Baleia
Foto: Felipe Abrahão

É inegável que as revoluções tecnológicas têm se mostrado cada vez mais constantes, e que novas ferramentas têm surgido em uma frequência cada vez maior. O mundo da música, assim como todos, tem sido afetado por isso.

Pegue a década de 2010 como referência. Em seus primeiros, o streaming ainda não tinha tanta força quanto tem hoje na vida das pessoas. Tampouco das gravadoras, já que o modelo de produção e distribuição musical era basicamente outro. Em 10 anos, o cenário mudou bastante.

Acontece que, diante de uma indústria que virou de ponta cabeça para se adaptar às tendências, ainda não foram exploradas todas as possibilidades dessa nova era. O modelo de estruturação segue semelhante ao que era feito nos “tempos da mídia física”. É como se as mudanças que vemos não acompanhassem a revolução tecnológica. No entanto, existem artistas que estão tentando explorar as novas potencialidades. Vemos isso em formatos alternativos de lançamentos que fogem do conceito que conhecemos de álbum.

Dito disso, podemos citar a banda carioca Baleia. Formada por Sofia Vaz (voz, teclado e guitarra), Gabriel Vaz (voz, bateria e guitarra), Felipe Pacheco Ventura (guitarra e violino) e Cairê Rego (baixo), eles saíram da zona de conforto para o próximo lançamento. Após dois elogiados álbuns de estúdio (Quebra Azul, de 2013, e Atlas, de 2016), a banda está lançando aos poucos seu terceiro disco.

“Mas como assim ‘aos poucos’?”, você pergunta.

 

O “disco vivo”

A Baleia atualmente está investindo na proposta de um “disco vivo”, ou seja, um disco que, assim como nós, evolui diariamente e está submetido a mudanças. As músicas vão sendo inseridas e compostas aos poucos, em um processo bastante orgânico.

Intitulado Coração Fantasma, o disco, que está sendo trabalhado pela Sony Music, tem até agora seis músicas, cujos lançamentos foram divididos em duas partes (perceba: são partes,e não EPs). Enquanto divulgam as canções da segunda parte (essa semana, inclusive, foi lançado um clipe para “Tudo Falta, Você Sobra“, que você pode conferir ao longo do texto), o grupo está compondo as canções que integrarão a terceira. As novas músicas estão sendo testadas nos atuais shows da banda, de forma bem natural para que se possa entender a reação do público.

Fomos até o escritório da Sony Music, em Botafogo (RJ) para entrevistar Sofia e Gabriel sobre essa nova fase da Baleia. A dupla contou detalhes sobre a ideia de “alimentar um disco”.

Fugir do óbvio está sendo um desafio não apenas pra a banda, mas também para a indústria. Também conversamos sobre os desafios de uma forma de divulgação alternativa, e como esse processo está sendo encarado pelas plataformas e pelas casas de shows.

Confira abaixo o papo e reflita sobre:

Baleia

TMDQA!: Primeiramente, queria que vocês contassem um pouco mais sobre o conceito do “disco vivo”. De onde surgiu essa ideia?

Sofia Vaz: A minha sensação é a de que foi natural. Fazer um disco não é acordar com 10 músicas prontas na cabeça. Essas músicas vão surgindo em um período de tempo. O que geralmente se faz é produzir em um tempo x e depois condensar isso em um produto. Por conta de como é o mercado hoje em dia, ter essa possibilidade é algo muito interessante. Testar músicas em shows e criar aos poucos me pareceu algo muito interessante.

Gabriel Vaz: Tem essa questão da experiência de não saber onde vai chegar. Nem o público e nem mesmo nós sabemos. Um disco tem uma personalidade e quer contar alguma coisa. Quando você faz ele aos poucos, vai gerar algo interessante para analisarmos. É um diálogo com o próprio disco também. Ele já veio com o nome, mas não sabemos como ele vai terminar. Esse nome está reverberando na gente agora, fazendo a gente pensar nas outras músicas e para onde estamos indo. Eu acho que, pessoalmente, foi muito legal para nós, porque estávamos precisando trabalhar dessa forma. Queríamos descobrir novas possibilidades para trabalhar com mais leveza. É quase um exercício pessoal nosso, enquanto banda, de deixar as coisas irem acontecendo.

