27/05 - 01/06

REFERÊNCIA

Stefanie lança seu primeiro álbum solo após duas décadas de trajetória: uma jornada de dor, cura e renascimento

Em "BUNMI", rapper nascida no ABC Paulista transforma perdas, lutas e aprendizados em versos que se tornam um presente ao mundo — e a si mesma

Stefanie
Foto: Thales Côrtes

Era 2004 quando Stefanie decidiu escrever sua própria versão da história do rap nacional. Vinda de Santo André, no ABC Paulista, a artista já carregava nas veias o sangue dos anos 90 — a era dos grupos que a inspiraram a rimar — e a intuição de que, mesmo sendo mulher em uma cena majoritariamente masculina, seu espaço não seria conquistado pedindo licença.

Vinte anos depois, o que parecia improvável em uma cultura que tantas vezes negou o protagonismo feminino se torna realidade: BUNMI, seu primeiro álbum solo, finalmente nasce. O nome, de origem iorubá, significa “meu presente”. E é exatamente isso que o disco representa: um presente para o mundo, mas, antes de tudo, um reencontro de Stefanie com sua essência.

BUNMI carrega todas as camadas de quem percorreu uma estrada longa, com pausas, dúvidas, reinvenções e dores profundas. “Criar o disco foi uma experiência transformadora e uma cura”, conta ela, que viu seu primeiro álbum ser cobrado por anos enquanto enfrentava problemas pessoais e lutas silenciosas. “Essa cobrança gerava uma ansiedade muito forte. Eu queria entregar algo perfeito, mas entendi que precisava entregar a verdade.”

Feridas e cicatrizes

A verdade de Stefanie é construída a partir de cicatrizes. “Fugir Não Adianta”, faixa de abertura, traduz o impulso de encarar fantasmas internos e criar força a partir da vulnerabilidade. A delicadeza da introdução de Mahmundi prepara o terreno para versos em que Stefanie olha no espelho, encara a dor, e se recusa a se perder dentro dela.

“Eu me encorajei a enfrentar a situação. Pensei nos meus filhos e entendi que não adiantava entrar num buraco e não sair mais.”

Na sequência, a rapper une forças com Rodrigo Ogi em “Por Um Fio”, uma faixa que soa como um grito de socorro, mas também uma oração de livramento. Relatos de assédio, racismo, pobreza e saúde mental ganham forma em um storytelling cru, que reafirma a coragem de se vulnerabilizar.

“Na pandemia, tive uma crise de pânico e fiquei meses com dor no peito. Quis dividir isso para que as pessoas se identificassem e vissem que é possível se reerguer”, diz ela, referindo-se também à faixa “Não Pirar”, com participação da chilena Ana Tijoux. A produção de Ganjaman e Grou sustenta o mantra do refrão: “Cuidando da minha mente pra ela não pirar”.

Da dor à plenitude

O disco também abre espaço para o luto — não como fim, mas como parte do caminho de cura. Em “Mundo Dual”, Stefanie fala sobre a perda de seus irmãos e do pai. “Chorava muito enquanto escrevia. Foi um processo terapêutico”, revela. A composição virou ritual de transformação, ajudando a artista a encarar dores que antes preferia silenciar.

O disco da rapper costura um encontros histórico, como a faixa “MAAT”, que reúne Rashid, Kamau, Rincon Sapiência e Emicida — um reencontro inédito desde 2008, quando o quinteto havia criado “Porque eu Rimo”.

“Eu quis convidar pessoas que fizeram parte da minha vida e a ‘Porque eu rimo’ marcou a minha carreira. Os meninos toparam participar na hora e o dia da gravação foi maravilhoso, com todos felizes de estarem ali, onde ficamos horas no estúdio mais conversando do que criando. Os anos se passaram e, mesmo distantes, a gente conseguiu se conectar.”

“Plenitude”, última faixa, encerra o disco com bênção e luz. Guiada por espiritualidade e pela presença simbólica da tia da artista, que aparece em um áudio, Stefanie conclui sua jornada com leveza. “Depois que finalizei o disco, o peso que eu tinha, acabou. Hoje estou mais leve para seguir. As coisas que me limitavam, não me limitam mais.”

A trajetória de Stefanie

Stefanie é filha de várias escolas. No grupo Simples, ao lado de Kamau e Rick, aprendeu o valor da dedicação. No coletivo Rimas & Melodias, fez história ao lado de um verdadeiro dream team do rap feminino nacional.

“A gente criou uma imagem forte de mulheres negras, rimando juntas, criando um universo coletivo”, lembra, emocionada ao contar de uma fã mirim que colocou a foto do grupo em cima do bolo de aniversário.

Ao longo do tempo, Stefanie entendeu que sua trajetória não seria linear — mas seria necessária. “O rap pra mim é a essência da minha vida. É onde eu me encontrei”, afirma. Mesmo diante do machismo estrutural da cena, nunca aceitou o papel de “rimadora de refrão”. Desde cedo, impôs sua caneta afiada e se inspirou em figuras como Rúbia, do RPW, para encontrar sua força no palco. “Havia poucas minas com relevância, mas as que tinham me inspiraram profundamente.”

Aos 40 anos, Stefanie não entrega apenas um disco — ela entrega sua história. Em cada faixa, uma memória. Em cada beat, um recomeço. BUNMI não é apenas um presente para o rap brasileiro. É um manifesto íntimo, político e espiritual de uma mulher que nunca fugiu da dor, mas decidiu transformá-la em poesia.

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Felipe Mascari
Rap em Pauta com Felipe Mascari

A coluna que mergulha nas histórias, letras e batidas que estão redefinindo o cenário musical do Rap. Acompanhe de perto os lançamentos e a força das rimas que ecoam pelas ruas.

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