Arnaldo Antunes
Foto por Marcia Xavier

Por Nathália Pandeló Corrêa

Arnaldo Antunes construiu seu novo disco, O Real Resiste, lançado na última sexta (07), a partir de dois retiros: a visita a uma aldeia indígena no Acre serviu de inspiração para duas faixas, enquanto o retorno ao sítio-estúdio Canto da Coruja, no interior de São Paulo, fez surgir duas composições por dia, em um processo de imersão total. Acompanhado de uma banda coesa (Cézar Mendes no violão de nylon; Daniel Jobim no piano; Dadi na guitarra, baixo e ukulele; Chico Salem na guitarra e violões de aço e nylon) e dispensando baterias e percussões, o cantor, compositor, poeta e artista visual se voltou para o formato canção.

Esse minimalismo vem após RSTUVXZ (2018), um álbum onde Arnaldo se debruçou sobre dois gêneros ao mesmo tempo antagônicos e complementares: o rock e o samba. A alternância de ritmos pedia banda completa nos shows, que logo em seguida deram lugar à lucrativa turnê dos Tribalistas. Os teatros se transformaram em estádios, festivais.

Era hora de voltar às origens. A reclusão se limitou ao processo de gravação. Em suas letras, O Real Resiste entrega uma conexão inevitável com a realidade para muito além das cercas. A questão indígena divide espaço com a faixa-título, onde Antunes renega o retrocesso disfarçado de conservadorismo que ganha forças no mundo. Tudo isso é permeado por questões pessoais profundas – temas como despedidas (“Termo Morte”) e paternidade (“Na Barriga do Vento”, composta com Carlinhos Brown, Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa) surgem sem pretensão, de forma quase lúdica.

Essa não é uma encarnação nova para um artista que tem em O Real Resiste seu 18º disco solo – sem citar os anos dedicados aos Titãs e todos os demais projetos de arte e literatura. Prestes a completar 60 anos, Arnaldo se move como nos palcos: inquieto, incapaz de se render à mera repetição. Esse é o mote para a turnê que iniciará em abril, onde dividirá o palco apenas com o renomado pianista Vitor Araujo, em formato intimista e inédito em sua carreira.

Esses e outros tópicos surgiram na conversa que tivemos com Arnaldo Antunes por telefone no dia do lançamento de O Real Resiste. Confira a entrevista abaixo:

TMDQA!: Oi Arnaldo, parabéns pelo novo disco. Você gravou O Real Resiste em um sítio. Essa distância do mundo aqui fora vem da intenção de criar um mundo próprio no estúdio, de se despir de tudo que fica lá fora?

Arnaldo Antunes: Essa coisa de gravar no sítio é que tem uma situação muito inspiradora pra músicas e propicia uma imersão no processo de gravação. A gente consegue se distanciar do dia a dia, do telefone que toca e do nada chega alguém em casa… Nós passamos alguns dias papeando em meio à natureza, mergulhando no lago, vendo bicho, e claro, tocando e gravando. É um mergulho tão intenso que a gente gravou duas músicas por dia, rendeu muito. No fim, já tínhamos 10 músicas gravadas em uma semana. Agora eu quero voltar, só quero gravar no sítio (risos). Mas esse disco é muito ligado às coisas primárias que devem ser ressignificadas. “Real” tem a ver com estado contemplativo, veloz, no ritmo da metrópole, dos meios digitais, que chegam a ser algo opressor. E oferecer a contemplação da paisagem, na leitura de um livro, na convivência com as pessoas reais. E é também um contraponto a essa situação situação hostil da nossa política, de valorizar coisas ameaçadas, a cultura. A música que abre o disco [“João”] fala sobre como se inaugura uma nação, que não é com monumentos ou balas de canhão, mas com cultura, com educação, voltando olhar para os indígenas, que têm a sua realidade rica culturalmente e talvez seja a mais ameaçada atualmente. Hoje mesmo teve uma proposta de liberar agricultura e pecuária em terras indígenas, que é algo proibido pela constituição… Enfim, vem da vontade de fazer um contraponto a isso.

TMDQA!: A música “O Real Resiste” é uma letra cheia de palavras pesadas, mas ela traz um otimismo explícito, até no título. Você se descreveria como um otimista nesses tempos?

Arnaldo: Eu acho que tem uma esperança qualquer, que nos redima, que é o que eu acredito que seja real. Estou desde muito jovem prezando pela liberdade de expressão, direitos civis, convivência com diversidade étnica, racial, com minorias. São coisas que hoje em dia estão ameaçadas. Passou uma inversão. Parece um pesadelo, que nada disso que é o real pra mim e isso está no título da canção e do próprio disco. Mas isso também leva a outros temas, como amor de pai e filho, amor entre amantes, a questão da natureza, dos índios, da cultura. A música tem isso de expressar um desejo quase – atualmente parece até utópico – que o real resista. Que ali é onde a gente realiza, o espaço artístico é de manutenção de uma potência individual diante do mundo. Mesmo que a polícia aja inadequadamente diante das situações, ali na música isso cria uma verdade do que a gente quer. Daí que vem um certo espírito otimista, que não é possível que as pessoas estejam defendendo coisas como ditadura, tratando adversários políticos como inimigos mortais… Então essa visão otimista vem de não acreditar que isso é real.

