Rapadura
Foto: Paola Vianna

Em 1960, o compositor baiano Gordurinha lançou “Súplica Cearense”, canção que já foi regravada por nomes como Luiz Gonzaga, Fagner e O Rappa. “Desculpe eu pedir para acabar com o inferno que sempre queimou o meu Ceará,” canta. No contexto da faixa, uma seca devastadora tomou conta do estado. Os habitantes, perseverantes, torcem pela chuva e por dias melhores.

Musicalmente, na percepção do resto do Brasil, o nordestino sempre foi muito associado com a questão sertaneja. Foi colocado dentro de uma injusta caixinha que nos impede de ver as diversidades de cada um dos estados da região. É um triste rótulo cinza colocado sobre uma extensa paleta de cores.

É justamente essa paleta, que dá o tom para o disco de estreia do rapper cearense Rapadura. Através de uma mistura de baião, reggae, maracatu, guitarrada e até rock psicodélico, ele nos apresenta ao Universo do Canto Falado. A chuva de palavras, em contraste com a seca de “Súplica Cearense”, nos leva a um dos terrenos mais férteis nos quais a música nacional vai pisar em 2020.

 

“Eu não precisei aprender, porque já estava em mim”

O disco, que tem produção de seu colega Carlos Cachaça, é mais do que um auto-retrato da plurilateral cultura da região Nordeste. Universo reflete todo o background musical de Francisco Igor Almeida do Santos (nome de nascimento de Rapadura). Após crescer no Ceará, ele morou em outras regiões do país e foi absorvendo outras referências musicais de forma muito natural, até desenvolver uma sonoridade colorida, mas que não foge às suas raízes.

Rapadura respondeu algumas perguntas do TMDQA! com reflexões sobre a vida do nordestino, sobre a sociedade e sobre a música brasileira. Confira abaixo nossa entrevista na íntegra e sejam bem-vindos ao Universo do Canto Falado:

TMDQA!: Você começou a compor ainda adolescente, depois de ter se mudado para Brasília, certo? O que te fez entrar no mundo da música?

Rapadura: A música e a dança sempre fizeram parte de mim. Minha “mainha” sempre cantava algumas cantigas antigas para mim. Me ninava com músicas do sertão dela, cânticos de lavadeiras, rezas e canções românticas. Meu pai era do brega e do rock. Ouvíamos muito Raul Seixas e Paulo Sérgio essa época. Quando era um pouco maior, ele começou a me levar para suas cantorias (voz e violão) pelo bairro. Daí em diante, não parei mais de cantar.

Já a dança veio na época da escola. Eu dançava muita lambada e forró e cheguei a ganhar concursos e prêmios em dinheiro. Certa vez, teve um concurso em um circo perto de casa e eu fui participar. Eu devia ter uns 7 ou 8 anos de idade, ganhei o concurso, peguei a grana e fui ao mercantil. Fiz as compras e cheguei de surpresa em casa. Minha mãe ficou emocionada e impressionada em eu ter feito aquilo com tão pouca idade. O bom de ser criança é essa pureza, essa beleza, ser desprendido de bens materiais, só pensamos em levar alegria a quem amamos.

Depois que minha família se mudou pro DF no final de 1997, eu tive a oportunidade de conhecer o hip hop através do break. Do break eu rapidamente migrei para o rap. E o mais interessante de tudo é que eu não precisei aprender, porque já estava em mim. Eu comecei a fazer rimas já sabendo fazer. Nem eu mesmo entendia. Com 13 anos, ganhei meu primeiro concurso de rap, sendo a única criança rimando no meio de adultos. Depois disso, não conseguia entender como havia passado tantos anos sem fazer aquilo que nasceu junto comigo.

TMDQA!: Apesar de nascido no Ceará, você já morou em outras regiões do brasil. O que sentiu de diferente em termos musicais nessas regiões? Apesar de estarem submetidas ao mesmo país, as culturas dessas regiões têm muitas diferenças entre si?

