Bivolt
Foto: Divulgação

Vamos supor que este seja um daqueles testes de personalidade que têm se popularizado cada vez mais na internet. A primeira pergunta é:

Você se considera que tipo de pessoa?
a) tagarela
b) introspectiva
c) observadora
d) apática

Por mais simples que pareça, não é uma questão fácil. Isso porque nós nunca somos uma coisa só. Tem dias em que estamos tagarelas e tem dias em que estamos mais introspectivos. Não é certo se limitar a um desses itens.

No audiovisual, personagens ficaram conhecidos por sua unilateralidade. É a ideia do “mocinho” e do “vilão”. O primeiro é sempre educado, cordial e bondoso. O segundo, malvado e cruel. Isso também acontece no mundo da música. Bem ou mal, é esperado sempre um disco pesado de uma banda de rock. O músico crítico não pode se afastar das críticas para passar a falar sobre as belezas da vida. Aprendemos a consumir os artistas a partir de um olhar unilateral. É como se mal soubéssemos que, dentro da genialidade de cada músico ou banda, existe um universo de discursos, sentimentos e posicionalmentos.

Por sinal, já tiveram a chance de ouvir o novo disco da cantora Bivolt? Homônimo, o disco é justamente uma resposta ao questionamento “Quem é Bivolt?”. O álbum entrega uma mistura de ritmos, temas, sensações e nos faz concluir na plurilateralidade de uma cantora que tem chamado cada vez mais atenção na cena.

 

“Como você vai saber se pode voar se nunca viu ninguém voando?”

Bárbara Bivolt sempre esteve inserida na cultura do hip hop, mas sempre se viu intrigada pela falta de representatividade feminina na cena. Aos poucos, ela foi se destacando entre homens e ajudando a construir a imagem do rap como algo que não se restringe ao gênero de uma pessoa.

Sobre o disco, sua vivência no mundo da música e muito mais, tivemos a oportunidade de conversar com a cantora.

Confira a entrevista na íntegra após o vídeo:

TMDQA!: De uns tempos para cá, ganhou maior visibilidade o movimento feminino no mundo do hip hop, o que é maravilhoso. Podemos dizer que foi algo que se deu até de forma devagar. É um mundo essencialmente masculino. Eu queria começar esse papo querendo saber de você o que fez com que você se dedicasse a esse universo. Quando você se descobriu boa nisso? O que te inspirou, visto que a maioria das influências disponíveis são, de fato, homens?

Bivolt: Na real, o que me chamou atenção no mundo do hip hop foi basicamente as mulheres. O primeiro contato que eu tive foi através da música norte-americana e lá a essa representatividade já existia com mais força. A cena é bem diferente da daqui. Aqui, quando eu comecei, não existiam muitas mulheres nas quais eu pudesse me inspirar. Era algo bem distante ver mulheres nesse rolê. Eu nem sabia se eu podia batalhar ou não porque eu só via homem. A minha identificação com o rap surgiu porque eu sempre escrevi e curtia a música. Antes de entrar para a cena, eu já respirava o hip hop na minha vivência, desde o grafite até campeonatos de DJs. O universo sempre me encantou muito. Eu me senti inspirada porque senti que as pessoas gostaram das minhas primeiras músicas. Eu era bastante tímida no começo.

TMDQA!: Com essa mudança de cenário, essa descentralização crescente no mundo artístico, a cena tende a mudar completamente. É incrível imaginar que a galera mais nova que está chegando agora no hip hop pode se inspirar em artistas como você, Karol Conka, Tassia Reis, Drik Barbosa… Essa dúvida que você teve, de pensar “Será que isso é para mim?”, basicamente não vai existir para as novas gerações, e muito disso se deve graças a vocês.

Bivolt: Com certeza! Representatividade ajuda a pessoa a se descobrir. Como você vai saber se pode voar se nunca viu ninguém voando? A gente sempre bate nessa tecla, porque é um assunto muito importante. Precisamos ver pessoas de todo tipo em todos os lugares porque, de fato, existem pessoas de todo tipo em todos os lugares. Se as nações tivessem governos justos, com certeza a gente não teria a maioria dos líderes homens brancos.

Isso também se aplica ao mundo do hip hop. Quando eu comecei, existiam certas regras nas batalhas que eram basicamente feitas de homens para homens. Quando eu batalhava, não existiam regras sobre o que os caras poderiam falar de mim. Eu ouvi todo tipo de coisa relacionada a conteúdo sexual. Isso me chateava muito, mas, como estava no “game”, eu precisava levar até o final. Eu comecei a reclamar e a cobrar do público. “Gente, porque vocês estão aplaudindo uma rima dessas?”, eu perguntava. Eu sinto que minha contribuição ajudou a conscientizar o público mais do que outros MCs. Na última batalha que participei, senti uma vitória histórica, porque eram oito homens e oito mulheres disputando. Isso nunca aconteceu antes.

