Livia Nery
Foto por Caroline Bittencourt

Do Norte ao Sul, a música brasileira tem nos presenteado com artistas e discos incríveis, que nos ajudam a ter noção da dimensão cultural do nosso país. O mundo mais aproximado proporcionado pela internet tem contribuído positivamente para isso, fornecendo ferramentas para que consigamos acessar com mais facilidade o que está sendo produzido em outros lugares.

Mas um estado brasileiro tem chamado mais atenção nos últimos anos: a Bahia. Um notório berço frutífero para a música brasileira como um todo (desde os artistas da Tropicália até o desenvolvimento do axé como o gênero do Carnaval), o estado tem nos revelado novas experimentações sonoras que chamaram atenção do público e da crítica. Artistas como BaianaSystem, ÀTTOOXXÁ, Baco Exu do Blues e Xênia França se tornaram figuras importantes no processo de reconfiguração dos nossos limites musicais.

A esse novo momento baiano, podemos adicionar também a cantora Livia Nery. Nascida em Salvador, Livia lançou recentemente o seu primeiro álbum, intitulado Estranha Melodia. Trata-se do primeiro lançamento do selo Máquina de Louco, do pessoal do BaianaSystem. Não é para qualquer um, viu?

 

“É um lugar onde existe uma quebra de um horizonte de expectativa”

O álbum conta com a produção do querido Curumin, um dos mais inspiradores artistas brasileiros dos últimos anos. Ele produziu o disco junto à própria Livia, e a ajudou a tirar o máximo de proveito possível de cada canção.

Em termos sonoros, Estranha Melodia mescla com MPB e pop através de recursos eletrônicos construídos de forma orgânica. Mesmo assim, o disco não se faz previsível, usando recursos musicais que desviam suas canções do padrão, causando uma leve, porém gostosa, estranheza.

A cantora levará o show de seu novo disco ao Mundo Pensante, em São Paulo. O evento acontecerá nesta terça (20), e tem previsão de início para as 21h. A entrada é gratuita, sujeita à lotação da casa. Não vai perder, né?

Tivemos a oportunidade de conversar por telefone com Livia. Nosso papo foi desde o conceito da “estranheza” provocada por seu álbum até uma interessante conversa sobre o que está acontecendo musicalmente na Bahia.

Confira abaixo (e não deixe de escutar o disco, disponível ao final da matéria):

Capa de "Estranha Melodia" (Livia Nery)
Foto: Caroline Bittencourt

TMDQA!: O que, na sua visão, seria a tal “Estranha Melodia”? Acredito que o fato de esse ser o nome do álbum tenha algo a ver com a sonoridade.

Livia Nery: O álbum tem esse título porque tem um lugar, um mundo perfeito, que talvez seja esse “estranho” que me interessa. É um lugar onde existe uma quebra de um horizonte de expectativa. As canções não são necessariamente estranhas à primeira vista, mas existem coisas ali, entre cadências, harmonias e melodias que quebram com o horizonte de expectativa do que seria uma canção “perfeitinha”. É um estranho que me cabe. Não é um estranho radical, mas é algo sutilmente estranho, que quebra com expectativas. Além disso, vivemos tempos estranhos. Nosso país está meio estranho. É um tempo onde essa questão da estranheza está aparecendo mais.

TMDQA!: O álbum tem influências da MPB e da atual música pop. Existem artistas ou movimentos musicais específicos que sejam grande influência para a sua sonoridade?

Livia: Existem algumas influências, sim. E elas são bem diversas. Durante muito tempo, eu ouvi muito trip hop. Eu ouvi uma banda chamada Portishead, que tem uma vocalista mulher chamada Beth Gibbons. É uma banda do fim dos anos 90, que bebeu muito do próprio hip-hop, de uma música feita baseada em samples. Eles foram fazer isso do outro lado do Atlântico, com toda a frieza do Reino Unido. Eu ouvi muito Erykah Badu também. Aqui no Brasil, ouvi muito Elis Regina, Cássia Eller… Eu escuto muito cantoras mulheres porque me identifico. São artistas que estou sempre ouvindo.

TMDQA!: O jeito que as canções se levam me remeteu muito ao trabalho de Milton Nascimento. Existe alguma influência no trabalho dele?

Livia: É engraçado você falar isso, porque Milton Nascimento foi um artista que eu ouvi muito dentro de minha casa, já que meus pais ouviam muito o povo de Minas. Mas foi um artista que eu deixei de ouvir depois de certo tempo. Então, é uma informação que deve estar dentro de mim, em algum lugar lá atrás. Algo meio inconsciente que deve sair nas formas das harmonias. É claro que eu reescutei depois a galera do Clube da Esquina, mas não tanto assim. Eu até gosto que fique em um lugar que eu não saiba identificar direito, porque essas influências acabam surgindo de alguma forma na construção das cadências.