Rapadura: Já morei em alguns lugares do Brasil. No DF tive um contato forte com a catira (dança típica do cerrado) e com a folia de reis (celebração religiosa). Na época, Brasília era um dos grandes pólos do hip hop. Tive um convívio intenso com todos os elementos dessa cultura. Em Salvador, tive uma experiência mais intensa com ritmos afrobrasileiros, como o samba de roda do recôncavo, a capoeira e o repente de Bule-Bule. Foi lá que nasceu, em 2009, a Fita Embolada do Engenho, prova viva do impacto que sofri em meio a esses processos migratórios, a mistura do rap com o imaginário nordestino.

Se pararmos pra analisar mais um pouco o próprio Nordeste, veremos o quanto é grandioso e rico na sua linguística. Em cada estado, um novo sotaque é apresentado, uma verdadeira dança de palavras.

 

“Ser nordestino é reinventar o sorriso”

TMDQA!: A identidade do Nordeste é algo que dá tom e discurso para o seu disco. A vivência do nordestino é o que guia a maioria das músicas, entre as maravilhas da cultura e críticas sociais. Nesse sentido, o que significa ser nordestino no Brasil de 2020? Como o Universo ajuda a entregar essa mensagem?

Rapadura: Ser nordestino é reinventar o sorriso, é trazer o afeto em meio ao frio, é ser mesmo quando dizem que você nunca será. Fomos, somos e seremos resistência em qualquer época. Isso faz parte da raiz que rasga a superfície dura para dar frutos, e essa será nossa essência até 2000 e sempre. Quando o país se viu sem Norte, teve que se guiar pelo Nordeste. Até a morte respeitou o nosso propósito. Logo, o universo se rendeu e teve que conspirar a nosso favor.

TMDQA!: A gente vive um período em que as barreiras regionais têm se mostrado cada vez mais frágeis, musicalmente falando. Talvez este seja o momento ideal para novas propostas musicais como esta. Acha que o atual momento tecnológico é favorável para isto? Como a tecnologia contribuiu para que seu som se torne “nacional” e não simplesmente “regional”?

Rapadura: Em tudo que faço está meu eu por inteiro, com toda experiência e bagagem adquirida todos esses anos. Sempre fui colecionador de vinis regionais antigos e de cordéis também. No entanto, muitas referências musicais que tenho hoje vieram da época dos blogs, quando ainda conseguíamos baixar o conteúdo na internet (risos). Me enriqueci muito com discos que baixei e com os textos e poemas que li. Antes, os recursos eram bem escassos. Gravávamos tudo em uma só trilha, fazíamos demos e levávamos às rádios comunitárias.

Estou lançando esse trabalho por considerar necessário nesse momento. Sinto que tenho algo importante a passar e compartilhar com meus semelhantes, então a obra se faz urgente. São coisas que escrevi há dois anos que estão acontecendo agora. O momento é de empatia, de nos unirmos em prol de um bem maior. A natureza está pedindo socorro e o que fazemos nas redes sociais é só falarmos de nós mesmos como se fôssemos especiais demais. É preciso mais humildade para reconhecer que erramos com o planeta e maturidade para lidar com as redes sociais e fazer bom uso dessa tecnologia.

TMDQA!: Por sinal, na sua visão, existe uma linguagem musical que consiga ser enquadrada como nacional ou isso trata-se apenas de uma convenção social/industrial?

Rapadura: Considero qualquer rótulo prejudicial e limitador. Somos de um país muito rico culturalmente, então por que não exploramos isso? Existe um jogo industrial que dita o que você tem que fazer para obter algum êxito no ramo musical. Se não dançar como a banda toca você está fora da festa. Só que eu entortei o rap e fiz do meu jeito nordestino de ser. Nenhum gringo consegue fazer o que eu faço. Ao invés de imitar o que vem do exterior, eu decidi trazer o som do interior, fazer um festejo pro meu povo, fazer algo que acredito e que me emociona, mesmo não sendo o que tem a venda na prateleira. Eu sou um invasor de prateleiras e ninguém consegue me rotular. Criar é de fato uma dádiva e, mais que isso, é ter coragem de se assumir como você é.

 

“A viagem é intensa e contínua”

TMDQA!: Como você resumiria o universo que você nos apresenta em seu disco? O que é, de fato, o Universo do Canto Falado?

