Ana Clara, Paula Fernandes, Clau, Isadora, Jenni Mosello e Woman From The Moon
Ana Clara, Paula Fernandes, Clau, Isadora, Jenni Mosello e Woman From The Moon

Não é nenhum segredo que vivemos em uma sociedade machista, onde os homens costumam sair privilegiados de qualquer situação. Se duvida disso, basta checar os rumos da história. As provas vão desde a conquista do direito de votar até a batalha por reconhecimento em diferentes áreas. De fato, muita coisa foi conquistada, mas falta muito (mesmo) para dizermos que é um mundo justo.

O mundo da música é um ótimo (ou, nesse caso, péssimo) exemplo de como essa discrepância entre gêneros ainda existe e é assombrosa. Pode ser no backstage ou muitas vezes até mesmo nos palcos. É raro vermos um processo musical inteiro, da composição à divulgação, passando pelos procedimentos de estúdio, feito inteiramente por mulheres. Um estudo, feito em 2019 pela USC Annenberg Inclusion Initiative, levou em conta o recorte de cerca de 700 hits de sucesso lançados entre 2012 e 2018 para ilustrar essa diferença entre gêneros. Do total, de acordo com o levantamento, 21,7% dos artistas eram mulheres. A coisa piora quando adentramos mais no processo de criação. Apenas 12,3% entre todos os nomes creditados pelas composições eram mulheres. Já em relação ao total de produtores, o número é ainda menor: 2,1%.

A questão é que é difícil ser mulher no meio fonográfico. Elas encontram mais barreiras e dificuldades do que qualquer homem. O preconceito vem nas mais diversas formas, desde a subestimação das capacidades de uma mulher até a objetificação de seu corpo. E dar um simples “parabéns” no Dia Internacional da Mulher não muda em nada essa situação. É preciso equidade mais do que simplesmente igualdade. Em outras palavras, homens e mulheres precisam ser tratados de forma justa, dentro de suas respectivas necessidades. E não é isso que vemos por aí…

O TMDQA! colheu depoimentos de algumas artistas que, assim como muitas outras, sofreram muito para conquistar espaço no meio musical. Do sertanejo ao pop, passando pelo samba e a música alternativa, elas nos contaram histórias que vivenciaram e falaram sobre como o machismo se aplica nesse contexto.

Confira a seguir!

 

“Como se, por ser mulher, eu não fosse tão boa para puxar uma roda de samba”

A fragmentação do mercado em gêneros musicais deixa a ótica da situação bem clara. A sambista Ana Clara, por exemplo, classifica o gênero como machista e exemplifica isso a partir de sua própria vivência.

Já passei inúmeras situações de pessoas desdenhando. É como se, por ser mulher, eu não fosse tão boa para puxar uma roda de samba. É como se eu não fosse capaz de levantar o público e fazer uma festa legal.

Outro exemplo claro disso é a cantora Paula Fernandes. Se ver o machismo no samba pode surpreender, o mundo do sertanejo mostra isso com mais clareza. Não à toa, é bem capaz que a maioria absoluta das duplas que você conhece sejam formadas por homens. Nem o influente movimento do “feminejo”, em meados dos anos 10, foi capaz de contornar essas estatísticas.

Antes da consolidação dessa vertente, Paula já buscava um espaço, mas se deparou com mais obstáculos do que imaginava:

O universo sertanejo sempre foi dominado por duplas masculinas e, culturalmente, em todos esses anos, a gente vê uma infinidade de duplas masculinas e poucas mulheres. Tivemos aí Irmãs Galvão, Sula Miranda e tantas outras que foram pioneiras e entraram nessa batalha para abrir espaço para mulheres. Mas, quando eu cheguei, entre 2009 e 2010, não foi diferente. O cenário continuava sendo dominado por homens. Todo o sistema era preparado para recebê-los, seja no camarim, no palco ou no dia-a-dia da estrada.

Mas não para por aí. Falando em termos estruturais, a praticidade sempre foi maior para um homem fazer um show, e isso independe de gênero musical.