 

“Eu acho que precisamos ser mais curiosos”

TMDQA!: O disco conta com uma cover de “Vinte Léguas”, de Evinha e Marizinha Corrêa, que é uma composição de 1974. De onde surgiu a ideia de fazer uma cover?

Livia: Essa música não teve tanta repercussão, mas é uma música super pop e fácil de cantar. Algo bem radiofônico mesmo. Eu sugeri essa música para o Curumin, ele já conhecia e concordou que tinha a ver com a proposta do disco. Eu já conhecia o disco de Evinha, e é originalmente uma canção do lado B, mas era a que eu mais gostava. Ela tem um groove fenomenal.

TMDQA!: Mas, dentre tantas músicas, por que uma releitura justamente dessa?

Livia: Eu não fazia muita questão de fazer cover de alguma música muito conhecida. Uma música que já teve muito sucesso não precisa de uma cover, sabe? Ela já chegou em um lugar muito definitivo. Eu me questiono: “será que essa música precisa de uma cover?” Meus covers são de artistas e músicas que eu acho que as pessoas deveriam reencontrar, como foi o caso de Evinha. A composição foi feita como uma parceria entre Evinha e sua irmã, Marizinha. Isso, para mim, é muito simbólico, por vir de um recorte de composição de mulheres. A letra da música tem uma simplicidade grande, mas um sentimento danado. Fala de uma marcha, como se fosse uma caminhada, para dentro de si. Ela caiu como uma luva, conforme entendíamos que o disco tinha um lance com trajetórias, com litoral, com interior… Evinha meio que sintetizou tudo.

TMDQA!: Isso que você falou, sobre sua interpretação moderna da composição de Evinha, é muito interessante. Uma obra depende de um contexto social e geográfico, e, em 2019, uma dessas músicas despertou em você um sentimento que a fez coloca-la no disco.

Livia: Para mim, é um grande prazer descobrir um disco da música brasileira que não conhecia. Particularmente, esse disco de Evinha eu descobri em algum blog sobre música do início dos anos 2000. Nessa época, a música de difícil acesso era bastante compartilhada por blogs, onde você literalmente baixava o disco. Eram colecionadores que disponibilizavam o áudio. Eu tenho um HD de música só por causa de blogs.

Mergulhar em um disco que eu não conhecia antes é uma experiência ótima. Eu leio a ficha técnica e vou vendo quem foi que gravou. Através dos meus próprios discos, por exemplo, eu descobri que Evinha foi backing vocal em uma cacetada de discos dos anos 70. Ela e sua irmã trabalharam com nomes como Jorge Ben e Gilberto Gil. Assim, você vai entendendo o que acontecia naquela época. Eu acho que precisamos ser mais curiosos. Com a mesma curiosidade que a galera de hoje em dia tem em correr atrás das novidades, dá para dar uma sacada em discos de anos atrás. Aliás, os fundamentos estão por lá.

 

“Vivemos um momento onde está valendo criar novas fórmulas”

TMDQA!: Hoje temos um movimento independente contemplando muitos artistas incríveis, que também acabam sendo ignorados pelas grandes gravadoras justamente por conta de questões de mercado. O próprio BaianaSystem é um exemplo de um ótimo grupo que conseguiu “burlar o sistema”.

Livia: É impressionante. O Baiana tem um modelo próprio de gestão. Não foi à toa que eu quis lançar meu disco pelo Máquina de Louco. É admirável. Mas vemos em outros exemplos também que a ideia de que ser independente facilita a produção. No entanto, a gente ainda encontra um gargalo na distribuição. Finalizar ainda não está tão fácil assim, porque finalizar bem um trabalho ainda requer certa estrutura. Se você é do “faça você mesmo” assim como eu já fui, você coloca no mundo do jeito que pode. Mas a nossa cena ainda encontra vários gargalos.

Livia Nery
Foto: Caroline Bittencourt

TMDQA!: Eu sou esperançoso em relação a isso. Talvez seja uma questão de tempo. A própria revolução proporcionada pelo streaming é algo ainda muito recente. Acho que ainda tem como sairmos na frente de alguma maneira.

Livia: Vivemos um momento onde está valendo criar novas fórmulas. Se elas funcionarem, elas viram padrão. É refazer a história. A Anitta, por exemplo, entendendo o fluxo das plataformas, criou um novo modelo, com um single com videoclipe a cada mês. E deu certo. Agora, você vê que ela foi na maré, com sagacidade. Eu acho que, em todas as esferas, dá para propor e inventar se você for perspicaz, baseado no seu público.

TMDQA!: Que outras músicas ou artistas você gostaria de reinterpretar?

Livia: Algumas músicas tinham passado pela minha cabeça. Uma delas é “Mel Mulher”, de um disco do Olodum de 1993. Foi uma música que tocou muito na Bahia mas que não teve tanta atenção quanto outras. Teve também uma em inglês do Tim Maia. Esse disco dele é de 1976, e tem músicas maravilhosas. Tinham outras que cogitei que não eram tão “lado B” assim, como “Sim Não”, do Caetano Veloso, que é do disco Outras Palavras, de 1981. Mas Evinha chegou “de sola”.