Rapadura: O universo do canto falado é o paralelo entre o concreto e o imaginário nordestino, onde o abstrato toma forma, ganha asas e arranha o céu da boca do mundo. No dia que o silêncio ganhou poder de voz, o cinza tomou conta dos seres e eles se tornaram tóxicos. Se fez necessária a recriação do verbo. Os motes diversos vieram de tão longe que se chocaram com as estrelas, e assim, deram vida ao Universo do Canto Falado.

TMDQA! Sobre os detalhes do disco, como foi pensada a ordem das faixas?

Rapadura: Eu e Carlos Cachaça criamos juntos. Já tínhamos feito uma abertura para o disco e a partir da primeira faixa a coisa foi se desenhando como se tivéssemos feito tudo em sequência. O mosaico foi se montando tão incrivelmente que ficou parecendo que já fizemos tudo pensado (risos). As faixas se interligam e uma vai puxando a outra. Fomos muito abençoados e felizes na escolha dos sons e da ordem que se firmou. Não dá para mudar de faixa, pois ao final de uma tem uma magia que liga com a outra e é muito prazeroso ouvir nessa sequência. Preparem suas almas e fones, porque a viagem é intensa e contínua.

TMDQA!: Quem você pode citar como as referências principais que você usou durante a composição do disco? Vemos que é um disco essencialmente hip hop, mas a estética não deixa omitir as influências do baião. Ao mesmo tempo, você também cita nomes como Cidadão Instigado e Belchior nas letras.

Rapadura: Com certeza, o rap é a base do meu trabalho. No entanto, nesse disco eu explorei mais o canto. Fiz rock, fiz coco (dança), maracatu, música erudita… Foi mesmo uma experiência incrível! Cachaça me viu cantar certa vez e percebeu ali um potencial. “Por que você não usa mais desse recurso? Você tem uma voz única e bonita e é afinado, podia cantar mais, hein?”, me questionou. Eu aceitei o desafio e trabalhei muito nisso. Criei muitas melodias e letas ao som da viola, e isso virou partes cantadas, refrões e flows melódicos. Virou essa obra grandiosa cheia de vida e intensidade.

Não me inspirei em nomes específicos pra compor. Eu tive que me inspirar na minha própria experiência de vida, até porque, no meio do processo de gravação, passei por um nevoeiro de dúvidas comigo mesmo e com meu trabalho. Passei por problemas de família e pelo término de uma relação. Vivi um período seco de solidão e, quando já não me encontrava, minha cultura me estendeu a mão e fez eu me lembrar de quem eu realmente era. Por isso voltei pra ficar.

 

“Nós somos o incômodo”

TMDQA!: De uns anos para cá, uma nova e diversificada cena musical nordestina tem tomado conta do país e espaço nos mais diversos festivais. Tem BaianaSystem, Baco, Xênia França, Luedji Luna, Romero Ferro, Far From Alaska e muitos outros! A que você acha que esse momento rico se deve?

Rapadura: Vivemos um verdadeiro caos no mundo e é nesse momento que o artista de verdade faz a diferença nesse plano. Historicamente falando, sempre que chegamos na escassez, a coisa toda é obrigada a se renovar. É um processo natural da vida. É necessário que mais artistas com identidade forte apareçam e remexam a cena toda, tirando as pessoas do comodismo do status artístico, e que a raiva nos leve a criar. Se assumir como se é, de fato, é uma grande porrada no sistema. Nós somos o incômodo e nosso grito é o som que ecoa e faz mudar.

TMDQA!: Que outros nomes da atual cena musical do Nordeste você nos indicaria?

Rapadura: Nubia (MA), Seu Pereira (PB), NSC (AL), Mestre Bule Bule (BA), Caju Pinga Fogo (PI), Carcará na Viagem (RN), Taco de Golfe (SE), Dav Cena (CE) e Tiger (PE).

TMDQA!: Apesar de tudo, nesse disco você procurou se expandir musicalmente, achando mais potencialidades para voz além do seu já característico flow. Como foi esse processo e o que você tirou de aprendizado de toda essa produção?

Rapadura: Cresci muito nesse processo de produção e criação do disco, e Cachaça foi um grande responsável por isso. Hoje eu canto, sei o que estou fazendo e tenho controle sobre minha voz. Consigo alcançar regiões altas da voz com precisão e consigo criar melodias com mais facilidade. Isso fez com que as janelas do som se ampliassem pra mim, me sinto capaz e pronto pra qualquer desafio.

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