TMDQA!: Isso é interessante, porque esse “boom” de artistas novos surgindo tem muito a ver com um novo cenário musical mais propício. Já que nos acostumamos com a mecânica de lançamento de discos e toda a questão mercadológica engessada de singles e clipes, é muito interessante os próprios artistas questionarem esses limites e proporem novas soluções.

Sofia: As possibilidades ainda não foram exploradas direito, tanto que a gente esbarrou com problemas das plataformas. Como vamos lançar um disco que é uma parte de um disco, e não um simples EP? Tivemos que conversar com a gravadoras, com as plataformas… O Spotify ainda não está programado para isso. A Baleia está na frente (risos).

TMDQA!: Por que exatamente o nome Coração Fantasma para intitular o projeto?

Gabriel: Como sempre, é algo que reverbera nas subjetividades de cada um. Eu lembro que pensamos muito na ideia de um fantasma, só que não queríamos chamar o disco simplesmente de “Fantasma”.

Sofia: Tem uma questão de presença, de encarnação. Também conversamos muito a respeito do termos “faixas fantasma”, que as plataformas digitais usam para faixas que estão lá mas que ainda não conseguem ser acessadas. Isso foi entrando no nosso imaginário. Não é bem um fantasma, porque estamos querendo colocar agora uma questão humana de não ter controle, de deixar as coisas acontecerem de forma orgânica. Com isso, trouxemos a ideia do coração, que é uma coisa emocional, aberta e que pode fazer ligação com os outros. Juntamos as duas ideias e deu origem a esse nome.

Gabriel: Depois fomos descobrir que também se trata de um termo médico. É um método de deixar só o tecido do órgão. Se você procurar no Google, você vai achar um coração branco, que fica assim porque não tem sangue.

TMDQA!: Acredito que nomear os outros dois discos tenha sido um processo diferente, uma vez que as músicas já estavam prontas. Como foi pensar esse processo “ao contrário”?

Sofia: Eu estou gostando mais. Não sei se vai ser sempre assim daqui pra frente, mas focamos mais na música e, enquanto estamos fazendo ela, a gente passa a enxergar semelhanças com outras músicas que nem estávamos planejando. Nisso, criamos uma teia de relações, procurando mais linguagens.

Gabriel: A gente está seguindo esse coração fantasma e estamos experimentando. No Atlas, eu lembro que a gente já tinha muita ideia do que queríamos falar e já tínhamos as músicas meio compostas. A gente sabia muito bem o universo a que ele pertencia. Já nesse, está sendo diferente.

 

“O conceito tem que vir depois”

TMDQA!: Queria saber um pouco mais sobre o processo de composição das músicas. Como vocês citaram, elas estão meio que dialogando entre si de uma maneira que vocês nem planejavam. Por exemplo, a primeira parte conta com a faixa “Eu Estou Aqui”, enquanto na segunda foi lançada “Eu Mal Estou Aqui”. Como isso foi pensado?

Sofia: A gente fez primeiro a “Eu Estou Aqui”, que tem essa coisa da presença. Depois, fui escrevendo a letra da outra, que fala de uma pessoa que estava ali mas não era notada, quase que como um fantasma mesmo. Eu escrevi na letra “eu mal estou aqui”, e não tinha nem percebido. Depois, na hora de escolher um nome para a música, estava ali o tempo todo.

Gabriel: Vai surgindo enquanto vamos tendo esses mini insights. As músicas lidam com essa ideia de querer estar mais presente. Uma música fala sobre assombração, sobre estar no controle. Depois você percebe que isso está acontecendo de uma maneira muito orgânica.

