Black Alien - Abaixo de Zero: Hello Hell

Por João Lucas Dusi

Eu não queria ser o Eminem, muito menos Marhsall Mathers. O André Sant’Anna, baita escritor brasileiro, queria ser o George Harrison (1943-2001). Eu queria ser o Slim Shady vestido de Robin, em 2002, sentado ao lado de Dr. Dre e mexendo a cabeça, entusiasmado, ao som de “Without me”. Ou a mesma figura, agora em um hospício, com o dedo do meio em riste, afirmando que há um potencial insano dentro de cada um de nós. Foi assim que o rap me fisgou.

Na mesma época, início do século 21, a música “By the way”, do Red Hot Chili Peppers, disputava o primeiro lugar com o Eminem nas paradas da Band e MTV. Boas lembranças. Anos depois, fiquei obcecado por Red Hot. Por indicação do Soldado Gargalhada, um bom amigo, caí de cabeça na história do John Frusciante. Ele foi o guitarrista oficial da banda e entrou na heroína, incapaz de segurar a onda pós-fama. Depois de sobreviver, deus sabe como, foi filmado falando sobre Pitágoras e fumando um cigarro, ainda cabeludão e com aqueles braços multicolores, resultado das cirurgias plásticas que precisou fazer devido às feridas purulentas das picadas.

A droga e a criação de alto nível parecem andar lado a lado. Vale tanto para a literatura quanto para a música. Há muitos exemplos possíveis e, tirando talvez Keith Richards e Ozzy, já enraizados no imaginário popular, todos têm final trágico — Amy, Jimi, Janis, Kurt. Digo trágico, mas depende do ponto de vista. Não é a questão. É aqui que entra a história do carioca Gustavo Ribeiro, dito Black Alien, e a minha relação com o seu álbum mais recente, Abaixo de zero: Hello hell (2019).

O disco me acertou em cheio. Um soco na cara, que é como dizem. Um bom soco, certeiro, pra ficar esperto. Com direito a clichê e tudo. Escutei-o de cabo a rabo várias vezes, meio que compulsivamente, até decorar as letras de trás pra frente. Puxando farinha pro meu saco, a literatura, reconheço o acontecimento como uma catarse ateniense — o que os gregos bebuns possivelmente sentiam ao assistir às peças que representavam os erros
comportamentais da sociedade à época, mais ou menos como aprender com a cagada do próximo, mas de mentirinha, afinal, eram apenas encenações.

Gustavo fez um álbum inteiro sobre estar vivendo sem cocaína e cachaça, o enfrentamento final e mais difícil: eu sóbrio versus a vida como ela é. A primeira faixa, que se chama “Área 51” e anuncia o “retorno do cretino”, passa uma ideia de autoafirmação. O refrão da música é o recado do Mister Niterói para o mundo: “Vim pesadão, ninguém vai me derrubar!”. Mas ele não esquece que “nada que vale a pena é fácil”. Não se trata de um trabalho sobre as delícias da sobriedade, já que isso potencialmente não existe, ou sobre a superação de
apenas uma fase ruim, já que a adição não se trata disso, mas sim de relatos dolorosamente líricos acerca da batalha interna e eterna de um viciado em recuperação. Se há desejo de melhorar, é preciso encarar o processo: “É sangue, suor e lágrimas ou mais inferno adiante.”

Na “lição sem vinho tinto” que é a segunda faixa, “Carta para Amy” [Winehouse, morta em 2011], Black Alien precisa lembrar que “vencer a mim mesmo é a questão” e que ele ainda é Gustavo, “filho de dona Gizelda e seu Rui”. Essa colocação carrega um peso crucial. É ao se perder de uma espécie de essência interior, em meio às ilusões do business, que o “significado da palavra se dilui” e o entorpecimento, que é uma fuga, apresenta-se ironicamente como solução. Para além das boas sensações que a combinação “uísque, pó, cigarro e mulé” pode oferecer de início, a continuidade do hábito, que se torna adição,
engole tua alma e, de quem você era, resta apenas um esboço, “maltrapilho bem vestido”, “molambo perfumado”, “fluindo no extinto, magro e drogado”. Na sobriedade, ao recuperar certo senso de identidade, Mister Niterói pede: “Sente o som e o peso da pata do pirata sem garrafa de rum”, em um verso muito bem estruturado, com aliterações e em alusão à garrafa do rum Montilla, que traz um pirata no rótulo. Além disso, fica a sugestão de que o peso da lírica não se perdeu com a sobriedade, isto é, não é preciso estar drogado para criar.

Apesar dessa mensagem positiva — e verdadeira, já que estamos mesmo presenciando o peso de um homem sóbrio —, uma sequência de versos nos joga de volta à brutalidade do real: “Tenho não só que lidar com a vida, lido com ela sem pó e sem dó, então. Sozinho eu tô em má companhia, tá ligado? Nem durmo mais tanto. Linha por linha, de café e aguinha, sempre hidratado pro próximo pranto”. Para um “viciado em caos”, como Black se posiciona várias vezes, essa substituição soa dolorosa. Mas ele está ciente, e enfrenta: “Não posso correr de mim mesmo, eu sei”.

Nessa empreitada de ser o agora não há espaço para o que é baseado no passado. Não significa jogar tudo pra baixo do tapete e seguir, até porque isso seria continuar fugindo de si mesmo, mas lembrar que “a mesa ainda está aqui, porém mudei certezas de lugar”. A mesa jamais vai sair dali. É o elefante na sala. É o dinossauro de Augusto Monterroso (“Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”). Esses bichos bizarros jamais vão sair do lugar. Eles estão confortáveis. O que cabe ao dono dessas criaturas indesejadas é uma mudança de perspectiva.

Se o jeito é viver sob a tempestade, resta ir atrás de “mais e melhores jazz”, na esperança de “mais e melhores Gus”, já que “não tem como saber sem ir aonde a gente vai chegar, baby, au revoir, agora eu vou voar”. Nesse voo, com o objetivo de abandonar a Babylon, o Gus quer que se foda e vai até o fim, espadachim, confortável na zona de conflito, cheio de febre e de fibra…

Quanta melancolia nas nove faixas. Um conjunto compacto e preciso. Não foi apenas uma vez que me peguei com os olhos marejados. É como ler Roberto Bolaño. E como ajuda o trabalho do Papatinho, criando arranjos com direito a solos de sax, efeitos delicados e pontuais, sempre levantando a lírica português- inglês do Mister Black. Me lembra o baterista do The Who, Keith Moon (1946- 1978), que energizava a banda inteira e transformava o que era ótimo em inacreditável. Que obra-prima. Faz pensar que realmente tem algo “muito além do pó no prato, fritar no quarto”. Quero acreditar que sim.

É provável que o Soldado Gargalhada tivesse algo a dizer sobre o fato de Eminem e Black Alien terem nascido ambos em 1972. Eu me guardo em silêncio. Não sou Slim Shady, assim como André Sant’Anna não é George Harrison. Não faço ideia do que vai ser disso tudo. Vou atrás de mais e melhores blues, e por enquanto basta, porque nunca mais é tempo demais.

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