Malu Azevedo
Foto por Caio Viedo

Às vezes, a música encontra o seu próprio tempo, e o da cantora e compositora Malu Azevedo parece ter chegado com a força mansa de uma onda. Entre doçura e coragem, entre herança e reinvenção, a artista paulistana estreia seu primeiro EP, Vem Comigo, como quem abre uma janela para o novo sem abandonar as raízes.

O disco carrega o frescor da juventude e a sabedoria de quem escuta o passado com atenção. Não à toa, uma das faixas mais marcantes, “Marcas na Areia”, foi composta nos anos 80 por seu pai, Flávio Afonso de André, e encontrou, quarenta anos depois, sua intérprete ideal na voz da filha. A descoberta da partitura perdida, a emoção da gravação e o reencontro familiar que ela provocou parecem simbolizar o espírito do trabalho: um elo entre gerações, um gesto de continuidade.

Em entrevista ao TMDQA!, Malu fala sobre a força e a delicadeza que convivem em suas canções, sobre como a MPB deixou de ser “dos pais” para se tornar sua também, e sobre a beleza de transformar sentimentos em música.

Confira!

TMDQA! entrevista Malu Azevedo

TMDQA!: Suas músicas têm uma delicadeza que não é ingênua. De onde vem essa mistura de doçura e força?

Malu Azevedo: Olha, é uma pergunta difícil. Sendo muito sincera, tem vezes em que eu sinto que a música meio que escolhe o jeito que vai sair. Eu não tenho total controle sobre essa parte criativa; é uma coisa muito orgânica. Mas, fazendo uma autoanálise, eu sempre gostei muito de artistas em quem eu sentia verdade e sinceridade. Acho que músicas de artistas que compõem majoritariamente num sentimento só, músicas em que todas são doces, ou todas têm o mesmo tom emocional, podem ser espetaculares, mas eu me atraio mais por artistas que transmitem verdade.

A verdade da vida é que a gente tem momentos felizes, tristes, de raiva, frustração e leveza. Então, eu sempre tentei não me colocar nesse quadrado de fazer músicas só doces, e trazer essa verdade. As músicas que eu componho são quase um diário: um registro de um sentimento que estou vivendo naquele momento e que traduzo em música porque isso me ajuda a digerir aquele sentimento. A música tem esse papel pra mim, me ajudar a passar por isso.

Claro que nem todas as músicas que componho são literalmente baseadas na minha realidade; existe uma licença poética ali. Mas é isso: eu valorizo muito as músicas que são verdadeiras, e a verdade é diversa, feita de muitos sentimentos. Então, acho que essa força talvez venha disso.

TMDQA!: O público tem recebido suas músicas com carinho e números expressivos. Mas pra além do streaming, o que mais te faz sentir que uma canção chegou nas pessoas?

Malu: Eu acho que o momento em que eu mais sinto que as músicas realmente chegaram nas pessoas é quando eu recebo o retorno delas. Seja nas redes sociais ou pessoalmente. Quando eu divulgo uma música e alguém que eu não conheço, às vezes de outra cidade, me manda uma mensagem dizendo que aquela música a tocou de alguma forma, isso me emociona muito.

Também já vivi momentos assim em shows. Já fiz participações em apresentações de amigos, como o Arthur Diniz e o Jonathas Belgrande, e cantei músicas minhas. Depois do show, algumas pessoas vieram falar comigo, contando como se sentiram ao ouvir a música, dizendo que se emocionaram. E eu acho que é isso que dá sentido a tudo. Nunca vou me acostumar com essa sensação. É muito louco pensar que uma música que você faz no seu quarto, algo tão íntimo, pode chegar a tanta gente.

O streaming é maravilhoso porque leva a música a lugares onde talvez eu nunca conseguiria chegar, mas nada se compara a colocar um rosto nesses números, ver de perto as pessoas que te escutam. Ter esse retorno presencialmente é ainda mais forte. Mas, mesmo pelas redes, é isso que me faz sentir que a música está chegando nas pessoas, e é um sentimento com o qual eu nunca vou me cansar de me surpreender.

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TMDQA!: Você sintetiza um momento em que a nova geração vem redescobrindo e voltando a amar a MPB. De onde você acha que vem esse interesse?

Malu: Olha, eu acho essa pergunta muito interessante, e talvez nem exista uma resposta única pra ela. Mas o que eu penso no momento é que, com certeza, as redes sociais têm um impacto enorme nesse sentido. Plataformas como o TikTok e o Instagram, por exemplo, criaram as famosas trends. Muitas dessas tendências usam músicas como base, às vezes alguém faz uma trend com uma canção da MPB porque a letra é interessante, provoca identificação ou combina com algum tipo de conteúdo criativo. Quando isso acontece, a música acaba viralizando, e muitas pessoas passam a replicar aquele som. Isso faz com que a canção chegue a novos públicos, especialmente os mais jovens.

