July Talk aborda a desesperança e desencontros urbanos em novo disco
Foto: Vanessa Heins / Divulgação

Tratar a música como uma arte que se mescla a outras vertentes é uma das especialidades do July Talk, uma das bandas mais interessantes em questão de conceito e sonoridade a sair do Canadá nos últimos anos.

O grupo que transita entre o Art Rock e o Rock Alternativo sem deixar de lado as influências de Indie e Blues é formado pelos vocalistas Peter Dreimanis Leah Fay, cuja dualidade de vozes virou marca registrada das canções, além de Ian Docherty na guitarra, Josh Warburton no baixo e Danny Miles na bateria.

Depois de uma estreia bem-sucedida com seu álbum homônimo em 2012, o quinteto expandiu seu som em Touch (2016) e chega ainda mais cheio de influências e novidades no recém-lançado Pray for It.

Por trás dos lindos clipes e canções da banda estão mensagens poderosas, seja sobre as injustiças que o mundo nos apresenta dia após dia, sobre reflexões internas ou até mesmo sobre a paixão e o amor.

Para entendermos melhor tudo isso, conversamos com Leah e Peter em uma entrevista exclusiva que ajuda a esclarecer as mensagens passadas pelo novo álbum e detalha o incrível processo de composição do grupo. Confira a seguir!

Entrevista com July Talk

TMDQA!: Oi, pessoal! Espero que esteja tudo bem por aí no meio de todo esse caos. Queria começar dando parabéns pelo novo disco e, em especial, pelos singles — todos eles soam muito bem, muito diferentes um do outro, e isso é algo que realmente captura a atenção do ouvinte. Pode nos contar mais sobre a sonoridade do novo álbum e como ela foi concebida?

Leah Fay: É tão difícil falar sobre música. É um pouco como as pessoas veem diferentes tons de cor ou a forma como uma frase pode ser lida de 100 formas diferentes dependendo de onde está a ênfase do leitor ou de como eles imaginam o tom de voz da pessoa. Cada música veio de um sentimento, experiência ou crença urgente diferente, e as decisões sonoras foram feitas de acordo com o que intuitivamente parecia melhor para cada canção. Então há muita variedade, sim, mesmo fora dos singles!

“Good Enough” me faz querer dançar, “Friend of Mine” meio que começou como uma ideia que queríamos lançar como um lado B porque ela soa feliz, “Champagne” tem a intenção de ser um comentário sonoro (e temático) no roubo e lucro em cima da música negra pelos músicos brancos na música Pop através do último século e conta com uma bela linha vocal inspirada pelo Gospel e escrita por James Baley — a gente explora muito território diferente nesse álbum.

Ter duas vozes na nossa banda sempre foi o aspecto mais identificável de qualquer música do July Talk e meio que nos faz sentir que temos a liberdade de experimentar para além dos limites da música “Rock and Roll”. Eu acho que realmente utilizamos dessa liberdade nessa coleção de músicas.

TMDQA!: Que legal! Eu queria falar um pouco sobre “Identical Love”, pois achei a faixa bastante interessante uma vez que eu acho que a primeira vez em muito tempo (ou na vida, talvez!) que vocês têm uma música com a guitarra como instrumento de fundo. Era algo que vocês queriam experimentar há algum tempo ou foi só essa questão da resposta intuitiva à música em si?

Peter Dreimanis: “Identical Love” foi escrita majoritariamente no wurlitzer como seu principal instrumento de ritmo. Eu acho que a natureza mais aberta das letras nos levou a uma paleta mais etérea e cheia de nuances de saxofones e sintetizadores ao invés de algo mais imediato e de confronto como uma guitarra distorcida. Fazer esse disco foi um verdadeiro treino de ouvir as músicas e deixá-las direcionarem suas próprias direções criativas, ao invés de forçar a mão.

Fosse a letra ou algum movimento de acorde específico que dava essa deixa para os arranjos, foi importante que seguimos o caminho que a canção mandava. Aliás, acho que nos sentimos menos preocupados com a habilidade da canção de ser percebida, e mais empolgados com o pensamento de uma música ser a sua expressão mais verdadeira de si, usando suas roupas preferidas e pintando seu cabelo de rosa se ela quisesse. Nós não queríamos falar às nossas músicas qual uniforme usar, sabe?

TMDQA!: Sei! Também queria falar sobre “Governess Shadow”, mas tocando em outro ponto. Sinto que o tema lírico dela é tão importante dentro do contexto que temos no mundo agora, pois parece que vocês estão criticando a forma como alguns de nós simplesmente se eximem de qualquer culpa e ficam confortáveis em meio às injustiças e opressões daqueles que não têm escolha. É por aí? Vocês podem elaborar um pouco sobre o pensamento que deu origem a essa música?

