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[RESENHA] Com erros e acertos, Kendrick Lamar expõe vulnerabilidades em “Mr. Morale & The Big Steppers”

Finalmente está aqui. O mundo da música passou os últimos anos aguardando e especulando sobre o novo disco de Kendrick Lamar, o rapper com o status mais intocável da última década.

Vindo de três clássicos, é fácil entender o porquê: sempre que K-dot lançou algo, foi de altíssimo nível, e a expectativa obviamente seria à altura. Quando o trabalho foi anunciado, iniciou-se a contagem regressiva, até que no último dia 13 de Maio, uma sexta-feira, chegou o álbum Mr. Morale & The Big Steppers, disco duplo do artista, que já está entre nós.

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Daqui pra frente, falaremos sobre o álbum que é sua obra mais pessoal até hoje.

Panorama geral do disco e teorias

É um tanto arrogante dizer saber, com convicção, qual o conceito de um disco, principalmente vindo de Lamar. Apesar disso, é o que o público adora fazer e já existem diversas teorias: peça de teatro, dois álbuns espelhados, ópera, uma sessão de terapia. A última, no entanto, parece mais plausível, considerando o caráter honesto do álbum, a presença do autor de livros sobre iluminação espiritual Eckhart Tolle ao longo do disco e algumas falas que aparecem nas letras das canções.

Kendrick, ao longo de 18 faixas, abre seu coração e sua mente mais do que em qualquer momento de sua discografia, com grande foco em seus defeitos. O álbum também atua com uma ideia já comum na sua carreira em estúdio: são seguidas duas histórias, uma que se aplica ao eu lírico (aqui, mais do que nunca, ele próprio), e outra que fala sobre as injustiças e sofrimentos de toda a população negra. Sendo o próprio Kendrick um homem negro e um líder vocal, as duas narrativas se entrelaçam o tempo todo. A questão aqui é: o MC não quer mais esse cargo.

Este é o álbum que humaniza Kendrick Lamar. O artista sempre se colocou como alguém que nutria um complexo de salvador e sofria por se sentir impotente ao ver que não causava o impacto que queria. Com ênfase em momentos finais do segundo disco, como a ótima “Savior”, em Mr. Morale ele começa a rejeitar essa ideia. Kendrick joga com uma faca de dois gumes ao expor todos seus defeitos, pensamentos, contradições e dúvidas, pois ao mesmo tempo que se humaniza, o artista cruza algumas linhas ao melhor estilo Kanye West. Mas isso será um tópico mais à frente.

Kendrick Lamar mostra suas intenções logo de cara

“United In Grief” abre o disco mostrando tudo que se precisa ter em mente para acompanhar a bela jornada. A primeira frase do artista diz “eu tenho passado por algumas coisas”, como alguém responderia quando perguntado por um psicólogo o que o levou àquele consultório, antes de abrir totalmente o jogo. Psicólogos dizem que o tratamento dificilmente terá sucesso se o paciente não for totalmente honesto e aberto, e Lamar faz isso ao começar mostrando a forma com que lida com seus problemas, com seus dois vícios autodestrutivos: consumismo exagerado e sexo. Até por isso Whitney, sua esposa, aparece ao longo de todo o disco, ora sendo citada por um Kendrick consumido pelo sentimento de culpa, ora entregando algumas falas.

“N95” segue essa ideia de honestidade sendo uma tentativa de hit mais elétrico, usando a metáfora pedindo para que todos “tirem suas máscaras” que cobrem as dores. Passando da metáfora, um tanto óbvia, não tem mais muita profundidade na letra, mas o beat e os flows são contagiantes. As próximas faixas passam a apostar em ideias mais profundas com resultados mistos: se “Worldwide Steppers” tem talvez a melhor caneta do disco, explorando as ambiguidades entre virtudes e defeitos em tudo que fazemos (de modo com que todos somos um tanto assassinos), por outro lado “Die Hard” é de longe a faixa mais sem sal do trabalho, soando como uma versão light de “All The Stars”, sem nenhum poder para sucesso comercial.

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“Father Time” tem como destaque um refrão incrível de Sampha. Como de costume, aliás. O instrumental também é ótimo, com um loop alongado e belos samples vocais, enquanto K fala com muita sensibilidade sobre as relações de homens com seus pais, que os moldam num futuro onde o fardo recai sobre as mulheres. O resultado é uma ótima faixa.

A primeira metade do trabalho é encerrada com outro highlight na forma de “Purple Hearts”, que entrega a mensagem de “cale a boca quando você ouvir o amor falando”. Ghostface Killa chega como um homem mais velho cheio de sabedoria aconselhando os jovens, enquanto Summer Walker impacta com sua voz, embora a frase “não é amor se você nunca comeu meu **” seja… notável.