Sofia: A minha regra interna é que o conceito tem que vir depois. Se eu parto do conceito, a gente se fecha muito. Quando vem depois, se torna algo mais real e menos restrito.

Gabriel: Tem vários discos que eu vejo que possuem um conceito fechado. O próprio último disco do Arcade Fire (Everything Now, de 2017) eu achei muito chato. Você vê que eles construíram algo muito grande em volta da música, mas a música em si ficou em segundo plano.

TMDQA!: Eu achei muito interessante a questão da capa ir se atualizando também. Como isso surgiu?

Sofia: Quando decidimos fazer que a capa se atualizasse, a gente se questionou sobre como fazer isso. Aí entrou a ideia de que não queríamos ter o controle sobre isso. Aí convocamos a Lisa (Akerman), comentamos a ideia e ela propôs ser uma tela de pintura a óleo. Isso partiu dela, e foi ótimo porque queríamos que ela entrasse nesse coração. Foi algo bem autoral da parte dela.

Gabriel: É um tempo também para entendermos o que queremos que seja a capa. A Lisa está estudando símbolos e arquétipos. Dependendo das músicas, ela pega referências próprias e leva isso para a arte.

Capa atual de "Coração Fantasma" (Baleia)
Foto: Lisa Akerman

TMDQA!: Vocês imaginam, mesmo que minimamente, como vai ficar o resultado final desta experiência?

Gabriel: Estamos começando por agora o processo do terceiro capítulo, e tem músicas que eu sequer sei como vamos terminar. Tem uma música que parece uma canção de um disco da Motown, e nunca fizemos algo desse tipo. Não sabemos como vai terminar e nem o impacto que isso vai ter no disco. Dá muito nervoso, mas é bom. Não tem um momento em que a gente tenha um relaxamento em relação ao disco. É difícil conciliar o tempo. É desgastante entrar e sair do processo criativo o tempo todo. Estamos aprendendo muito.

Sofia: Eu achei que seria ótimo, mas enquanto estamos lançando, estamos gravando e mixando ao mesmo tempo. Estamos gravando em casa mesmo, com nosso tempo para testar. Está sendo um processo bem orgânico no sentido de que, em um show, às vezes ouvimos uma linha de guitarra que encaixou bem ao vivo e vamos alterar a gravação.

 

“Estamos no meio de uma transição de tudo”

TMDQA!: Fiquei espantando, mas de uma forma positiva, quando ouvi “Duelo Fantasma”. É diferente de tudo que a Baleia fez até então. Nessas músicas novas, vocês estão trazendo alguma nova influência específica, considerando que o último disco de vocês é de 2016?

Sofia: Eu acho que, em geral, quando surge a primeira ideia da música, cada um escuta de uma maneira diferente. Cada um aponta uma referência diferente, indicando diferentes lados. Cada música, no final das contas, vai juntando várias influências. Nessa música, eu mandei algo mais lento, mais Fiona Apple do que qualquer coisa. O Cairê (Rego) associou com M.I.A. (risos). E aí fomos misturando tudo.

Gabriel: Acho que o que está acontecendo agora, mais do que uma referência específica de alguns artistas, é que estamos nos deixando levar mais pelas influências. Antes, a gente lutava muito, não de uma maneira ruim, para achar um som próprio. Criar algo para pensar o mais fora da caixa possível e soar bonito ao mesmo tempo. Hoje, fazemos algo mais do tipo: “Vamos tentar algo meio M.I.A.? Vamos”. E deixamos a música nos guiar, mesmo que as influências se percam pelo caminho. Nesse disco, as nossas influências estão um pouco mais claras. “A Mesma Canção” começou com a gente querendo fazer algo meio LCD Soundsystem, mas acabou virando outra coisa.

Sofia: Depois de um tempo, a gente se tocou que não precisamos nos esforçar para fazer isso. Na verdade, as coisas que fazemos acabam tendo a nossa cara. Por mais que queiramos nos espelhar nas nossas influências, o resultado final fica com a nossa cara. Assim, a gente se diverte.