TMDQA!: E que vai passar, como fala na música. Como sempre passa.

Arnaldo: Exatamente.

 

TMDQA!: Agora, aproveitando que você trouxe esse aspecto político: um olhar mais superficial sobre essa música e até outras, como Língua Índia ou Dia de Oca, identifica uma conexão com os temas atuais, mas a sua música sempre foi conectada com seu tempo, desde os Titãs, mesmo que não fosse explicitamente política. Voltar a tocar em assuntos assim entre músicas tão lúdicas e humanas, foi uma reflexão necessária sobre esse Brasil de 2019, 2020?

Arnaldo: Não se vence a cultura do ódio sem cultivar coisas positivas, o amor, os afetos. Isso acaba sendo tão essencial quanto a combatividade. A gente acredita que o amor vai vencer, esse lado otimista vem de ter uma necessidade cada vez maior de valorizar as coisas positivas e as coisas reais, as pessoas reais – e não as vestidas de preconceitos e intolerâncias. Eu fiz essas duas músicas sobre os indígenas que vieram de uma imersão na aldeia Yawanawás [no Acre]. E é uma lição na forma como eles vivem, de cultivar o amor e a convivência com a natureza. O cacique Bira, dessa aldeia, vivia isso. Por mais ameaçados que eles estejam desde a descoberta do Brasil, eles sempre acreditam que a coisa amorosa é que sai vitoriosa. E a comunidade, o cultivo da cultura deles, acaba sendo uma forma de resistência muito eficaz. É um modo de preservação da vivência deles.

TMDQA!: Os arranjos dos seus últimos discos têm sido bem ricos e bem pop, até. Nesse, você se voltou pro formato canção, minimalista na maior parte do tempo. Menos é mais, nesse caso?

Arnaldo: Isso tem a ver com o momento que estava vivendo, com as coisas que eu vinha compondo, com o desejo depois de um disco como RSTUVXZ, que era muito rítmico entre rock e samba. E estava em turnê com banda e logo em seguida com os Tribalistas, que era algo muito grande. Deu vontade de ir para o mínimo, para a serenidade. E também me remete ao disco Qualquer, que era sem bateria e percussão, e o clima do Ao Vivo no Estúdio também. Eu não diria que nada é desnecessário, mas que agora eu prezo pelo pouco, pela mansidão.

TMDQA!: Agora, essa coisa da canção faz uma ponte com o seu trabalho literário, poético, ao qual você volta sempre mas que costuma ficar num outro campo da sua obra. Nos shows desse disco, você pretende declamar alguns poemas entre as músicas. Como é fazer essa conexão mais direta e intencional entre essas facetas do seu trabalho?

Arnaldo: Em algumas ocasiões, essas coisas já se misturaram, por exemplo, no Nome, que tem a coisa da poesia virtual, da animação, com a trilha do vídeo, que saiu em VHS, LP, livro. Tem alguns projetos em que essas coisas se encontram, mas em geral a poesia e a música são separadas. Os shows e a poesia ficam separados, ou vão para outros suportes, eu sempre desenvolvi essas atividades com certa separação. Eu faço eventualmente uma performance de poesia, sozinho no palco com alguns efeitos explorando alguns recursos rítmicos e de voz – mais sussurrado, mais gritado, mais falado. Eu sempre fiz essas performances de poesia em feiras de literatura, com projeções da Marcia Xavier, que é minha mulher. Mas a performance de poesia sempre foi separada do show de música mesmo. Nesse novo show, aproveitando uma situação inédita, me juntei ao [pianista pernambucano] Vitor Araújo. Por essa circunstância, eu tive o desejo de trazer a coisa da poesia e alternar, dizer alguns poemas entre as músicas. Os ensaios é que vão mostrar como será essa dinâmica, vamos começar em breve. Veremos como será (risos).

TMDQA!: Aproveitando que você trouxe esse tópico sobre o formato de show, que vai ser uma experiência nova e tudo mais… Das experiências que já tive te vendo ao vivo, nenhuma foi igual – seja no Iê Iê Iê, no acústico, no Dois Violões… ou na exposição Palavra em Movimento, no lançamento de um livro como como “Agora aqui ninguém precisa de si” – todos parecem facetas completamente diferentes de um mesmo artista. Depois de 18 discos, repaginar os formatos de como você se apresenta e como cria é uma forma de trocar de pele, de se renovar pra ganhar novo fôlego? Afinal, já é uma vida fazendo isso!