O artista encontra seu desfecho no segundo disco

Na metade final do trabalho, Kendrick ataca alguns temas pouco explorados na primeira parte. O principal mote aqui é a ligação de problemas da população negra com traumas e outros problemas do passado.

O grande exemplo disso está em “Mr. Morale”, faixa que traz o beat mais elétrico do disco, com baterias dinâmicas de Pharrell sobre as quais o rapper questiona como o histórico de abuso sexual afeta a população negra que repete o ciclo quando cresce.

Esta faixa se liga à belíssima “Mother I Sober”, a primeira das duas canções de encerramento. Aqui é mostrado como o abuso sofrido pela mãe do artista afetou a forma como ele foi criado, o que reflete em sua infidelidade crônica com sua esposa. A ótima escrita encerra com o MC colocando um ponto final nisso, dizendo que quebrará o ciclo com seu filho.

A outra grande narrativa aqui é como o artista precisa se livrar de seu complexo de salvador, algo que o atribula há muito tempo. Se ele sofria por isso antes, agora tenta se livrar deste sentimento. Antes disso, se livra de pessoas tóxicas em sua vida na excelente “Count Me Out”. Então, ele questiona a população esperando tanta influência de famosos e mostra que também é um ser humano. Esse sentimento se inicia em “Crown”, onde o rapper abre mão desse lugar, uma faixa extremamente honesta em sua performance.

Na última canção, “Mirror”, Kendrick declara seu caminho no refrão com um mantra que repete: “me desculpem, mas eu me escolho”. E esse álbum é essa escolha: Kendrick Lamar não vai mais tentar mudar o mundo se isso causar mais dor a ele e a sua família.

Um belo desfecho para um álbum complexo e extremamente pessoal.

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Pela primeira vez, as falhas são claras em seu álbum

Embora DAMN. tenha seus detratores, aqui os defeitos são visíveis como nunca. É interessante o trabalho não ter tanto apelo comercial e expansividade quanto seu antecessor, mas a escolha por instrumentais mais discretos, com momentos onde só há um piano ou violão, acaba causando alguns pontos de monotonia que reduzem o valor de replay. É uma escolha, provavelmente, para ajudar a entregar as mensagens com clareza, mas o resultado sonoro poderia ser melhor.

E isso se junta com mensagens que não são tão claras, principalmente pela confusão mental de Kendrick, que busca apresentar suas contradições de uma forma crua a ponto de que parece andar em círculos; além disso, estão borradas as linhas de onde acaba a opinião do homem e onde começa uma fala de um personagem. “We Cry Together” exemplifica isso: temos um excelente beat e uma performance de cair o queixo de Taylour Paige (ainda mais considerando que ela é uma atriz e não uma rapper), mas a faixa mostra um casal extremamente tóxico discutindo, com falas que chegam a ser nojentas, matando a vontade de voltar a ela e servindo como um ato mais do que como uma música por si só.

Há problemas no discurso de Kendrick também. Na busca por matar a hipocrisia, o artista ataca com tanta frequência a suposta “cultura do cancelamento” e o “politicamente correto” que poderia ser colocado lado a lado de seu tio reaça. Isso vem de um certo conservadorismo, sim, mas principalmente no foco exagerado do MC em sua audiência alvo (o homem negro), que por vezes se esquece que sua audiência é muito maior que isso.

“Auntie Diaries” é espetacular em conceito, sendo um raríssimo posicionamento pró pessoas transexuais para um rapper. Mas na execução ele repete a palavra “faggot” (que poderia ser traduzida como “bicha”) mais vezes que Eminem no auge de sua homofobia, ignorando o peso que isso pode ter para seu público LGBTQIA+. E isso piora quando no final ele diz “Nós poderemos dizer isso juntos se a gente aceitar uma garota branca dizendo nigga“. Se um rapper branco repetisse a n-word tantas vezes, o mundo cairia sobre ele, mas Kendrick não deixa de repetir a palavra com a letra “F”. As ideias são importantes, mas não podem se sobressair à execução delas.

Mas não podemos esquecer, é um bom disco

Kendrick Lamar deve ser incapaz de fazer música ruim. O álbum tem sua coesão, ótimas faixas e uma bela conclusão, momentos de genialidade e vários aspectos grandes. Críticas aparecem aqui muito porque, com esse artista, o sarrafo é mais alto. Mr. Morale & The Big Steppers seria o melhor na discografia de diversos outros MCs, por exemplo.

Mas os três trabalhos anteriores de K-dot são clássicos, e esse não está à altura deles.

Ele entrega bem o seu conceito e é como um ponto de virada na sua vida: Kendrick se abre para um auto cuidado e uma melhor relação com sua família. Como consequência, pela primeira vez nós vimos de perto as vulnerabilidades do MC, tanto as que ele quis mostrar quanto as que ele não quis.

Published by
João Hermógenes