Primeiramente, um feliz 2017 a todos. Depois de um intervalo providencial para rearranjar o caos de ideias, o Faixa Título abre o ano dois de trabalhos em parceria com o Tenho Mais Discos Que Amigos!, um ano que se pretende e se promete intenso desde o aguardado fim do caótico antecessor. Vamos em frente.

2016 não deixou nada sobre nada. A impressão geral é a de revoluções e convulsões em absolutamente todas as frentes, como se finalmente acordássemos para a assustadora realidade de que nada mais será como foi um dia. Os reflexos dos acontecimentos do ano passado ainda reverberam com força, e certamente serão causa de novos desdobramentos, talvez ainda mais fortes, neste novo ano. E no centro de tudo isso estão, sem sombra de dúvidas, as transformações provocadas pela constante (r)evolução tecnológica e a influência cada vez maior e mais potente da internet, a maior ferramenta de comunicação em toda a história da humanidade.

Recentemente assisti ao ótimo documentário Lo and Behold: Reveries of the Connected World (Olhe e Admire: Devaneios de um Mundo Conectado, em tradução livre), de Werner Herzog. O filme investiga as origens da internet, a influência dela nas nossas vidas hoje, e os possíveis desdobramentos da nossa relação com a rede nas próximas décadas, séculos e milênios. Tem no Netflix, vale muito a pena ver. E o que o filme ou esse papo de internet tem a ver com música?

Tudo.

Assisti ao filme horas depois de ouvir pela segunda ou terceira vez Reflection, o novo álbum do gênio Brian Eno, que saiu no dia 1º de janeiro. Vigésimo sexto disco solo de Eno, Reflection foi aclamado como uma volta do cara às origens como pai da ambient music, ainda que muito recentemente – em Lux (2012) – o inglês tivesse se dedicado às “paisagens sonoras” que inventou em meados dos anos 70.

Com exceção de um ou outro som esculpido com o detalhismo que a intervenção digital permite, Reflection não soa tão diferente de Discreet Music (1975) ou Ambient 1: Music For Airports (1978). E mesmo soando como o irmão próximo de um disco de quarenta anos atrás, Reflection diz muito mais sobre o futuro da produção musical do que qualquer outro disco lançado em larga escala hoje.

Reflection está disponível em CD, LP, MP3 e streaming, como a maioria dos lançamentos atuais. Desconsiderando as variáveis da qualidade do som, o disco é o mesmo no CD, no Spotify ou em vinil. No entanto, uma versão completamente diferente de Reflection está disponível em um app que Eno desenvolveu para o ecossistema Apple, e que, basicamente, compõe sozinho a partir dos sons criados por Eno para o disco.

Sim, isso mesmo. Eno forneceu os sons e a partir daí o aplicativo arranja e rearranja o álbum, eterna e ininterruptamente. Segundo o compositor, o app de Reflection é como um rio – “é sempre o mesmo rio, mas em mutação constante”.

Para efeito dramático, eu reforço: você ouve música composta por um aplicativo, sem interferência humana. Dois aplicativos de Reflection iniciados ao mesmo tempo irão reproduzir versões diferentes do “disco”, dependendo apenas das variáveis desenhadas por Eno em parceria com o programador Peter Chilvers.

Há de se reconhecer que reproduzir ad infinitum as notas longas e arrastadas de Reflection não é dos desafios mais ousados. Também é verdade que não é a primeira vez que isso acontece; iniciativas assim são cada vez mais comuns em laboratórios ao redor do mundo. Mas é interessante ver esse tipo de iniciativa chegar, pouco a pouco, ao grande mercado.

São pequenas invenções como essas, pequenas inversões de conceitos, que anos à frente podem resultar em transformações em larga escala. Em 2016, vimos Kanye West atualizar, diversas vezes, a versão de The Life of Pablo disponível nas plataformas digitais, e assim subverter o conceito de um álbum como algo fixo. O disco que você compra hoje pode não ser o mesmo amanhã, como já ocorre com videogames, sujeitos a constantes atualizações.

Em um futuro mais próximo que imaginamos, a inteligência artificial poderá ser responsável por safras inteiras de novos discos, livros ou filmes, da mesma forma que a tecnologia tomou o lugar da produção humana na execução de tarefas simples, em indústrias e até em serviços de entrega.

É verdade que vai demorar para que a inteligência artificial seja capaz de reproduzir a sensibilidade da criação humana. Não veremos um aplicativo ganhar um Oscar tão cedo, e a ideia de que um software possa ser anunciado como headliner de um grande festival parece, no mínimo… patética. Mas em um mundo cada vez mais absorto por assistentes virtuais integrados ao nosso cotidiano, quem disse que softwares não serão capazes de compor jingles publicitários, repetir as fórmulas de sucesso pop, ou criar canções exclusivas para os usuários de streaming a partir de análises profundas sobre o gosto musical de cada um, uma evolução insana das playlists automáticas que já recebemos semanalmente?

Bem-vindos a 2017.

O app Reflection está disponível apenas para iOS e Apple TV na App Store, por (salgados) 40 dólares.

 

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