Resenhas

[RESENHA] Criolo analisa o Brasil dos anos 2020 no ótimo “Sobre Viver”

O Brasil dos anos 2020 é um lugar extremamente desigual e complexo. Sabendo disso, Criolo coloca seu olhar mais afiado em tudo o que se passa no país, após anos de governo Bolsonaro e pandemia, que escancararam as já existentes desigualdades sociais e raciais.

O disco “Sobre Viver” em sua essência é isso: o experiente artista denunciando tudo o que vê de errado, ao passo que oferece um pouco de esperança.

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A esperança existe no discurso, sim, e Criolo entrega isso com todos os elementos possíveis de sua música: performance vocal, instrumentais, participações, cores. Mas antes de ter esperança nos dias melhores é necessário saber a raiz dos problemas, e o disco caminha muito bem entre estas nuances.

“Diário do Kaos”, a excelente intro, mostra a visão sincera de mundo do artista que alterna entre o rap – sonoridade que volta a ser a principal de um disco do MC – e o cantado, entregando a emoção de uma voz que soa teatral em momentos. A faixa é muito bem complementada pelos elementos de jazz que aparecem, sobretudo o piano.

Crédito: Helder Fruteira, @afilmbyme_

As influências para o disco, como se vê, são muito variadas. A excelente “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais” tem sintetizadores e baterias que lembram algo de The Weeknd, e o reggae e afrobeat aparecem com destaque nas faixas seguintes. As sonoridades acabam sendo tão importantes quanto a letra para entregar as emoções que o autor pretende, com a faixa supracitada apresentando sons de tiros complementando a intensidade dada pelo forte refrão. “Sétimo Templário” tem um tom épico e urgente, com incrível progressão de baixo e guitarra, com Criolo tendo sua escrita mais visceral do álbum, como quem aponta o dedo na cara dos detentores dos poderes.

Muitos elogios podem e devem ser feitos às sonoridades que o álbum apresenta, mas se tratando de Criolo, a escrita merece destaque sempre. Talvez a melhor faixa do álbum, “Me Corte Na Boca do Céu, A Morte Não Pede Perdão”, é a melhor prova disso, com um instrumental que dá mais espaço para a poesia surgir. É difícil pensar em alguém melhor que Milton Nascimento para elevar o nível de uma faixa poética, e a voz do Bituca chega tocando qualquer coração que a ouça. Essa canção tem a cara de um clássico instantâneo de toda a música nacional.

Ao ateu a reza
E ao rezado, a razão
e que no aterro da desgraça
suba o cheiro da comunhão

Foto: Fred Siewerdt

Precisamos também da esperança de Criolo

O autor, por diversos momentos, recorre à fé como uma forma de oferecer esperança, mesmo sabendo que a sua também é atacada pela intolerância deste país. “Ogum Ogum” e “Yemanjá Chegou”, que mostram em seus títulos a fé de Criolo, são dois ótimos exemplos do que o artista tem como visão de mundo: é preciso sempre fazer as críticas que são necessárias, mas não se pode perder a fé. A segunda, inclusive, tem uma das melhores escritas do autor, que alterna a voz cantada do refrão com o flow mais ‘raiz’, que lembra os tempos de Nó Na Orelha.

Outra amostra desta visão está em “Pequenina”, faixa que se destaca logo de cara pelos feats. Criolo e Hariel aparecem com muita química no esquema de back and forth, mas para isso a escrita acaba sofrendo, sendo demasiadamente simplificada. O resto da música, no entanto, eleva esse nível. O arranjo de Jacques Morelenbaum, grandioso maestro e multi-instrumentista, e a bela voz de Liniker, são capazes de emocionar qualquer ouvinte. A ideia central da música é uma divisão que afeta qualquer pessoa pobre e preta do país: a necessidade de ganhar dinheiro para obter respeito, mesmo sabendo que isso pode representar uma vitória do sistema. Sabiamente o artista responde a isso: “de onde eu venho, sempre é vitória do sistema”.

O final do disco também é perfeito, com “Aprendendo A Sobreviver”. A faixa tem a volta dos batuques para o centro do instrumental, e o artista passa a régua mostrando sua bela voz cantada e belos versos rimados. A dualidade de ódio/amor apresentada no refrão, que traz muito bem a figura de Kunta Kinté, fecha o disco lembrando dos dois destinatários de todo o discurso do trabalho.

Um clássico nascendo?

Créditos: Divulgação / Criolo

Criolo se reaproximando do rap é uma necessidade não apenas para o rap, mas para toda a música nacional, sendo esse o gênero onde o artista criou sua base, e também a cultura mais reconhecida por apontar os dedos a quem determina os rumos do país. Unindo este à sua vasta bagagem musical, o álbum parece trazer o que Criolo tem de melhor a oferecer como artista.

O MC ataca as diferenças raciais do Brasil de hoje, o que faz o álbum soar atual. Mas ao mesmo tempo, nada nisso é novo nem parece ter um fim próximo, e isso faz o disco soar simplesmente atemporal. E essas são as principais características de um clássico, que é o que podemos estar vendo agora. Só resta esperar o tempo nos responder.

O lançamento do novo disco de Criolo está marcado para hoje, dia 05/05, à noite.

Published by
João Hermógenes