Marcelo Jeneci
Foto: Marina Benzaquem

A vida é uma trajetória constante. A cada dia aprendemos mais, conquistamos mais e vamos mais longe. Mas para a aprendizagem ser efetiva é preciso absorver tudo, da infância até os dias atuais. A sua origem, o lugar onde nasceu e a cultura de onde se viveu também são de suma importância para a construção de uma pessoa.

Tomemos como exemplo a trajetória do cantor e compositor Marcelo Jeneci. Foi na cidade de Guaianazes, no interior de São Paulo, que ele nasceu. Foi de lá que teve o primeiro contato com o mundo, através de afeto, cultura e resistência. Ele também traz consigo um pouco do agreste de Pernambuco e da grande metrópole paulista. Todas essas vivências e culturas fizeram de Jeneci um ser único.

Em seu novo disco, o cantor remete à toda a sua vivência, desde a rua em que nasceu até o que aprendeu enquanto músico consagrado. Produzido por Lux Ferreira e Pedro Bernardes, Guaia mostra a vida de Jeneci através de uma mistura de elementos líricos e estéticos. Neste novo território sônico, são misturados os sons de beat-box, sanfona, orgão, mellotron e muito mais. Tem até canto indígena está no álbum!

 

“O disco é uma percepção de quem eu sou”

Tivemos a oportunidade de conversar com Jeneci sobre o novo disco, sobre seu amadurecimento enquanto artista, sobre se reconectar com as raízes e sobre o Brasil de 2019.

Confira abaixo:

Capa de "Guaia" (Marcelo Jeneci)
Foto: Divulgação

TMDQA!: Olá! Tudo bom?

Marcelo Jeneci: Tenho Mais Discos Que Amigos! Que frase ótima! Os amigos de verdade são poucos. Você conta nos dedos!

TMDQA!: É o seu primeiro álbum em seis anos. Desde então muita coisa aconteceu. O que mudou em você, por exemplo, como pessoa e como artista para a construção de Guaia?

Jeneci: É um disco que revela uma transformação sônica de alguém que está em movimento. A minha busca nesse disco é atualizar e trazer a narrativa da história da minha vida. Pela primeira vez estou contando de onde eu venho. Eu estudei a vida inteira em escola pública. Vim da periferia de São Paulo. Fui buscar esse som que me ajudou muito a trazer essa questão da rua, para poder tocar com meus amigos das antigas. É uma atualização do que eu sou. Neste tempo entre um álbum e outro, a maior parte desse tempo foi regida por uma transformação interna, em que eu pude mais fazer mais contato com a minha própria natureza. O disco é uma percepção de quem eu sou, de quem nós somos e do que temos a dizer para o mundo, com uma contemporaneidade que é importante no Brasil.

TMDQA!: Guaia mistura a sua origem paulista com referências da música nordestina. Tem baião, tem frevo, mas também tem beats modernos, dignos da cena de São Paulo. Como foi conciliar isso até chegar a um resultado satisfatório?

Jeneci: Isso tem a ver com o processo do disco. Foi um ganho que o Pedro Bernardes também me trouxe. Ele falou para não nos colocarmos “à frente” da coisa. Vamos deixá-las fluir. Eu jamais chegaria a uma adequação de bateria de frevo com canto gregoriano e guitarra “bang-bang”. Essa busca por levar às últimas consequências os elementos sonoros para potencializar a força da canção… Não tem nenhum instrumento que não tenha sido colocado para ilustrar ou para amplificar algum sentido. Esse resultado vem de uma máxima entrega nesta direção, que tem mais a ver com a nossa qualidade de presença, como crianças brincando com brinquedos.

A própria música dizia quando ela estava finalizada. Eu pensei que fôssemos fazer 12 faixas, mas quando cheguei na décima senti que ele estava completo. A convicção de ter feito isso é muito mais importante do que a necessidade de entender como aquilo seria absorvido. Esse é o meu disco mais colorido. Eu aprendi a cozinhar desde que eu comecei a morar com a Mana Bernardes. Cozinhar com certeza me trouxe uma nova percepção para esses elementos que estão mesclados, como você disse. É uma música que tem coentro, salsinha, cebolinha, alga, frutas suculentas… É um Brasil que a gente sabe que existe!

 

“A música já tem palavra por dentro da melodia”

TMDQA!: É o seu álbum de estúdio mais curto, com 10 músicas. Como foi o processo de maturação do disco? O que teve que ser cortado e mantido para manter a narrativa preterida?

Jeneci: Desta vez, eu tive mais clareza sobre o que é construir um álbum. Eu tive mais tranquilidade pois agora sei o artista que sou, então eu pude desenhar um álbum que falasse por si mesmo. Não é um catálogo de canções, sabe? Chegou um momento em que o próprio disco disse para mim “Chega”. Se continuasse, correria o risco de ficar “sobrando”.

