What if Kanye made a song about Kanye
Called “I Miss The Old Kanye,” man that would be so Kanye
That’s all it was Kanye, we still love Kanye
And I love you like Kanye loves Kanye

– Kanye West em “I Love Kanye”, faixa 9 de The Life of Pablo.

Em O Processo, uma das obras mais adoradas de Franz Kafka, o procurador Josef K. é detido, mas não sabe o porquê. Entre capachos, burocratas e acusadores, K. se afunda na densidade do processo sem cabeça ao mergulhar em profundas reflexões internas, sempre afim de entender o motivo pelo qual é acusado.

Kanye West não é Kafka, longe disso. Mas ao atrair as atenções do globo com um marketing calculadamente orgânico para o divulgar o sexto álbum solo, The Life of Pablo, Kanye conseguiu atrair os espectadores da cultura pop a um imbróglio similar, onde todos nós acabamos como avatares de Josef K, desesperados por um trabalho desconhecido. Em algum lugar entre um inquestionável talento musical e uma persona pública misógina, evasiva e fútil, West tornou-se ícone de louvor e repúdio, um simbionte ambulante do melhor e o pior do pop – e objeto de destaque mesmo quando não havia motivo para tal. Afinal, por que é tão difícil ignorar Kanye West?

De forma simples, o caminho traçado até o nascimento de The Life of Pablo explica, em partes, nossa obsessão pelo rapper. Lançado oficialmente no domingo (14) via TidalThe Life of Pablo é um disco disperso, apesar de reunir alguns dos momentos mais inspirados da carreira de Kanye. Não é, de forma alguma, o melhor trabalho dele. E daí? Propositalmente, Kanye subverteu a lógica à qual estamos acostumados na indústria fonográfica, o ciclo produção do álbum + lançamento do álbum + entrevistas de divulgação do álbum + turnês para promover o álbum. O álbum, neste caso, não é e nunca foi o centro das atenções. Todo o hype, a expectativa, as incontáveis mudanças de nome, as tracklists frequentemente mutantes, nada disso pavimentou o caminho para o lançamento do disco: na cabeça de Kanye, o processo, sim, é uma declaração artística.

Criado em Chicago, West ganhou destaque inicialmente como produtor, especialmente pelo trabalho impecável em The Blueprint (2001), de Jay-Z. Com um tato especial para o retalho e a costura de samples, ele fundiu o mainstream e o underground ao casar a acessibilidade de um com a ousadia experimental do outro. Em The College Dropout (2004), estreou como rapper, não antes de sobreviver a um brutal acidente de carro que destroçou sua mandíbula e por pouco não decretou um fim precoce à carreira frente aos microfones.

Livre em voo solo, Kanye teve espaço para explorar limites desconhecidos por ele até então. Em Late Registration (2005) ele tomou para si o trono do hip-hop americano; em Graduation (2007), incorporou a inovação da eletrônica ao imediatismo do pop, um contraste quase total à melancolia intimista de 808s & Heartbreaks (2008). Com o ego alimentado pelo sucesso de todas as empreitadas até então, e a boa repercussão dos desvios emocionais de 808s…, Kanye estava pronto para inaugurar um novo capítulo na carreira.

Toda mudança de paradigmas exige um marco, um símbolo, e o dele foi a invasão de palco no VMA 2009. De forma inesperada, em um ato tolo e espontâneo, o rapper passou a explorar uma nova faceta, de forma alguma restrita aos limites do universo musical. Kanye entendeu que, no universo pop, atenção – para o bem ou para o mal – é poder, e Kanye queria mais, precisava de mais. Em My Dark Twisted Fantasy (2010) West criou uma das obras-primas do hip-hop justamente ao quebrar boa parte das regras da cultura hip-hop, e enquanto ganhava credibilidade artística, casou-se com Kim Kardashian, famosa estrela de reality shows. Até que em Yeezus (2013), se proclamou Deus em um álbum lançado sem capa ou encarte.

Yeezus provou que Kanye entendeu como poucos artistas da geração dele a arte de se comunicar em grande escala no século XXI. Numa lógica esquizofrênica de insistentemente dar às pessoas algo sobre o qual discorrer, opinar, vociferar, seja uma mediana coleção de roupas ou um álbum misterioso, ele transformou-se enfim, naquilo que almejava ser desde o início simplório na periferia de Chicago. Parcerias com Paul McCartney, promessa de candidatura à presidência dos EUA em 2020, apoio ao ator Bill Cosby (recentemente acusado de abusar sexualmente de diversas mulheres ao longo da carreira), a infindável e teatral rixa com Taylor Swift… Tudo parte de um plano mal alambreado e exaustivo de atração dos holofotes para si.

The Life of Pablo

Kanye não se contenta em ser um dos maiores produtores e rappers de todos os tempos, ele quer e acredita ser o maior artista de todos os tempos. Bem, talvez nem ele mesmo acredite, mas tem certeza que afirmações como essa tornaram-se o motor da dinâmica entre ele e o público que o persegue, seja para pegar carona num ego inflado ou se regozijar em críticas ao comportamento volátil do músico.

Na semana que antecedeu o lançamento de The Life of Pablo, Kanye West foi pauta de veículos especializados em música, moda, tecnologia, comportamento ou celebridades, foi foco de discussões no Facebook, no Twitter, no Instagram e no Snapchat, virou alvo de piadas e de memes, e revelou-se inseguro como todos ao alterar pelo menos quatro vezes (publicamente) o repertório do álbum. Quando o disco enfim saiu, na manhã de domingo, só os mais dedicados importaram-se com a música, a essa altura distante do centro das atenções.

Cheio de vinhetas, esquetes e ideias abreviadas, The Life of Pablo soa mais como uma mixtape do que como um novo degrau na carreira de West, e ele provavelmente sabe disso. Afinal de contas, ele está muito mais interessado em se tornar onipresente do que em se reafirmar como o músico fora de série que é. Faixas como “Ultra Light Beam”, “Real Friends”, “FML” e “Fade” estão entre as melhores do catálogo do rapper, mas não são o bastante para ofuscar a celebridade, a pessoa pública, a força imagética, a presença ininterrupta de West na mídia.

Obsessivamente, comparamos nossos valores e atitudes aos dos formadores de opinião, mesmo para nos sentirmos superiores ao recusar o outro – falamos bem ou mal, mas falamos – e ao se colocar nessa posição, Kanye virou o Moisés do pop. A música? É boa, mas ficou em segundo plano. O que nos interessa, magneticamente, é o irresistível amor de Kanye West por ele mesmo.

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