Se você é inserido no mundo da música brasileira, com certeza já deve ter escutado algo cuja produção foi assinada por Carlos Eduardo Miranda. E após um ano de sua morte, seu nome ecoa por aí.

Formado em jornalismo e com o amor pela música desde criança, Miranda uniu o útil ao agradável e atuou fortemente na cena musical brasileira desde os anos 1980. Se você cresceu nos anos 90 assistindo à ascensão do manguebeat na MTV e até ficou sem entender, nos anos 2000, que Cansei de Ser Sexy foi uma das bandas brazucas que alçaram voos internacionais, saiba que tudo isso se deveu a esse cara.

Lançou muitas bandas através do selo Banguela Records, Excelente Discos e se tornou pioneiro no Brasil ao criar a plataforma musical Trama Virtual, em 2004. Raimundos, Nação Zumbi, Skank, Móveis Coloniais de Acaju e até Boogarins tiveram “dedo” dele. Podemos concluir que o Miranda é basicamente uma entidade.

Além disso, seu nome também foi estampado em rede nacional ao ser jurado de alguns programas de calouros do SBT, e certamente você já deve tê-lo visto dormindo em alguma audição bem zoada. Com uma carreira peculiar, em destaque por ter sido crítico de filmes pornográficos, Miranda nos ajudou a enxergar a miopia cultural que acontecia e revolucionou toda a transgressão musical que o Brasil teve.

Entre homenagens — como nosso podcast! — e trabalhos a serem divulgados, seu legado ainda se faz firme muito além dos estúdios.

Em meados de 2016, como parte de um trabalho acadêmico, tive o prazer de entrevistá-lo. Tivemos um papo edificante e com muito bom humor, que você pode conferir logo abaixo, após a imagem.

Bananada-miranda

O que difere entre fazer música e falar sobre música? 

Miranda: Falar sobre música não precisa de muita coisa, além de propriedade e noção do que você quer expressar sobre, e sempre atento ao que o leitor busca. Já em questão de fazer música você precisa entregar algo a mais, que vem da alma e da sua prática. Como diz o ditado, “falar é fácil”, buscar fazer é sempre algo muito maior.

De que forma seu trabalho como jornalista na revista Bizz o fez tornar-se um crítico e especialista na área da música? 

Miranda: Eu não acreditei em ser crítico ou especialista nisso, eu fiz aquilo porque era o que eu tinha para fazer, tenho paixão na música e estudei para trabalhar nisso. Sem contar que eu gostava da revista e acompanhava, porém, sempre tentei fazer com que as pessoas desconfiassem dos críticos. Acho que tem que conhecer a pessoa que está te falando e ouvi-la, não seguir o que ela argumenta como verdade absoluta.

Como era para você ver algumas bandas independentes lançadas tanto pelo Banguela quanto pelo Excelente se consolidando no mainstream naquela época? 

Miranda: Foi uma realização pessoal, porque meu sonho era exatamente mostrar que a cena alternativa tinha grande potencial, muita gente se sentia representada por aquilo e não tinha acesso, e logo mostrar ao mainstream que podia ser mais do que se estava vendo ali. Era um momento de crise para o pop no mainstream e essas bandas vieram trazer um “vento novo”, sacudindo legal.

Nessa “parceria” que você teve com o pessoal do Titãs através do selo Banguela Records, como você vê a contribuição desse selo no cenário musical brasileiro? 

Miranda: Acho que foi muito importante naquele momento e deixou um legado de que dá para acreditar em si, sem grandes recursos, ser corajoso e meter a cara. Até o filme, o “Sem Dentes”, mostra muito isso, que tem que ser doido, saber arriscar e não ter medo das coisas, é isso que faz ser maior, ao representar de fato aquela época na música brasileira.

Como você interpreta a expressão “O Brasil nunca foi tão rock ‘n roll”, sobre a época de 1994? 

Miranda: É um ponto de vista, já que eu nunca consegui julgar isso, mas eu posso dizer que o rock nunca foi tão brasileiro, já que eles estão dizendo o contrário só para causar efeito. Aquilo é o rock com uma cara muito brasileira, como teve nos anos 70, na era do Tropicalismo, com Alceu Valença, Novos Baianos, que eram voltados para a vertente do rock. E já nos anos 90, acontece a mesma coisa, porém em outra proporção, com o manguebeat, com Raimundos e outras bandas. Contudo, tinha outras bandas também que imitavam as de fora, como sempre teve.

Sabemos bem que uma das principais vias que fomentam a cena independente na internet são as plataformas musicais, logo não podemos deixar de citar a “pioneira” Trama Virtual. Como sucedeu a importância desse site para as bandas? 

Miranda: Eu me sinto muito honrado de ter tido a oportunidade de desenvolver junto com uma equipe maravilhosa a Trama Virtual, já que sempre foi um sonho antigo e eu vivia enchendo o saco lá na Trama, onde eu tinha o selo. Eu queria fazer algo para internet, algo que abraçasse os artistas, que fosse de uma maneira que eu enxergava. Já existia algumas plataformas lá fora, como o Garage Band, só que todas eram muito impessoais, e sempre busquei algo muito pessoal, dedicado às pessoas que estavam na rua, que viam os artistas e que ouviam tudo o que estava pela cidade, então todo o catálogo da Trama são bandas que a gente ouviu, viveu e participou, fomos aos shows, e isso fez muita diferença. Eu vejo hoje que ajudou muitos artistas a crescerem, a começar pelo Cansei de Ser Sexy que foram lançados por nós, o NX Zero e a Fresno que foram bandas que acrescentaram muito e se propagaram ali, por consequência também ajudaram a Trama Virtual a evoluir, foi uma “via de mão dupla”. E são coisas assim que me dão muito orgulho, foi importante para uma geração.