TMDQA!: A sexta faixa do disco é um interlúdio, uma vinheta para “Instinto”. Ela foi alguma forma de dividir a narrativa do álbum? Queria entender um pouco como você construiu o disco em termos narrativos.

Livia: A gente queria marcar uma espécie de “lado B” (risos). A gente pensou o disco muito como um LP, embora não tenham a mesma duração. A gente quis seguir a lógica de deixar no suposto lado A músicas mais “lado A”, enquanto o lado B contempla as faixas com mais variedade entre si, que arriscam mais. A própria “Quem Se Imaginou”, que conta com compasso composto, é uma música um tanto incomum. A gente fez de “Cantoria” e de “Vinte Léguas” uma dobradinha, porque acreditamos que lá exista uma conversa sobre um Brasil estradeiro.  Depois de “Quem Se Imaginou”, tem “Toma Conta” e “Spiritual”. “Toma Conta” toca em assuntos mais densos sobre mergulhos interiores, e “Spiritual” é basicamente uma oração. A gente também achou que elas iriam bem juntas. Fomos deixando e evoluindo o disco dessa forma.

TMDQA!: Por que encerrar com “Spiritual”, uma faixa em inglês? Por que, no finalzinho, você abriu mão das diversas camadas instrumentais que permearam o álbum para se restringir a apenas um arranjo de vozes?

Livia: Desde o início, nós sabíamos que essa música seria a última. Desde que mostrei para Coruma, ele sempre animou para que colocássemos ela no disco. Ela tem um lance que remete à época em que comecei a tocar em Salvador. Eu levava meu loop, meu sampler e meu tecladinho. Eu fazia o que é conhecido como one man band, ou “one woman band” no meu caso. Foi uma forma de trazer para o disco esse jeitinho de fazer as coisas sozinha. Foi também uma forma de terminar o disco de uma forma calma, deixar como se fosse uma oração para o final. A gente abriu mão de terminar com uma música mais “pancada” e fomos fazendo um “fade”. A gente experimentou várias ordens, até acharmos que essa funcionou melhor. É uma pequena reza para quem resolvesse ficar até o final do disco (risos).

 

“A Bahia sempre foi terra de gente boa na música”

TMDQA!: A música brasileira vive um momento ótimo. Um dos lugares que mais tem exportado nomes para o Brasil todo é a Bahia. Nos últimos anos, viraram nomes de força nacional BaianaSystem, Baco Exu do Blues, Luedji Luna, Xênia França e muito mais. Como você enxerga esse poder da cena local? A que você acha que isso se deve?

Livia: Eu acho que Salvador está vivendo, há uns 10 anos, um momento de transição de mercado interno. A música de carnaval está se reconfigurando. O que foi sempre tido como trilha sonora da época desde os anos 80 e 90 estava se renovando pouco, o que fez com que perdesse força. Essa música foi predominante na Bahia durante muito tempo, enquanto todo o resto se juntava em um balaio de alternativo. Isso já não existe mais. Mudou com o próprio desgaste da cena do axé e com o surgimento de novos tipos de música, como o BaianaSystem, que misturou várias coisas locais e fez algo diferente.

Agora, em 2019, eu vejo que não dá para colocar muitos artistas da Bahia em um balaio “Bahia”. São sons muito diferentes, sabe? São como constelações separadas. Eu vejo muito Luedji Luna e Xênia França conversando mais entre si. Larissa Luz conversa também com o Baiana. Tem o ÀTTOOXXÁ, que está ali no pagode eletrônico, que bebeu da fonte de quando o eletrônico começou a aparecer na música baiana… Todo mundo se conhece e tem um carinho grande entre si, mas não dá para colocar no mesmo balaio. Não é uma cena uniforme. São vários agrupamentos. O que está acontecendo com Luedji, por exemplo, é incrível. Todos os shows dela esgotam. Ela abriu portas não apenas para a representatividade de mulheres negras, mas também para todas as cantoras. Para mim, inclusive.

Eu acho que, de fato, tem um barulho acontecendo na Bahia. Sem nenhum grau de arrogância, a Bahia sempre foi terra de gente boa na música. A cena atual não se comporta muito como local, porque nem todos os artistas estão por lá. Não tem mais pontos de encontro que caracterizam uma cena, mas existe um olhar voltado para a Bahia hoje em dia. O Baiana ajudou muito nisso, porque eles estavam arrastando uma multidão no Carnaval. A gente entende a mídia nacional como a mídia concentrada no Sudeste, salvo alguns raros exemplos. Esse centro de produção de notícias teve que olhar para lá. A imprensa local já estava ciente daquilo tudo. É natural o olhar de quem vê de fora achar que existe uma cena ali, mas eu não chamaria de cena. É um momento em que os olhos estão voltados para a Bahia, com uma produção efervescente.

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