TMDQA!: Como se deu o seu contato com o Pedro Bernardes e com Lux Ferreira, que te ajudaram a dar forma ao disco? Na sua visão, em que aspectos eles mais agregaram ao trabalho?

Jeneci: O “punk” do disco veio do Pedro. Ele é essa pessoa forte e criativa que habita no campo da excelência. O Lux apareceu no meio do caminho. É um artista com um trabalho lindo. Foi como se o Pedro regesse enquanto o Lux gravava e recortava para ficar melhor.

TMDQA!: O que te inspirou na composição das letras do disco? Vemos nele temas como amor, transformação, conexão, saudade e até religiosidade… Como foi pensada a narrativa dele nesse contexto?

Jeneci: Isso é pouco pensado. É mais intuitivo. A última música, por exemplo, não tem letra, mas é um recado que estou dando enquanto compositor de letra. A música, mesmo sem o recorte da palavra, é capaz de gerar emoções diferentes em pessoas. Essa afirmação de que a música já tem palavra por dentro da melodia é importantíssima no repertório todo. Eu só fui perceber isso aos poucos. Temos músicas sobre vários temas no disco, desde conflito amoroso até conexão com o mundo. Durante as composições, no entanto, eu pensava mais nas composições do que nos assuntos. Eu não consigo escolher um assunto para compor. A coisa vai vindo e eu vou entendendo o que ela está dizendo. Eu ainda não tenho a habilidade de fazer o contrário.

TMDQA!: A faixa de abertura conta com a cantora Ikashawhu, e enfatiza que precisamos nos conectar com a terra. A faixa foi gravada com uma frequência diferente do padrão. De onde surgiu essa ideia? Qual a função dessa música ao abrir o disco?

Jeneci: Primeiramente pensei que, se tivesse que escolher uma música para ser escutada pelas pessoas, por ser a primeira do disco, que fosse essa. É um recado urgente. A segunda coisa é que, de fato, eu fui atrás dessa bruxaria que está contida nessa música. É uma afinação que não se pratica mais e que dialoga melhor com a onda ressonântica do planeta. Essa frase “A emergência é a gente se reconectar com a terra” eu vi a Mana dizer para as amigas dela. A gente precisa se conectar com a terra. É uma frase baseada em um projeto dela chamado “Mulher Raiz”. Aquilo me despertou a inspiração para compor a música. Percebi, durante a produção da faixa, que ela deveria conter um canto indígena. Afinal de contas, a voz da terra também é a voz do mundo. As primeiras estrofes tratam do Planeta Terra em primeira pessoa.

Meu sopro é teu e pode estar chegando ao fim
Eu sofro se você não vier cuidar de mim
Ouve a minha dor
Quero teu amor de volta
O velho chão implora ao céu azul revolta
Da luz mortal que acende em cada um
Homem, bicho, flor
É emergencial
É emergencial a gente se conectar com a terra

É mais uma música em que eu compus o refrão e entreguei para algum parceiro fazer a história dela. Eu percebi também que o canto indígena deveria ser de uma mulher e não de um homem. Sobretudo, deveria ser também de uma tribo com um canto mais hipnótico, menos agressivo. Tenho vários amigos que pertencem a tribos, especialmente em Pernambuco, mas o canto delas é muito baseado na força. A Yawanawa tem esse lugar mais sinuoso. As coisas foram dando certo, certo? Acho que quando nos conectamos com um recado que é uma necessidade, as coisas dão certo. É um começo, meio e fim. Pela primeira vez, consegui lapidar isso com a consciência de criar um conteúdo esférico.

 

“Holofotes em pessoas bestiais tomando o poder”

TMDQA!: De 2013 para cá, vimos também muita coisa acontecer na nossa música. Algum movimento específico te ajudou a seguir um novo rumo musical ou poético no novo disco?

Jeneci: Eu assisti de longe a transformação da indústria fonográfica para a internet. No meu último lançamento, ainda existia o foco em CDs. Desta vez, fiz já na era do streaming e dos singles. É a fertilidade da música brasileira. Enquanto a gente vive este plano sinistro em que temos um preso político sem considerar o que é justo e o que é injusto. Esse golpe sinistro que vem desde a derrubada da Dilma. Esses holofotes em pessoas bestiais tomando o poder. A vida explodindo em dor e, ao mesmo tempo, arrancando de nós a explosão em cor.

Tenho visto muito da força africana na produção musical brasileira. Se olharmos de fora, a música brasileira, mesmo por uma opressão do país, deu uma pipocada, bem semelhante ao que aconteceu nos anos 60. Seguimos a vida dando dois passos para frente e um para trás. A minha resposta a isso é sugerir que haja mais criatividade e menos reatividade. Meu disco é um pouco isso. Não é nada panfletário.

TMDQA!: Alguma contribuição final?

Jeneci: Uma busca em uma contemporaneidade para falarmos da nossa cor, da nossa cultura, da nossa dor… A música é um ponto de encontro imaterial. E a minha intenção era justamente essa com o disco.

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