidade. Glasper reaparece em “The Blacker the Berry”, que aborda a questão racial de forma muito mais agressiva, ofensiva e visceral (“Meu cabelo é crespo, meu pau é grande, meu nariz é largo e redondo / Você me odeia, não é?”), com ofensas direcionadas até ao espelho, como quando Kendrick se chama de “o maior hipócrita de 2015” ao revelar as lágrimas após o assassinato do adolescente Trayvon Martin em 2012, tendo crescido em meio às guerras entre gangues na periferia de Los Angeles.

“You Ain’t Gotta Lie” soa com uma leveza estratosférica após o peso da anterior, e essa sensação é exacerbada por “i”, single lançado em setembro ano passado que volta a falar sobre a questão racial na sociedade americana, mas a partir de uma visão empoderada e positiva (“Definição de N-E-G-U-S [origem da gíria racial niggas]: realeza; Rei / descrição de N-E-G-U-S: imperador negro, rei, ditador (…) Kendrick Lamar, de longe o nigga mais realista vivo”). E eis que o álbum chega ao fim com a impressionante “Mortal Man”.

Com 12 minutos de duração, “Mortal Man” chamou pouca atenção pelo belíssimo instrumental; o foco ficou na seção iniciada na marca de 4:50, quando Kendrick entoa, pela primeira vez na íntegra, um poema escrito por ele mesmo cujos trechos foram citados em diversos momentos do disco, onde ele se pergunta sobre a forma como ele usa a influência dele, se para inflar o próprio ego ou para provocar algum tipo de mudança. Ao final da leitura, o rapper parece dedicar o poema a alguém não-especificado, até que a voz de Tupac surge, em uma conversa que quebra as barreiras do tempo, do espaço e da mortalidade, entre o rapper mais importante da atualidade e seu ídolo. Montada a partir de trechos de uma entrevista de Shakur a uma rádio sueca em 1994, o diálogo se encerra quando Kendrick lê outro poema, onde filosofa sobre a evolução de uma lagarta em borboleta – o que explica, em parte, o nome do disco, pergunta a opinião de Tupac e… Nada. O disco se encerra abruptamente.

Mesmo passeando com liberdade por tantos estilos musicais, To Pimp a Butterfly é hip hop, sim. E hip hop em seu grau mais profundo. É ousado, desafiador, inconformado, inteligente e criativo como o estilo sempre foi, mas todos nós parecemos ter esquecido enquanto iludidos pelo espetáculo teatral dos superlativos, pelos números em constante expansão durante tempos de crise, pelos sites de fofoca e pelas luzes estroboscópicas. Kendrick não se porta como galã, não parece ligar para a volatilidade da fama, e põe o sucesso na conta de um trabalho bem produzido. Assim, sente-se mais à vontade para divergir, incomodar, reinventar. Para colher das sementes plantadas em por Ornette Coleman e seu The Shape of Jazz to Come, para expandir as revoluções que a morte prematura de J Dilla não o permitiu concluir, e obviamente, para dar continuidade ao legado de Tupac, que para Kendrick é o equivalente na arte a ícones do movimento negro como Nelson Mandela, Malcolm X e Martin Luther King.

Uma obra-prima.

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