Gonzaguinha
Foto: Geraldo Guimarães

Quando se pensa na obra do exímio cantor e compositor Gonzaguinha, logo se pensa na felicidade que transborda no clássico “O Que É, O Que É?“. Filho não-natural do eterno Luiz Gonzaga e nascido em terras cariocas, ele fez parte importante da cena da MPB dos anos 70. No entanto, não apenas flores e canções sem pretensão social constavam em seu repertório.

No início de sua carreira, Gonzaguinha, que em 2020 completaria 75 anos, era visado pelo DOPS por ter uma postura crítica ao regime militar. Isso levou muitas de suas músicas a serem censuradas e motivou o apelido de “cantor rancor”. Dentre as ásperas composições, estão “Piada Infeliz“, “Erva” e “Pois É Seu Zé“.

No entanto, a mais evidente canção dessa fase inicial foi “Comportamento Geral“. A faixa apresenta uma temática muito mais obscura e séria se comparada à discussão sobre o sentido da vida proposta em seu maior hit. A canção, originalmente lançada em 1972, se tornou uma das mais emblemáticas de Gonzaguinha. Isso porque a letra é atemporal, revelando lacunas sociais que beneficiam uns em detrimento de outros. Recheada de ironia, os incisivos versos denotam um processo de submissão que até hoje parece não ter sido solucionado.

 

“Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: ‘tudo tem melhorado’”

Se vivemos em uma sociedade guiada por padrões, é de se esperar que eles sejam a base para o convívio econômico, político e cultural. O problema, no entanto, está na concepção disso tudo. Quem estipulou os padrões e quem eles contemplam? Onde o “bom comportamento” foi decretado? A quem as regras servem?

Ao que a letra indica, o eu-lírico se comunica diretamente às classes mais populares do Brasil. Essas classes são basicamente aconselhadas a esquecer os problemas e enxergar o “lado bom” das coisas. “Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado,” diz uma das estrofes.

O emblemático refrão é marcado pela repetição da expressão “Você merece”. A ideia é passar uma imagem de conformidade, apesar dos vários problemas. Vale destacar também o uso das palavras “cerveja” e “samba” como uma clara associação à política do pão e circo, que oferece distrações para as camadas mais populares com o objetivo de evitar revoltas.

O contexto de lançamento da música diz respeito aos “Anos de Chumbo” da Ditadura, que se estenderam de 1968 até 1974. Foi um período de desenvolvimento econômico exploratório e concentrador de renda, voltado unicamente aos interesses das classes dominantes. E o mais incômodo nisso tudo é que, mesmo passados tantos anos, a canção ainda reflete muito sobre a situação social no Brasil!

 

“Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado”

“Comportamento Geral” envelheceu no ideário musical brasileiro como um hino de crítica e resistência. Aliás, ao contrário do que a letra diz, a intenção de Gonzaguinha é justamente nos voltar contra a injusta distribuição social no país.

Ao longo dos últimos anos, várias notórias releituras da canção foram lançadas em discos dos mais diversos artistas. Começamos com São Yantó, que apresentou a faixa para uma nova geração quando, em 2012, a incluiu no seu disco Ele. Mantendo a essência do samba (com o apoio da delicada presença do som da cuíca), a cover foi muito fiel à versão original.

Direto como sempre, Criolo (que nunca negou influência em bons sambas) prestou homenagem a Gonzaguinha com esta canção. Aconteceu no 27º Prêmio da Música Brasileira, em 2016, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

No palco, além de cantar os versos originais, o cantor se permitiu intervir com alguns versos próprios para complementar a narrativa. “Quanto mais perto do holofote o homem quer chegar, parece que maior é essa sombra do mal em que tudo de ruim parece aumentar,” diz. Destacando como ótima a ironia usada pelo autor, Criolo muda os versos para deixar o recado ainda mais claro. Nisso, ele cita elementos sociais destrutivos, como machismo, racismo e homofobia.

Ninguém merece, porque não tá bem. Porque não tá legal. Cerveja, samba e amanhã, Seu Zé, no Brasil, racismo matando geral.

 

Atualidade da letra e o “cidadão de bem”

Curiosamente, desde a eleição de Jair Bolsonaro como Presidente da República, mais covers de altíssima qualidade apareceram. Ney Matogrosso, outro relevante nome da MPB dos anos 70, homenageou Gonzaguinha com essa faixa em seu mais recente disco Bloco Na Rua. Incrementando a já bem construída harmonia que acompanha os versos, a versão de Ney contemplou a adição de riffs de guitarra, tal como a versão do grupo Balla e os Cristais.

O superprojeto Acorda Amor, que traz Letrux, Luedji Luna, Xênia França, Maria Gadú e Liniker nos vocais, lançou um disco de releituras no início deste ano. Pautado como um álbum de resistência, a cover desse hit de Gonzaguinha, na voz de Xênia, complementa a narrativa em meio a versões de músicas de Belchior, Francisco, el Hombre e mais.

De todas, a versão gravada por Elza Soares para o disco Planeta Fome (2019) é a que mais se distancia da original em termos estéticos. Isso porque a releitura traz referências do reggae, do ska e do samba-rock. Até clipe a cover ganhou, gravado em uma espécie de terreno baldio.

Essas cada vez mais constantes homenagens não são à toa. Bolsonaro criou e fomenta um novo arquétipo na sociedade brasileira: a figura do “cidadão de bem”. As descrições batem bem com o eu-lírico de “Comportamento Geral”, que não enxerga (ou ignora) o perigo das desvantagens sociais. Se não da elite, o cidadão, para ser elevado a este nem tão acessível patamar, deve se sujeitar às mais horrendas disparidades.

Nesta visão, que em muito condiz com a realidade social do mundo, um determinado tipo de padrão. É preciso estar conformado com o que acontece, sem pensamento crítico e sob pena de marginalização. Enquanto isso, para os desprivilegiados, resta cerveja, samba e a possibilidade de conquistar um “diploma de Bem Comportado”. Qualquer semelhança com a poesia do “cantor rancor” não é mera coincidência!

Por sinal: viva Gonzaguinha e sua visionária contribuição à música brasileira!

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