Peter: Obrigado, e sim, é por aí. Eu acho que eu comecei pensando sobre essa gigantesca sombra que a nossa história bizarra tem sobre nós. A violência institucional e a desigualdade do nosso passando ficam se pendurando sobre nós como um elefante gigante na sala. Nós, as pessoas privilegiadas como eu, podemos decidir quando querem pisar dentro da sombra da complacência. É uma coisa bem complicada ver o poder tomando conta, quando alguém “dá uma carteirada” e afirma seu poder sobre outra pessoa. Eu estava interessado em explorar esse momento, quando as diferenças entre nós se mostram. Porque não é justo, e nunca foi justo.

“Pay for It” e importância da cidade para a arte

TMDQA!: Bom, vocês são de Toronto, e pelo que sei a cidade é muito artística — e vocês são um ótimo exemplo de quantos meios artísticos diferentes podem se juntar em um único projeto (como uma música) para dar mais sentido a ela. Vocês acreditam que o contexto da cidade e essa vibração artística colaboram pra isso?

Leah: Eu acho que os músicos de Toronto fazem algumas das músicas mais importante no planeta e muito disso provavelmente vem do fato de que em uma cidade grande e populosa você é constantemente lembrado de que não vive em uma bolha, é apenas um em vários milhões tentando viver a vida. Pra mim, isso me faz querer estar ciente do meu lugar e do espaço que eu ocupo.

Eu tenho uma tendência a ver as coisas de uma maneira diferente do que as outras pessoas daqui (com 2,93 milhões aqui por perto) então há muito a aprender sobre como coexistir de forma responsável e como ajudar onde eu puder — especialmente durante uma pandemia e um movimento global para desmantelar sistemas de poder antigos. Toronto tem seus problemas, como qualquer outro lugar (é difícil encontrar moradia barata, por exemplo) e o patriotismo é um conceito estranho em terra roubada, mas é um privilégio morar em um lugar onde eu acho que algumas conversas importantes acontecem. Essas conversas geram ótima arte.

TMDQA!: Te perguntei isso porque acho que “Pay for It” é um grande exemplo de como um vídeo pode fazer uma música ganhar um significado totalmente diferente. É um visual tão poderoso e, rolando pelos comentários do YouTube, vi muita gente se emocionando assistindo a ele e refletindo sobre. É esse tipo de coisa que dá a sensação de “missão cumprida”? Aliás, se também puderem falar mais sobre o vídeo, tenho certeza que as pessoas vão curtir saber!

Leah: Eu acho que o maior sentimento de “realização” é quando eu ouço que a nossa arte está curando as pessoas. “Pay for It” foi escrita como uma oração para a quebra de “hábitos antigos” mas ela veio de um momento onde eu me senti sem forças e precisei daquelas palavras para me sentir curada.

A gente compartilhou a música com nossos colegas de quarto e melhores amigos (Norah Sadava, uma escritora de teatro, que dirigiu [o clipe] e Mike McLaughlin que o filmou) e ficamos empolgados que eles quiseram fazer o vídeo para ela conosco. Nós trabalhamos nisso a maior parte de Fevereiro, logo antes de tudo no mundo mudar.

É meio que uma carta de amor às contagens diárias de destruição, disfunção, crise, violência, injustiça, nova vida e esperança de Toronto. A Norah desenvolveu o conceito de ver o mundo através do olhar de um bebê ainda não nascido justaposto a coisas que parecem como se fossem quebrar ou morrer. A irmã do Peter e sua sobrinha ainda não nascida são as personagens centrais vistas no começo, a minha mãe “trabalha” na loja de roupas e o meu pai está na cama do hospital durante a cena do colapso na ponte da música. Foi realmente um trabalho em família.

Eu vi o meu pai tendo um derrame enquanto escrevíamos esse álbum e é algo que ainda me dá pesadelos. Meu pai e eu discordamos em política, o que é extenuante em nosso relacionamento, mas no momento que eu pensei que estava a ponto de perdê-lo para sempre, todas as conversas que já tivemos pareceram tão triviais. Eu não ligava para as nossas discordâncias. Eu odeio que eu precisei de um evento tão assustador para colocar as coisas em uma nova perspectiva mas foi um momento realmente muito importante na minha vida.

Eu não rezava em anos, mas quando ele estava inconsciente e dentro da máquina de ressonância magnética e eu não tinha certeza se ele voltaria a ser o mesmo algum dia, realmente não havia mais nada a fazer. Eu pedi aos ancestrais dele que por favor ajudassem se tivesse qualquer coisa que eles pudessem fazer. É parcialmente de onde vem o nome do álbum [Pray for It significa “Reze por Isso”].

A Norah é a minha melhor amiga, então enquanto eu não confiaria em qualquer um para recriar o pior momento da minha vida, eu sou realmente muito grata a ela e muito feliz com como esse vídeo ficou.

E ah, o meu pai está melhor agora e nós já voltamos a debater política, só que agora a gente sempre termina dizendo “Eu te amo, mesmo que eu não concorde com você”.