Então, eu acredito que as redes sociais têm esse papel importante de democratizar a música e, às vezes, trazer de volta uma canção que estava um pouco esquecida ou distante dessa nova geração. Ao mesmo tempo, acho que as músicas da MPB têm uma força própria, porque são atemporais. No momento em que a nova geração entra em contato com elas, é muito fácil se apaixonar, são músicas que falam de sentimentos humanos, muito profundos e atuais, e são obras realmente maravilhosas. Então, eu vejo as redes sociais como uma ponte: elas ajudam a conectar esses clássicos da MPB com um público novo, e o que faz essas músicas continuarem vivas é justamente o fato de serem atemporais. É isso.

TMDQA!: E aí chegamos a “Marcas na areia”, que tem uma história bonita e inesperada. Como foi descobrir essa canção do seu pai, e perceber que ela ainda dialogava com o teu tempo?

Malu: Ah, foi uma montanha-russa de sentimentos, realmente. Eu descobri recentemente que meu pai teve uma fase de compositor quando era mais novo. Muitas das músicas que ele compôs acabaram se perdendo, ele não lembra onde anotou as cifras, e naquela época não havia a facilidade da internet, de poder gravar algo e salvar na nuvem. Mas, mesmo hoje, às vezes a gente ainda perde arquivos, né? O que aconteceu foi que ele encontrou uma dessas partituras antigas. Algumas das músicas que ele compôs, na época, ele chegou a levar para um maestro, que as escreveu formalmente. Ao encontrar essas partituras, ele acabou lembrando como se tocavam, pelo menos em parte.

Quando eu comecei a compor e a lançar minhas próprias músicas, esse lado dele começou a vir mais à tona. A gente sempre teve uma relação muito musical, ele tocar piano, e cantar juntos sempre foi uma tradição nossa. Mas depois que comecei a minha carreira, esse vínculo musical se fortaleceu ainda mais. Foi então que ele encontrou a partitura de “Marcas na Areia” e me mostrou. E foi muito emocionante.

Da mesma forma que eu falei na pergunta anterior sobre as músicas da MPB e sua atemporalidade, foi exatamente o que senti ao ouvir a música do meu pai. Ela me tocou da mesma forma que me tocam as músicas do Chico, do Caetano, da Gal, da Bethânia. Fiquei profundamente emocionada, porque percebi que era uma canção atemporal, composta há mais de 40 anos, mas ainda capaz de me emocionar como se fosse nova. Naquele momento, percebi que, se ela dialogava comigo, certamente também poderia dialogar com outras pessoas da minha geração. Foi muito especial. A melodia é sensível, a letra é linda, e eu realmente acredito que a bossa nova tem essa característica de atravessar o tempo. Fiquei muito feliz de poder tirar essa música da gaveta e gravá-la, realizando um sonho do meu pai, que sempre quis ter uma música gravada. E, pra mim, foi um prazer gigantesco poder dar voz a essa composição dele, que tem um significado tão especial e profundo.

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TMDQA!: Você tem uma relação muito visual com a tua música, clipes, capas, cores. Quando uma canção nasce, você já enxerga uma imagem junto?

Malu: Olha, na verdade, quando uma canção nasce pra mim, quando eu componho uma música nova, eu não vejo nada visual de imediato. A música, pra mim, é algo muito abstrato nesse sentido. Então, quando chega o momento de lançar e começo a pensar em como será o clipe, o visualizer ou a capa, essa parte visual vem depois. Com o EP, por exemplo, eu já tinha várias músicas guardadas, e só quando fui pensar na identidade visual é que comecei a explorar esse outro lado criativo. E eu adoro esse processo. É uma forma diferente de criar, é muito divertido. O que costumo fazer é olhar para a letra e ver se alguma parte me remete a uma imagem, a uma sensação. Às vezes penso numa “vibe” geral, mas é sempre algo muito intuitivo, natural.

Em Vem Comigo, por exemplo, eu pensei no conceito como um convite, um chamado pra quem está ouvindo embarcar em uma nova aventura, um novo capítulo, uma viagem. A partir daí, imaginei uma estética vintage, com elementos como uma maleta de viagem e uma bússola. Depois, vieram as cores: azul e amarelo. O amarelo remetia à areia; o azul, ao céu, e isso me conectou também com “Marcas na Areia”. Essas associações foram surgindo aos poucos, sempre com muito diálogo com minha família e amigos, trocando ideias, testando, ajustando. Então, é isso: a parte visual não nasce junto com a música. Ela é construída depois, com calma, de forma orgânica, quase como uma extensão natural do que a música quer dizer.

TMDQA!: Atualmente, quais são os seus discos favoritos?

Malu: Ai, amo essa pergunta! Olha, atualmente eu tenho dois discos que estão me acompanhando muito. O primeiro é o Delírios, da Clara Valverde, fica a dica, é maravilhoso. São poucos os álbuns em que eu realmente gosto de todas as faixas, e esse é um deles. Consigo ouvir do começo ao fim sem pular nenhuma música. Acho a Clara super autêntica, e nesse disco ela traz uma sonoridade muito brasileira, misturando vários ritmos, com músicas dançantes, alegres e envolventes. Tem uma faixa que eu adoro, chamada “Cheia de Vontade”, é daquelas músicas boas de dançar, que te envolvem mesmo. Ela tem até um toque de funk, e essa mistura de influências deixa o álbum muito rico e cheio de energia. Outra faixa que gosto bastante é “Só Dessa Vez”, mas, sinceramente, o disco inteiro é uma delícia de ouvir.