“[O homem] Toma um banho, coloca uma camisa xadrez, uma calça jeans, uma bota… Passa um gel no cabelo e foi. A mulher, não. Tem todo um preparo”, destaca Paula.

Isso acaba fomentando um julgamento de “frescura” em relação às mulheres. Direta ou indiretamente, isso pode afetar preferências da indústria na seleção de artistas para um festival, por exemplo.

 

“É um problema que toda mulher enfrenta quando quer ocupar um lugar importante”

O que acontece no mundo da música nada mais é do que um recorte equivalente à situação no mundo. Ainda é raro vermos mulheres em cargos políticos de prestígio, por exemplo. É claro que temos fortes mentes femininas dentro das maiores vendagens musicais do país, como o que acontece com Anitta, Ludmilla e as próprias divas do feminejo. Mas já parou para apurar as pessoas que estão por trás disso?

A cantora Carolina Brun, conhecida pelo nome artístico Woman From The Moon, mora nos Estados Unidos há 10 anos e serve como exemplo de que o machismo não é exclusivo do Brasil. Sempre foi apaixonada por música, em especial por produção e engenharia musical, mas foi percebendo a verdadeira face do mercado fonográfico ao trabalhar em um estágio não remunerado em um estúdio famoso de Nova Iorque.

Para mim, tudo estava indo muito bem até que recebi a seguinte mensagem: ‘Durante as últimas sessões que você participou no estúdio, pareceu que você tem recebido muita atenção dos clientes, ao ponto de atrapalhar a sessão. É claro que todos nós queremos ser amigáveis e educados. No entanto, ser muito amigável e encorajar esse tipo de atenção, especialmente quando homens estão flertando, pode lhes dar a ideia errada. Eu sei que essa não foi sua intenção, mas como esses homens não sabem se comportar, não nos parece que você seja uma boa ideia’. E fui dispensada.

Isadora, grande aposta do novo movimento R&B no Brasil, tem esperanças de que a situação possa se equilibrar algum dia. No entanto, para isso, é necessária uma mudança de paradigma na sociedade. “A indústria fonográfica e o meio artístico, em geral, são ambientes muito masculinos, muito machistas”, conta ela.

A artista também destaca que homens ainda são a grande maioria nas posições de poder, desde gravadoras até estúdios, passando por escolas de músicas e casas de eventos.

A mulher é constantemente questionada pelas suas capacidades e habilidades. Isso nos deixa, de certa forma, coagidas.

Clau, outro nome importante da atual cena jovem R&B do Brasil, destaca que a indústria é injusta e, para reverter o cenário, é preciso que as mulheres se fortaleçam. Não à toa, existem iniciativas como o Women In Music Brazil, que incentiva e fomenta a participação feminina na indústria, ou o projeto jornalístico Mulher Na Música, da agência SÊLA.

Clau conta:

Eu acho que a indústria trata mulheres como se não soubéssemos nada do mercado, da música, da indústria… Então, já é muito complicado se mostrar só por ser mulher, mesmo sendo inteligente, capaz, líder, expressando opiniões, ideias e sendo firme no posicionamento. Mas, tendo começado muito jovem e vindo do interior, onde eu não tinha contato nenhum realmente do meio artístico, tudo parecia muito distante. Eu cheguei no meio com muita inocência e isso foi, sim, aproveitado de certa forma. Essa ingenuidade de não ver maldade nas coisas e não saber exatamente como funciona, o que não é tão bonito por trás do belo da arte. Nos bastidores, tem muita coisa suja e eu não sabia nada disso.

 

“Eu me sentia assediada de diversas formas quando cantava”

Como já dito, Carolina foi dispensada do estágio por “receber muita atenção dos clientes”. A sexualização do corpo feminino é um dos maiores fios condutores do machismo em qualquer lugar. A objetificação esvazia a mulher enquanto ser humano e muitas vezes é usada como justificativa (imprópria) até mesmo para a violência.

