Gal Costa e Jards Macalé
Foto: Divulgação

Recentemente, o humorista Fabio Porchat relembrou uma ocasião em que Fernanda Torres foi ao programa Altas Horas e, “completamente drogada” (nas palavras de Porchat repetindo críticas que a atriz ouviu), cantou, junto ao grupo O Rappa, uma versão bizarra de “Vapor Barato“.

Lançada originalmente em 1971, a canção ganhou o Brasil através da voz de Gal Costa. Foi um dos maiores sucessos de seu disco Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, lançado em meio a tempos nebulosos no país. Bela, emocionante, intimista e, ao mesmo tempo, explosiva, “Vapor Barato” conquista gerações até hoje e é marcada como uma das principais músicas do período.

Separamos algumas curiosidades sobre a produção e sobre o impacto dessa incrível composição para a música brasileira. Confira abaixo:

 

Waly Salomão e Jards Macalé

O poeta e compositor baiano Waly Salomão (1943 – 2003) passou a ganhar visibilidade artística após a explosão do movimento da Tropicália. Na época também conhecido como Waly Sailormoon, seus poemas já ganharam interpretações nas vozes de nomes como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e mais.

“Vapor Barato” teve sua letra escrita por Waly, mas foi musicada pelo incrível Jards Macalé, que também assina a composição. A parceria rendeu ainda canções como “Mal Secreto“, “Anjo Exterminado” e “Revendo Amigos” (esta última enviada doze vezes para a censura durante a ditadura).

Genialmente inquieto, ele convenceu e ajudou Jards a explorar potencialidades musicais que logo dariam ao carioca o título de um dos “malditos” da MPB.

A gente conversava muito e eu ficava incitando Macalé a quebrar os vínculos com remanescentes da bossa nova ou então com a música de concerto, com aquele perfeccionismo.

 

Contexto sociopolítico

A canção foi escrita em tempos de ditadura militar no Brasil e lançada três anos após a implantação do AI-5. Na época, era grande a repressão contra a imprensa e contra manifestações artísticas, especialmente no que diz respeito à música. “Vapor Barato” é resultado de uma contracultura cada vez incentivada no Brasil, resposta direta de uma juventude inconformada.

Sobre o período, Waly conta:

Começamos a trabalhar exatamente naquele período que marcava um vazio depois do AI-5, depois de tudo o que foi o tropicalismo em 1968 e que foi cortado violentamente no final daquele ano. 69 começava como um período de esmagamento total, vindo de cima, do poder.

 

O que é o tal “Vapor Barato”?

A canção trata da busca humana por um lugar no mundo, traçando paralelos com o exílio através da metáfora de um navio. O exílio em questão, no entanto, não se limita à sua questão física, fazendo referência a uma questão interna de pertencimento. Aliás, no momento, era como se o Brasil abandonasse seus próprios artistas.

O rumo do tal navio a ser tomado é um lugar de pertencimento e não um lugar físico. É uma busca existencial, mas que não tem pretensões de abandonar o país. Assim, faz-se a resistência que caracterizou boa parte da cena musical dos anos 70 no Brasil.

 

A “honey baby”

A letra também ilustra bem o tempo em questão, seja por metáforas ou por termos mais diretos que clareiam o contexto de sua composição (como o “casaco de general” vestido pelo eu-lírico). Mas já parou para pensar no significado do termo “honey baby” na música?

Uma das interpretações possíveis é a influência dos Estados Unidos no Brasil, especialmente durante os Anos de Chumbo. Aliás, muito se crê que o golpe aplicado em 1964 teve apoio dos norte-americanos. Mas a ideia de um saudoso relacionamento amoroso também se mostra uma possibilidade.

 

A potência de Gal

A canção, indiscutivelmente, ganhou o Brasil através da voz de Gal Costa. Foi, por sinal, um dos pontos altos de sua carreira. A interpretação ganhou vida no emblemático show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, que deu origem não apenas a um dos discos mais importantes e endeusados da carreira de Gal, como também a um dos discos mais aclamados da música brasileira.

O tal show, vale citar, teve direção do próprio Waly Salomão.

Gal Costa no Festival Queremos! 2019
Gal Costa em 2019. Foto: Patrick Sister

 

Uma baita interpretação

Gal Costa ficou musicalmente conhecida como uma grande intérprete. Aqui, temos um ótimo exemplo disso. A cantora conseguiu imprimir sua própria musicalidade em “Vapor Barato”, dando uma

Isso fica claro se compararmos a interpretação da Gal com a de Jards. O cantor se mostrou inspirado pelo canto quase falado, uma inspiração direta em João Gilberto. Na versão de Gal, vemos um crescimento significativo entre as repetições da letra. Em uma delas, acompanhada apenas por um violão, ela canta baixo, de forma um tanto introspectiva. No entanto, conforma a música se desenvolve, tudo se dá de maneira mais intensa, com mais instrumentos e uma voz mais presente. A tristeza evidenciada na voz se transforma, subitamente, em afirmação de poder.

 

Graças a quem?!?!

Em entrevista recente ao jornalista Leonardo Lichote, Jards Macalé revelou uma curiosidade até então inédita sobre a letra da canção. A expressão “Graças a Deus”, cantada logo após o verso “Eu não preciso de muito dinheiro”, não estava na letra original, sendo então uma exclusividade da interpretação de Gal Costa. O termo, no fim das contas, suaviza a interpretação da poesia original.

Acontece que Waly não ficou muito satisfeito com a livre adição. “Waly ficou puto!”, exclamou Macalé enquanto relembrava um de seus maiores sucessos.

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Walter Salles, Fernanda Torres e um novo contexto

Vinte e quatro anos após a gravação inicial, o cineasta Walter Salles estava gravando o filme “Terra Estrangeira” sob um contexto político diferente: a presidência de Fernando Collor de Mello. Economicamente, a população brasileira sofria com o confisco do dinheiro das cadernetas de poupança. Muitos deixaram o país na esperança de uma vida melhor.

Em um dos intervalos das gravações, Salles reparou na atriz Fernanda Torres cantarolando a canção. O cineasta decidiu inseri-la no longa, interpretada apenas através da voz de Fernanda. Dado todo o contexto, a canção ganhou uma nova dimensão e teve seu significado atualizado para toda uma nova geração. A versão de Gal, por sinal, foi trilha sonora dos créditos finais.

Essa “atualização” catapultou novamente o reconhecimento de “Vapor Barato”, que ganhou mais fama ainda a partir de uma certa gravação.

 

O Rappa e mais: o legado de “Vapor Barato”

O grupo carioca O Rappa viu a obra de Salles e entendeu o novo significado que a canção carregava. Isso foi inspiração suficiente para que a banda inserisse uma releitura em seu segundo disco de estúdio, Rappa Mundi.

Completamente renovada, a composição de Salomão e Macalé voltou a ganhar visibilidade e conquistou as rádios do país. Aliás, sabemos que eles eram muito bons com covers. A nova versão conta com elementos do reggae e do rock alternativo que caracteriza a sonoridade d’O Rappa.

Outros artistas que também gravaram “Valor Barato” incluem Daniela Mercury e Zeca Baleiro. E certamente novas versões irão aparecer, a fim de nunca deixar o rumo do navio deste grande sucesso se perder.

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