Pray for It, pandemia e shows drive-in

TMDQA!: Que bom que ele está bem e que as discussões voltaram dessa forma mais saudável! Imagino que tenha sido difícil, e outra coisa que não deve estar sendo fácil é lançar um álbum no que talvez seja o ano mais doido da história moderna. Como tem sido trabalhar em meio a tudo isso sem perder a cabeça?

Leah: A gente escreveu esse álbum no que pensamos que eram os anos mais doidos da história moderna, o que parece engraçado agora. Acho que pra mim, 2016 não foi nada em comparação [a hoje], mas na época parecia que eu estava sendo chutada pra todo lado. Eu sou uma pessoa que tem espirais depressivas e que cai em crises de ódio direcionadas a mim mesma. Durante o isolamento, eu não posso ignorar esses fatos reais sobre mim mesma. Eu preciso olhar para eles e ser paciente com eles. Então eu diria que 2020 é um ano muito revelador.

Claro, socialmente e globalmente, a disparidade entre as pessoas que se beneficiam dos sistemas antigos e as pessoas que sofrem em suas mãos tem se tornado flagrantemente óbvia. A nível pessoal, meus privilégios e tudo que eu tenho para ser grata por se tornaram óbvios também.

Pré-pandemia era normal, para mim, só continuar seguindo com uma visão fechada e fixa em um objetivo. Era mais conveniente ignorar verdades, não olhar para coisas dolorosas, não entrar em conversas desconfortáveis. Ou pelo menos poder escolher quando eu iria falar e quando eu iria ficar quieta. Tudo parece urgente agora. Eu sinto que cuidar de mim mesma é imperativo para aparecer no mundo se eu quiser ser parte da solução da injustiça algum dia. Então, enfim, há muito a fazer e a aprender.

Eu me sinto extremamente grata por estar falando sobre arte com um site do Brasil agora, enquanto estou saudável e segura na minha casa no Canadá, durante uma pandemia. Se você me dissesse que algum dia eu diria isso enquanto estávamos lançando nosso último álbum em 2016, eu provavelmente teria parado para admirar a beleza do mundo mais vezes desde então.

TMDQA!: Por fim, queria conversar com vocês sobre os shows drive-in que estarão acontecendo nos dias 12 e 13 de Agosto. É uma ideia muito empolgante (e provavelmente seria ainda mais sem esse contexto terrível) e parece que vocês são uma ótima escolha para esse formato. Como estão os preparativos?

Peter: A preparação está ótima! Temos trabalhando em um monte de visuais para integrar com o show. Os ingressos estarão à venda em breve [por aqui], então está tudo começando a tomar forma. Na noite passada, nós fomos assistir Jurassic Park no drive-in que iremos tocar. Foi incrível imaginar a entrada no palco com todos aqueles carros na nossa frente. Como você disse, acho que o July Talk encaixa bem nesse formato porque somos todos loucos por cinema. É um sonho pra mim poder interagir com a história da cultura drive-in de forma tão direta, criando uma experiência totalmente interativa com a plateia, conforme eles nos assistem tocar de uma forma tão única.

TMDQA!: Pra fechar, queria só entender o que levou vocês a decidir pelo formato drive-in ao invés de uma transmissão ao vivo paga e/ou um show com distanciamento social, já que algumas bandas têm optado por esses caminhos. E mais, vocês pensam em fazer uma turnê assim no futuro? Ah, obrigado pelo tempo de vocês!

Peter: A nossa amiga Vanessa [Heins, fotógrafa] teve a ideia, e nós imediatamente sabíamos que era perfeito pra nós. Nós tínhamos acabado de cancelar um punhado de shows em festivais do Verão, incluindo um grande em Toronto que seria um grande marco para nós. O show drive-in é perfeito, porque é tão seguro para o público ir, e eles ainda têm aquele elemento humano que não existe nos shows online.

Dito isso, nós faremos diferentes ideias de transmissões ao vivo também, deixando esse show disponível para as pessoas ao redor do mundo, porque acho que no fim das contas só queremos tentar tudo mesmo. Estamos esperando que os fãs do Brasil possam curtir!

Não parece que voltaremos à estrada para uma turnê normal em qualquer futuro próximo, então parece melhor tentar essas diferentes abordagens no meio tempo e descobrir o que parece criativo e autêntico dentro do projeto do July Talk. Nós não poderíamos fazer uma turnê de vários drive-ins porque é caro demais contratar uma equipe completa de câmeras para capturar as filmagens projetadas nas telas. Essa primeira, no entanto, é um verdadeiro experimento, então talvez iremos encontrar novas formas de fazê-lo mais e fazer uma turnê de uma forma mais acessível.

Teremos que esperar pra ver, mas é empolgante mesmo assim, e sabemos que será uma experiência que não iremos esquecer!

Veja mais informações sobre as apresentações drive-in do July Talk por aqui.

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