O outro álbum que eu tenho escutado muito é o Beira Mar – Live, do Tiago Nacarato com Cainã Cavalcante. Ele tem uma atmosfera bem diferente de Delírios: é um disco acústico, só voz e violão, com interpretações de músicas de outros compositores como Caetano Veloso, Chico Buarque, Noel Rosa. É um álbum intimista, leve e, ao mesmo tempo, profundamente emocional. A interpretação do Thiago em “Meu Bem, Meu Mal”, do Caetano, é simplesmente de chorar, muito linda. Eu acho que o Tiago Nacarato é um dos poucos vocalistas atualmente que conseguem me fazer transcender. Não é só que eu gosto de ouvir as músicas dele; é que eu realmente viajo, vou pra outro lugar.

TMDQA!: Qual foi o ponto em que a MPB deixou de ser “dos seus pais” e passou a ser sua também?

Malu: Acho que, como qualquer adolescente, eu tive aquela fase de querer ser diferente, de não gostar das músicas que os meus pais ouviam. Quando comecei a compor, por volta dos 12 anos, e mais seriamente depois dos 14, minhas primeiras composições eram em inglês, porque era o tipo de som que eu mais escutava na época. Já passei dessa fase (risos), mas lembro do meu pai sempre me dizer: “Por que você não compõe em português? Olha essas músicas aqui da MPB, da bossa nova…” Eu cresci ouvindo essas canções com ele, a gente sempre cantou muito juntos, mas na adolescência eu me afastei um pouco desse universo.

Acho que o momento em que a chave virou foi quando eu fui a um show do Vitor Kley, entre 2017 e 2018, se não me engano. Era um show do Festival Teen, e eu fui meio que por acaso, a convite de um amigo da minha mãe. Eu não conhecia muito do trabalho dele na época, ele ainda não tinha estourado com “O Sol”, e acabei conseguindo conversar com ele depois do show. Foi transformador. Foi a primeira vez que eu vi, ao vivo, um artista jovem, da minha geração, fazendo música brasileira com tanta entrega e presença de palco. Eu me emocionei muito assistindo. Lembro de pensar: “Caramba, o que eu tô fazendo compondo em inglês? É isso aqui que eu quero fazer.”

Depois daquele show, comecei a olhar com muito mais carinho para a música brasileira, para o repertório que meu pai sempre tentava me mostrar. Passei a compor em português, a mergulhar na MPB, e nunca mais saí desse mergulho. Estou aqui até hoje, completamente envolvida com esse universo, e pretendo continuar assim por muito tempo.

TMDQA!: Se pudesse colocar uma faixa do Vem Comigo pra tocar numa garrafa e lançar ao mar, qual seria — e pra quem ela chegaria?

Malu: Ah, essa pergunta é ótima! Se eu pudesse escolher uma música de Vem Comigo pra mandar numa garrafa pro mar, com certeza seria “Marcas na Areia”, sem dúvida. Acho que essa canção tem tudo a ver com essa ideia, o mar, o tempo, o amor, as lembranças. E eu imaginaria que essa garrafa fosse encontrada por um casal apaixonado. Já pensou? Eles acham a mensagem na areia, escutam a música e ela vira a trilha sonora da história deles. Seria lindo, já vejo até essa música sendo tema de casamento, e eu ali de madrinha (risos). Brincadeiras à parte, acho que “Marcas na Areia” carrega essa simbologia do amor que fica, das marcas que a gente deixa e leva com a gente. Então, pra mim, é a música perfeita pra colocar dentro de uma garrafa!

TMDQA!: E se você pudesse deixar uma marca tua na areia agora, como artista em começo de jornada, qual seria?

Malu: Eu acho que a marca que eu deixaria na areia agora, pra registrar esse começo de jornada, seria o compromisso de fazer muitas músicas, e que essas músicas sejam sempre um registro honesto do que eu estou sentindo. Quero que sejam canções sensíveis, cruas, de verdade, que expressem sentimentos diversos: alegria, introspecção, força, leveza… tudo aquilo que todo mundo sente em algum momento. Acredito que serão músicas com as quais muitas pessoas vão se identificar, justamente por essa sinceridade. Também carrego comigo uma forte influência dos clássicos da MPB, essas referências que todo mundo já ama e conhece, mas, ao mesmo tempo, tenho o desejo de trazer novas ideias, novos ritmos e novas formas de interpretar o que é ser MPB hoje. Quero ajudar a construir uma nova MPB, que converse com a minha geração, mas que mantenha o coração e a essência da música brasileira. Então, é isso: muito sentimento, muita verdade e muita música brasileira.