Qual foi o legado deixado da plataforma para sua vida profissional? 

Miranda: Foi algo muito mais pessoal que profissional. Dar oportunidade para tanta gente e a experiência que até hoje fica na minha cabeça, com novas possibilidades e maneiras de se pensar isso e poder disseminar isso como uma forma de propagar coisas boas para quem é amante da música é uma recompensa inestimável para mim.

O que foi deixado (tanto bom quanto ruim) com o fim do site? 

Miranda: Nas circunstâncias em que a Trama surgiu, ela foi pioneira no quesito das plataformas e deixou um legado “do caralho” no cenário musical nacional, já que tinha um material disponível de mais de 70 mil bandas, e propriamente para as bandas também, porque o site surgiu num momento onde não tinha grandes alternativas para a divulgação. Já de ruim, o fim por si só, até então a gente concorria com grandes plataformas para as bandas divulgarem seus trabalhos, mas encerramos com dignidade. Não digo que eu não apareça um dia com algum tipo de plataforma de novo como a Trama, ou que tenha alguma relação com o que eu aprendi lá, isso está sempre vivo em mim.

Como um produtor que tem uma visão que busca sempre o que é novo, “o que pode estourar”, que aspecto você atribui ao que parece ser novidade? 

Miranda: Eu busco não exatamente o novo, mas busco aquilo que tem alma, que tem algo a dizer, que me instiga. Falar de novidade hoje em dia é uma coisa muito relativa porque a música é toda feita de repetição, de cópias. Mas mesmo assim eu tento coisas que desafiam os padrões ou que sejam muito bem-feitas. Eu não sei de fato como definir o novo, já que parte muito do ponto de vista de alguém, já que tudo nem sempre é realmente novo ou quer dizer que seja algo bom. Geralmente pode ser muito inovador, mas um pé no saco.

Em meio a um cenário “eclético”, como as bandas de rock independente do cenário atual têm buscado sua representatividade ou visibilidade? 

Miranda: Antes existia filtros muito apertados, que eram o estúdio, a gravadora, a TV, a rádio. E hoje não é tão limitado assim, o filtro é mais você mesmo, teu poder de realização, então acho que hoje o cenário está mais na mão do próprio artista, até mesmo o acesso à tecnologia e a variedade de material são muito maiores agora, e a tendência de as bandas buscarem sua visibilidade é cada vez mais acessível e crescente. E a cena tem crescido cada vez mais, bandas fazem parcerias umas com as outras o tempo todo, como no caso da Scalene, Supercombo e Far From Alaska. A galera tem investido pesado nisso, não só as bandas, mas muitas produtoras e festivais que tem o intuito de fomentar essa cena, como no caso do Móveis Convida, Bananada e o Festival DoSol.

Tem uma frase sua que diz: “tudo sempre dá certo, tem gente que não nota”. Essa frase pode ser destacada em relação ao cenário do rock não ter tanta visibilidade televisiva quanto os outros estilos? 

Miranda: Sim, com certeza! Mas já teve, quando o rock foi moda, nos anos 80, por exemplo, tinha muita visibilidade televisiva, todas as bandas de rock estavam na TV. Inclusive na MTV, que foi a “casa do rock” durante muito tempo, logo os outros gêneros ficaram em segundo plano. Hoje é a vez do R&B, sertanejo e derivados em primeiro plano. A ideia é que cada tempo que tem sua expressão, e a de hoje com certeza não é o rock.

Com tanta transformação musical nos últimos 20 anos, você vê as bandas de rock que hoje fomentam o cenário nacional tornando-se clássicas? 

Miranda: Eu acho que tem novos clássicos em andamento, vários artistas que vão ficar para sempre, eu tenho certeza disso, mas definir quais são é difícil agora, porque tudo acontece dependendo dos caminhos que as coisas tomarem, mas eu vejo que, enquanto as coisas estão com muito frescor, eu acho até ofensivo chamar de clássico, mas novos clássicos estão se configurando sim.

Como está e como vai ser o futuro do cenário do rock brasileiro? 

Miranda: Eu nunca penso na música como “rock brasileiro”, eu acho isso um termo muito restritivo, mas eu penso na música brasileira mesmo como um todo. Nos anos 70, por exemplo, a gente chamava o Kraftwerk de rock eletrônico, pois até então era rock para gente, assim como Alceu e Novos Baianos eram. Hoje, em meio a tantas subdivisões, já não é mais rock, Kraftwerk é o pai da música eletrônica, ninguém mais associa ao rock. Isso é tudo visão de época, eu acho que é uma questão relativa. Por isso me trato da música brasileira, que é uma música rica, bastante variada, que tem muito a ser explorado e ser apresentado ao mundo.

Muitos “dinossauros do rock” argumentam que o rock está morto ou chegando ao fim. Para você, o rock está morto?

Miranda: Confesso que sou um dos que falam que o rock está morto, por que se o roqueiro fala que o rock é como uma tradição, que precisa ser honrada, ele morreu. O rock não foi feito para ter tradição, nasceu para revolucionar. Então a lógica é basicamente essa: morreu! E mesmo vale para o rock brasileiro: o espírito que tinha no rock — transgressivo, sexual, drogado, perigoso — está no funk. O rock atualmente é música de pai de família, virou música de “véio broxa”. Lógico que tem um monte de banda boa, é óbvio, e espero que tenha cada vez mais, até mesmo para todos os gêneros, mas o rock é música de véio. Eu sou um deles!

https://www.facebook.com/festivalbananada/videos/1000794750093920/

Salve, Miranda.

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