Arnaldo: (risos) Sim! Eu acho que eu tenho uma inquietação que estou sempre tentando me renovar. Não gosto de repetir coisas que já fiz. Tem uma inquietação de estar sempre me aventurando de uma outra maneira, de buscar um instrumental novo, um suporte diferente. Isso é da natureza da arte, acho que todo artista tem que ter essa inquietação, de sair de um padrão que todo mundo já tem. É a função do artista estar alterando a consciência das pessoas, inseri-la em algum grau de estranhamento do seu trabalho. Faz parte da natureza da arte. E eu também nunca me senti muito especializado em algo específico, sempre fui de transitar entre gêneros e linguagens. Tem a ver com a época que a gente vive, também. Sou de uma geração pós-tropicalista, tem muita mistura. Me formei numa época em que a música brasileira tem uma ligação com o poema, do movimento tropicalista com a poesia concreta, Vinicius com a bossa, e poetas como Torquato Neto, Waly Salomão que compuseram letras… Então tem muito disso também.

TMDQA!: Mas, indo num caminho oposto, você convidou colaboradores já de casa, literalmente – sua esposa e filha aparecem de algumas formas no disco. Trazer essa familiaridade foi importante pra manter esse clima intimista?

Arnaldo: Eu acho que é um pouco inevitável, na verdade. Acabo misturando afetos com a coisa profissional. Há músicos que viram amigos, parceiros; e amigos que viram relações profissionais. A mesma coisa com a família, minha mulher, meus filhos. Essas relações se misturam de um jeito não intencional, são coincidências. Por exemplo, eu chamei a Celeste [filha] porque ela estuda música, ela tem desejo de fazer algo próprio, um disco seu. Então pensei nesse convite. Já a Márcia tem outras parcerias de outros discos, trabalhando e cantando comigo. Tem o clipe novo [De Outra Galáxia], que a Marcinha participou da direção [com Pedro Ceballos].

TMDQA!: A gente está entre décadas e você também, que vai ter um aniversário daqueles grandes esse ano. Mais de 10 anos atrás, você cantava que envelhecer é a coisa mais moderna que existe, com um olhar até doce pros cabelos que caem. Você ainda vê dessa forma? Aprendeu algo novo sobre envelhecer nesse meio tempo?

Arnaldo: Eu continuo acreditando. Eu estava prestes a fazer 50 anos quando fiz essa música, e agora estou prestes a fazer 60. Quero poder envelhecer mantendo uma inquietude que me faça levantar do sofá. As pessoas associam muito velhice com acomodamento. E essa música é o oposto, fala de querer inquietude. Tem a passagem da idade também, a gente vai chegando mais perto da morte. A gente tem uma vida boa, quer ter uma morte boa também (risos). Acabei trazendo essa temática para o disco.

TMDQA!: Acho que ninguém consegue te imaginar parado, Arnaldo.

Arnaldo: (risos) Que bom!

TMDQA!: Agora, só pra encerrar: você tá com uma nova distribuidora para a Rosa Celeste [editora de Arnaldo, que agora tem casa na Altafonte]. E você teve a experiência de passar por muitas mudanças na indústria, por gravadoras, até chegar nessa auto gestão da sua carreira na forma de artista independente mesmo. Queria saber como você vê esse cenário, como lida com essas mudanças e o que vê acontecendo daqui pra frente.

Arnaldo: Essa coisa de ser independente eu já sou há vários álbuns. Os primeiros 4, 5 discos foram pela BMG, depois do Quase eu já segui como independente mesmo. Essa realidade vem acompanhando a crise das multinacionais, das grandes gravadoras, todo mundo foi se adaptando. O streaming muda radicalmente o modo de escutar, de divulgar música e dos artistas mostrarem seu trabalho. Antigamente as pessoas tinham a coleção de discos como algo precioso. Hoje elas levam no bolso a loja de discos inteira, mais do que poderiam conceber escutar. É meio maluco, as pessoas ouvem no shuffle, as playlists… Eu fico um pouco perdido, porque como ouvinte sempre gostei muito mais de discos originais do que coletâneas. Quando eu fiz o Disco – que não à toa tinha esse título -, ele foi lançado da forma digital, um single por mês até chegar o álbum cheio. Mas tem essa facilidade, de não ter a necessidade de músicas que justifiquem lançar um álbum inteiro, poder lançar um single, um EP. Eu ainda cultivo um gosto pelo disco, pelo que representa, pelo conceito sonoro que tem ali, pelas intenções do artista.

TMDQA!: E isso é algo que nunca vai sair de moda.

Arnaldo: Exatamente.

TMDQA!: Tá certo, Arnaldo. Obrigada pelo seu tempo, sucesso com o novo trabalho!

Arnaldo: Obrigado!

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