
Artigo assinado por Potyra Lavor, fundadora e CEO da IDW, hub de criação e produção de conteúdos e experiências que traduzem a essência do Brasil para o âmbito global, entrelaçando cultura, memória e inovação
Trazer um artista internacional ao Brasil é um ato que combina sonho, cálculo e risco. É, ao mesmo tempo, uma engenharia de bastidores e uma coreografia de desejos coletivos. Existe algo de poético em aproximar públicos, traduzir linguagens e materializar encontros únicos entre artistas e fãs. Mas por trás do instante mágico de um show, há uma arquitetura invisível: protocolos, contratos, fuso horários, autorizações, rotas aéreas, equipamentos compatíveis, e toda a teia de decisões que podem fazer um espetáculo nascer ou naufragar.
O processo não começa na compra de um show, mas na construção de uma narrativa. Entre agentes, management, produtores locais e marcas, a negociação é também exercício de leitura cultural: qual o momento da carreira do artista? Como sua imagem se conecta ao território que o recebe? Como esse encontro pode transcender entretenimento e gerar sentido coletivo? É aqui que a curadoria se torna mais que escolha estética, e sim uma ferramenta de mediação entre artista, plateia e território. Curar é dar contexto, criar coerência, amplificar histórias que precisam ser ouvidas.
Na prática, a produção é um tabuleiro de variáveis que raramente se encaixam de primeira. Um voo atrasado, um visto negado, um rider técnico inadequado ou até um imprevisto pessoal pode alterar todo o desenho. A produção internacional é regida pelo imponderável. Por isso, além da técnica, exige sensibilidade: compreender que lidamos com artistas e equipes atravessados pelas mesmas vulnerabilidades humanas de qualquer pessoa. As cláusulas contratuais, os seguros e protocolos de comunicação não são apenas burocracias: são a forma de proteger a confiança do público e a dignidade do artista. Mas há contratos em que o evento assume riscos gigantescos, enquanto o artista pode cancelar sem grandes consequências – muitas vezes sem sequer pagar multa. A assinatura precisa seguir o modelo proposto pelo management, e o peso do desequilíbrio recai sobre quem produz localmente, principalmente tratando-se de América do Sul de todas as diferenças cambiais. O resultado é um jogo em que, mesmo preparados juridicamente, seguimos vulneráveis ao inesperado – e a proteção real, no fim, está menos no contrato e mais na capacidade de resposta ética e estratégica diante das mudanças.
O que sustenta esse ecossistema é a curadoria entendida como compromisso coletivo. No AFROPUNK Brasil, por exemplo, esse compromisso é explícito: amplificar vozes negras, construir pontes entre culturas e impulsionar o impacto econômico nas cidades da diáspora que nos recebem. Nessas últimas cinco edições, nós da IDW coletamos histórias e tentativas para dar e vender, rs. Doechii, Amaarae, Victoria Monet, Jorja Smith, Beyoncé e Ms. Lauryn Hill são alguns dos nomes que passaram, adiaram, cancelaram ou surpreenderam em palcos produzidos pela IDW. Cada história carrega aprendizados sobre timing, negociação, adaptação e comunicação.
Em 2024, estreamos o evento itinerante AFROPUNK Experience, que naquele ano começava em Belém e então partia para São Paulo. E entre os estudos curatoriais, um nome que não saia do nosso radar era a cantora norte-americana Doechii, que na época vinha alcançando novos públicos aos poucos. Anunciamos então um line-up que trouxe dois nomes inéditos para o Brasil, Doechii e Amaarae. Junto desse timing, com o lançamento recente da sua mixtape Alligator Bites Never Heal e o sucesso viral da música “Denial Is a River”, ela se tornou um dos nomes mais comentados da música mundial – impulsionando performances notáveis que mais tarde se transformaram em indicações ao Grammy.
Com o boom, e inúmeros novos caminhos e portas, a rapper precisou recalcular rota – que desencadeou o cancelamento de sua apresentação no Brasil. Os imprevistos logo se transformaram em comunicados ágeis, anúncio de uma nova atração para completar o line-up, além de instruções sobre reembolso e crédito para os espectadores. Agora, em 2026, ela vem ao Brasil em um novo momento de carreira, com novos públicos, e confirmação de que o nosso olhar e curadoria seguem atentos, apontando para as direções certas. Esse episódio não fala apenas de surpresas ou cancelamentos, mas da essência da nossa curadoria: visão de futuro, coragem para apostar em nomes em ascensão e capacidade de transformação em momentos de crise. Quando Beyoncé desembarcou em Salvador, em 2023, para um Club Renaissance surpresa, ou quando Ms. Lauryn Hill assinou sua pop-up store em São Paulo em 2025, a lição foi a mesma: o imprevisível pode ser risco, mas também potência. E criou uma piada interna: entregamos desafios com resultados impecáveis em 4 dias.
Esses movimentos não são apenas culturais, são também econômicos. Cada artista internacional que aterrissa no Brasil movimenta cadeias locais – hotéis, restaurantes, transporte, pequenos negócios, ambulantes, costureiras, técnicos de som. Em Salvador, a circulação gerada por grandes festivais como o AFROPUNK alcança milhões e multiplica renda em microempreendimentos. Trazer artistas é também política pública não declarada, com impacto direto em empregos e autoestima coletiva.
Por isso, produzir experiências não é apenas sobre montar um espetáculo. É assumir responsabilidade sobre três dimensões inseparáveis: o público, o artista e o território. Essa tríade é o que mantém vivo o sentido de trazer o mundo ao Brasil. E é ela que nos obriga a operar com planos B e C, protocolos de crise, comunicação empática e visão ética. Trabalhar com música ao vivo é conviver com a incerteza – e é justamente essa incerteza que dá valor ao instante em que tudo se alinha. Porque quando conseguimos atravessar os imprevistos, alinhar logística, curadoria e comunidade, o que entregamos não é só entretenimento: é memória coletiva, é redistribuição de renda, é reconhecimento cultural. Cada show é um território de experimentação. Cada cancelamento, um laboratório de aprendizado. E cada encontro, quando acontece, é um ato transformador – para artistas, para públicos e para o Brasil.
OUÇA AGORA MESMO A PLAYLIST TMDQA! RADAR
Quer ouvir artistas e bandas que estão começando a despontar com trabalhos ótimos mas ainda têm pouca visibilidade? Siga a Playlist TMDQA! Radar para conhecer seus novos músicos favoritos em um só lugar e aproveite para seguir o TMDQA! no Spotify!