A cantora Jenni Mosello, certa vez, foi a uma importante premiação do Brasil, acompanhada por um colega que a ajudaria a desenvolver contatos lá. Para tentar proximidade com um grande nome da indústria, a artista foi aconselhada por esse colega a dançar. Caso não dançasse, segundo ele, ela não receberia a devida atenção do executivo. “Pleno 2019 e eu tendo que ouvir que precisava me esfregar em alguém pra essa pessoa me levar a sério. Duvido que essa proposta teria sido feita se eu fosse um homem”, desabafa Jenni.

Fiquei muito chateada e percebi que isso era uma constante e que se repetiria em muitos momentos. Até hoje temos que lidar com essa falta de reconhecimento de nós como seres pensantes, que estamos tentando seguir com as nossas carreiras. Muitas vezes somos resumidas a um corpo e só conseguimos falar e fazer conforme o jogo deles, pelas regras deles, principalmente das pessoas que estão no poder. E com ‘eles’, me refiro ao homem branco hétero cis de 60 anos que ainda pensa como se a gente tivesse muito antiquada.

A carreia de Jenni, no entanto, não precisou de algum contato desses para decolar. Como todo astro com luz própria, a cantora tem trilhado seu caminho de forma cada vez mais visível. Foi a segunda colocada no The X Factor Brasil e tem lançado, aos poucos, singles que integrarão seu novo projeto. “Hoje eu faço minha música, minha arte. Falo sobre isso nas minhas canções. Quero tentar colocar no mundo uma sementinha de pensamento para que as futuras artistas, cantoras, e mulheres que querem ocupar espaços importantes não tenham mais que passar pelo o que eu estou passando”, conclui a cantora.

Isadora, por exemplo, trabalhou, aos 18 anos, em bares e casas noturnas de São Paulo, o que a fez ver com os próprios olhos que a sexualização da figura feminina no meio artístico é, sim, um grande problema:

Como artista mulher, eu me sentia assediada de diversas formas quando cantava nesses ambientes. Olhares maldosos, comentários agressivos, sempre me desvalorizando e desvalorizando meu trabalho. Eu estava ali para trabalhar, entreter e fazer a minha arte. Não estava ali para ser julgada pela minha vestimenta ou apontada pelo meu corpo. Isso realmente me frustrou por um tempo. Comecei a me sentir muito coagida nesses lugares, mas dei a volta por cima. Hoje, eu sinto que consigo me posicionar e me defender. É triste ter que dizer isso. No entanto, a longo prazo, eu acredito que, quanto mais a gente falar sobre, as pessoas vão se conscientizando e adquirindo mais respeito. Eu espero.

 

Por um cenário com mais equidade

O caminho ainda é longo, mas, considerando os avanços já vistos, a luz pode estar cada vez mais próxima. As nossas entrevistadas veem uma perspectiva de melhora, apesar de tudo que passaram em suas respectivas buscas por reconhecimento artístico. “Com certeza, é uma indústria injusta e a gente precisa se fortalecer. Esse é o ponto. Conforme a gente amadurece, a gente evolui, vai aprendendo a se colocar e a se posicionar”, comenta Clau.

Isadora destaca que, nesse momento de revolução, é preciso, por parte das próprias mulheres, proatividade diante desse mundo opressor. “Acho que as mulheres têm, sim, que ter coragem de colocar seus trabalhos no mundo. Têm, sim, que ocupar os espaços, para serem criados novos, e dar a cara à tapa. É uma questão de informação, bom senso e respeito”, destaca a cantora.

Nesse contexto, o apoio das mulheres entre si também se faz necessário. O caminho trilhado por Gabriela Brun, por exemplo, se deu graças ao apoio que recebeu de seus fãs, tanto antes quanto depois da situação que viveu no estúdio em que trabalhava.

Com maestria, Ana Clara encerra seu depoimento com a seguinte fala:

Acredito que, hoje, o momento seja muito oportuno para falarmos sobre isso. Muitas coisas têm mudado. Acredito que, daqui pra frente, vai ser cada vez mais comum ver mulheres atuando em qualquer segmento, em qualquer área, felizes da vida!

Se elas ainda não dominam o mundo, é apenas uma questão de tempo até que a premonição de Beyoncé em “Run The World (Girls)” se torne realidade.

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