Imagina ter como presidente uma mulher ou um homem trans. Isso ainda é uma realidade muito distante, mas é o sonho de muitas pessoas. Elas querem existir e ocupar lugares sendo apenas quem são. A arte contribui muito para isso. Nós que somos artistas temos a sensibilidade de comunicar algo aos nossos ouvintes. Eu, como mulher que veio da periferia, me sinto na obrigação de ser uma fonte de informação e de transmissão de conhecimento para a minha quebrada, para a comunidade periférica. E é por isso que o governo nega o básico: a educação, a saúde… Isso mantém a periferia em uma dependência que impede seu crescimento. A gente precisa levar o rolê do centro para a quebrada.

TMDQA!: É aquela ideia de que quem está no topo tem medo de a “base” criar pensamento crítico. Por isso a educação e a saúde se fazem tão necessários. Os artistas, diante disso, acabam também representando uma “ameaça” para quem está no poder.

Bivolt: É complicado. Mas sou esperançosa por causa dessa nova geração, vindo com a cabeça aberta e novas ideias. Ao mesmo tempo, a gente vê as coisas retrocedendo. A gente não tem ministro da Saúde no meio de uma pandemia. O governo federal é uma palhaçada. Eu vejo pessoas tentando tirar nossos direitos e encher a gente de obrigação. Faz tudo parte de um plano, de um jogo de interesses.

 

“Todo ser humano é assim, com um lado alegre, um lado triste…”

TMDQA!: Falando sobre o seu disco em si, eu gosto muito da transição de “Me Salva”, uma música mais leve e criativa com raízes no R&B, para “Murda Murda”, que é uma música muito forte que traz um pouco da estética do trap. Como foi trazer todas essas histórias para o formato musical em 40 minutos de álbum?

Bivolt: Eu gosto de música no geral. Esse disco tem música pronta desde 2018. Eu não sou essa pessoa que faz música hoje e lança hoje mesmo, sabe? Eu gosto muito de dancehall, de música jamaicana, e tenho uma conexão com a pegada desse estilo, assim como com a do reggaeton. Ao mesmo tempo, eu também sou muito do R&B e do hip hop. Acho que minha inspiração vem disso tudo mesmo. Cada som ali tem uma especificidade. “Mary End”, por exemplo, tem uma pegada Erykah Badu. “Freestyle”, por outro lado, já tem outra atmosfera.

TMDQA!: Queria que você falasse um pouco sobre a experiência maravilhosa das faixas “110V” e “220V”. Os clipes mostram um certo contraste entre si, mas se complementam e refletem um pouco de quem você é, mostrando lados diferentes da sua personalidade. Como isso tudo foi concebido e como essas faixas ajudam a resolver a questão “Quem é a Bivolt”?

Bivolt: Eu acho que essas duas músicas respondem justamente essa questão de “como explicar quem é a Bivolt?”. Ela leva a pensar que sou um misto entre uma pegada mais calma com uma mais agitada. Só que eu sou a mesma coisa o tempo todo. Eu não gosto muito de dividir, do “eu sou isso e depois isso”. A Bivolt é isso, 110 e 220 ao mesmo tempo. Todo mundo tem um pouco disso, da dualidade. Todo ser humano é assim, com um lado alegre, um lado triste…

TMDQA!: Eu acho inclusive que um dos maiores erros da sociedade foi criar essa cultura “unilateral”. O vilão de filme que é muito mal, o mocinho que é muito bom… Não se trabalharam muito essas dualidades. No seu disco, você trabalha bem essas várias faces simultâneas. “Me Salva”, por exemplo, é uma conversa leve, enquanto “Murda Murda” tem uma estética mais pesada com uma letra mais incisiva. Não dá para colocar em uma caixinha, o que é ótimo!

Bivolt: Exatamente! O disco tem uma certa divisão entre 110 e 220, mas não quis dividir certinho, justamente para respeitar o conceito de que sou sempre a mesma coisa, uma mistura mesmo. Que fique na concepção de cada um o que é 110 e o que é 220. Eu gosto de misturar sentimentos. Você vai encontrar músicas suaves, cantadas com elegância e, ao mesmo tempo, com crítica social, como a “Me Salva”. O mundo está acabando e eu estou pedindo salvação para um alien. A “Cubana” é uma música mais alegre, mas tem uma mensagem de amor por trás. Acho que rótulos acabam limitando uma obra. Meu disco não é só R&B ou só rap. Ele fala diversas coisas de diversas maneiras. Eu quis mostrar um pouco de tudo que eu sei fazer. Não espere nada de mim, porque eu sempre surpreendo. Eu não gosto de bolhas.