TMDQA!: Baleia é um grupo grande na cena carioca. Tendo lançamentos desde 2013, vocês pegaram a transição desse mundo do streaming. Como vocês se adaptaram?

Gabriel: Estamos no meio de uma transição de tudo. A gente pegou um pouco de cada fase, mas não deu para imergirmos completamente em uma época. Pegamos a época em que se falava que o CD estava parando de vender.

Sofia: A gente não pegou o modelo clássico das gravadoras. Tanto que já colocamos o Quebra Azul no Spotify. A gente não tem uma noção de qual a melhor forma de fazer. Ainda ficamos muito perdidos, então não sei se temos uma vantagem nesse sentido. A galera “mais das antigas” tem uma dificuldade maior porque vivenciou o mercado antigo. A gente pegou já na transição. O que tentamos fazer, na verdade, é pensar como nós mesmos estamos consumindo música. No Atlas, já ficamos em um meio termo que nos fez pensar se valia a pena ou não lançar em CD. Agora nos deparamos com a mesma dúvida. Está ficando cada vez mais etéreo. Isso precisa ser repensado.

Gabriel: É como ver essa questão mais fluida da contemporaneidade de uma forma mais artística, que possa engrandecer o trabalho ou criar uma nova dimensão. Hoje, eu acho mais interessante lançar um vaso de planta com a arte do artista do que qualquer outra coisa.

TMDQA!: Por sinal, lançar um livro para a divulgação do Atlas foi algo muito bem pensado. Vocês foram contra a corrente que dizia que a mídia física estava morrendo. Para a divulgação do disco novo, vocês pensam alguma forma diferente?

Gabriel: A gente tem vontade de lançar um objeto físico. Ainda não conversamos muito sobre, mas é uma ideia. Não seria um vaso de planta (risos). Podemos aproveitar a ideia dos arquétipos. Criar um jogo, talvez? Algo colecionável que você possa comprar o que te interessar ou o kit completo. A gente não sabe ainda.

TMDQA!: Acredito que exista também um apego à questão física, que parece que o mercado não alimenta mais.

Sofia: Acho que hoje em dia, quando não se tem nada para tatear, pode acontecer o efeito reverso, que é de sentir falta da coisa física.

Gabriel: Quando a obrigação vai embora, você começa a dar valor. Na verdade, esse momento é uma grande oportunidade para a humanidade começar a se reconectar com o valor do que é físico.

TMDQA!: Como vocês enxergam a evolução de vocês enquanto pessoas e enquanto banda nesse tempo de carreira?

Sofia: Eu acho que está um pouco em tudo que gente falou aqui. Tudo está meio permeado por essa questão do tempo passando e das alterações, tanto da indústria quanto da gente. Até mesmo essa questão do relaxamento em relação ao nosso próprio processo criativo. Isso tudo surgiu por conta desse tempo todo que temos trabalhado. Seria muito tenso para a gente testar músicas ao vivo no início da banda, por exemplo.

Gabriel: Existe essa maturidade de a gente ficar mais tranquilo e confiante, de ir lá e fazer. Mas se alguém me perguntar como funciona o processo criativo da banda, eu não saberia responder. A gente viu que isso vai mudando, e que vamos seguindo esses impulsos. Mas, ao mesmo tempo, por causa disso tudo, eu acho que o show da Baleia nunca esteve tão bom quanto está hoje.

TMDQA!: É bom ver que os resultados dos discos de vocês geraram confiança para explorar ainda mais a criatividade de vocês.

Sofia: A Baleia foi mudando. Acho que tem sempre algo meio impetuoso de estar sempre com desejo de explorar mais. “Eu já fiz isso, agora quero fazer diferente”, sabe? Enquanto tivermos ideias novas, vamos sempre ficar nisso de querer experimentar. Em termos de mercado, talvez seja até mais difícil. Para fazermos show do disco vivo existe uma certa dificuldade. As casas perguntam: “mas isso não é um disco? Não é um EP?”. O mercado ainda não está preparado.

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