 

“Coisas que eu via muito longe da minha realidade hoje são parte dela”

Bivolt
Foto: Divulgação

TMDQA!: Isso tudo sem falar na produção impecável do Nave, né? O disco prende não apenas por causa da métrica afiada e das belas letras. Tem todo um pano instrumental no fundo que soma muito para o resultado final. Como vocês desenvolveram essa parceria e como foi o processo de produção do disco unindo essas perspectivas de compositora e produtor?

Bivolt: Cara, foi tudo muito natural. Teve coisas que a gente começou do zero e teve música que já estava meio pronta. Tem coisa que começamos juntos e tem coisa que começou de um jeito e terminou de outro. O Nave é uma pessoa muito boa para se trabalhar com. Ele é bem na dele, sagitariano, e respeita a identidade de cada um. Ele é extremamente concentrado e isso faz toda a diferença. Eu entendo a facilidade dele de trampar com mulher, porque ele respeita nossa identidade. Eu tenho muita dificuldade com produtor que tenta interferir muito no conceito do artista. No final, o trabalho precisa ter a identidade do artista. Mas é claro que eu entendo que muitos produtores gostam de ter uma estética única, mas aí seria o disco do produtor. Como o disco, neste caso, é meu, ele precisa ter a minha cara.

TMDQA!: Você foi conquistando sua visibilidade aos poucos até chegar onde está hoje. Foi um certo tempo em contato com a cultura de rua, a experiência com batalhas de rap. Qual foi a contribuição dessa vivência toda para o que desencadeou neste disco e como você enxerga a evolução da sua carreira até hoje?

Bivolt: Eu acho que sou a mesma pessoa, obviamente (risos), mas eu amadureci muito burocraticamente. Mas o sentimento ao compor cada canção ainda é o mesmo. É onde eu encontro meu refúgio e minha paz. É o meu momento! Eu acho que evoluí bastante, porque vejo que coisas que eu via muito longe da minha realidade hoje são parte dela. Eu consigo viver do que eu amo, sabe? Não estou fazendo rios de dinheiro, mas é satisfatório só por ser um trabalho com algo que eu gosto. Eu amo o que faço e estar no palco, para mim, é uma vitória. Ter meu trabalho reconhecido pelas pessoas, para mim, é uma vitória. Cada vez que eu vejo uma pessoa cantando uma música minha, eu fico impressionada, porque ainda é algo meio inacreditável.

 

“É um disco de auto afirmação, de liberdade…”

TMDQA!: Que dica você pode dar para essa nova galera chegando agora? 

Bivolt: Uma dica que eu posso dar para a galera é: estudem! No mundo da música, vai aparecer muita gente falando que sabe fazer tal coisa, e não dá para confiarmos em qualquer pessoa. Existe muita gente charlatona nesse mundo artístico. Temos que tomar muito cuidado. Graças a Deus, minha equipe é maravilhosa e só tenho elogios, mas vejo muita gente por aí se dando mal por não entenderem direito as questões da indústria. O estudo é muito importante para saber como tudo funciona.

TMDQA!: Às vezes eu sinto que as possibilidades tecnológicas, que são ótimas, deram muita pressa para os artistas. Você concorda? Lembrei do que você falou sobre ter músicas guardadas há tempos.

Bivolt: Eu respeito muito a individualidade de cada artista. Tem gente que lança música nova todo dia, e eu acho que isso é algo que funciona. Na minha análise, eu percebo que essas pessoas que lançam música com mais frequência se comunicam com um público muito mais jovem. E eu entendo que tudo esse público cresce e que tudo no adolescente é mais inconsistente. Eu acho que é por isso que surgem muitos artistas o tempo todo. Eu gosto de solidez em tudo, até na hora de produzir. Eu quero ter certeza do que eu quero falar. A minha poesia não é tão direta. É uma linguagem que comunica a todos e, ao mesmo tempo, força a gente a pensar. Eu gosto desse jogo com as palavras.

TMDQA!: Tem o impacto que só o lançamento de um disco consegue dar, né? Talvez seu disco não fosse interpretado com a mesma intensidade caso lançado aos poucos, em vários singles.

Bivolt: Eu acho que o disco serve bem para apresentar uma estética consolidada. Tem várias formas de se lançar um álbum. Eu lancei como forma de apresentar o que sou, e por isso ele carrega o meu nome. É um disco de auto afirmação, de liberdade… Eu acho que ele nos permite criar um universo.

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