Russo Passapusso (BaianaSystem)
Foto: Wikimedia Commons

Por Nathália Pandeló Corrêa

Não se deixe enganar pelo título de O Futuro Não Demora, novo álbum do BaianaSystem que chega hoje (15) aos serviços de streaming.

Indo além das expectativas que pairavam após o bem-recebido Duas Cidades (2016), o grupo soteropolitano escolhe olhar para a frente em um mergulho mais profundo no passado da música, do sincretismo, da antropofagia brasileiros, sem perder contato com sonoridades modernas que embalam o flow de Russo Passapusso e seus inúmeros convidados especiais — entre eles Manu Chao, Antônio Carlos e Jocafi, Curumin, Edgar, B. Negão e outros.

São esses os elementos que guiam a busca por ancestralidade do trabalho. Dividido em duas partes, com a primeira batizada de “lado água” e a segunda, de “lado fogo”, elas são unidas pela climática “Melô do centro da terra”. Entre idas e vindas de uma jornada que começou na ilha de Itaparica, nos arredores de Salvador, e foi parar na Inglaterra — onde a banda gravou com o lendário produtor de dub Adrian Sherwood sob regência do Mestre Jackson –, as letras propõem um lado mais reflexivo do Baiana. O aspecto urbano e intenso de Salvador não se dissipa totalmente, mas abre caminho para um lado orgânico mais presente, entre guitarra baiana, berimbau, piano, coros, palmas.

Russo contou ao Tenho Mais Discos Que Amigos!, em uma entrevista por telefone em meio a ensaios de preparo para o Carnaval, os caminhos percorridos durante o ano que passaram produzindo esse disco. Da inspiração na terra de João Ubaldo Ribeiro, passando pela valorização da cultura local, os convidados que ajudaram a dar forma às canções, a filosofia de recriação e reinvenção do projeto, o lugar do Brasil na América Latina e os planos para levar “O Futuro Não Demora” para os palcos. Confira abaixo!

TMDQA!: Oi, Russo! Ouvi o disco ontem e mais do que nunca, senti que o Baiana mergulhou fundo nas suas origens, nos sons da Bahia mesmo, da África, da Jamaica. Aquela potência toda do sistema de som, a batida, o sintetizador dividindo ali espaço com a os coros mais tradicionais, guitarra baiana, berimbau, orquestra, naipe de sopros. Claro que vocês sempre propuseram esses encontros, faz parte do DNA do projeto, mas li no release que esse é um disco de pesquisa, de intenção de se afastar de um lado mais urbano partindo da Ilha de Itaparica, mas refletindo essa nossa ancestralidade brasileira. Queria saber o que mudou pra vocês de um disco pro outro, que fez brotar essa intenção de mudar de território, e de abordar esse disco quase que como uma história mesmo, com começo, meio e fim.

Russo Passapusso: Foi muito natural. A gente foi fazer um show em Itaparica, com o BaianaSystem. Era um festival de literatura, alguma coisa assim. E quando chegou lá, a gente estava carregado de toda aquela bagagem que estava acontecendo nos shows, de toda a diversidade, e aí num ponto em questão, eu falei “ah, a gente trouxe a antropofagia pra cá”. E aí uma pessoa da ilha falou “não, a antropofagia nasceu aqui”. Foi esse primeiro ponto, dentro do show mesmo, que eu achei muito simbólico e bonito. E isso desconstruiu aquela visão urbana que eu tinha dentro da minha cabeça e algumas pesquisas que a gente já estava fazendo, dentro daquele laboratório enorme do carnaval, da simbiose, da mistura toda. Então esse foi um ponto em questão muito visível, assim, de como as coisas acontecem de forma natural. E de repente, quando a gente estava fazendo esse processo, logo depois, voltando para a ilha pra pesquisar o que isso queria dizer, a gente se deparou com esses jovens que vivem lendo [o escritor João] Ubaldo [Ribeiro], conviveram com Ubaldo, e até com esses populares da ilha, pescadores, que têm uma sabedoria muito grande pra passar. Uma sabedoria mansa. Então vem disso, o disco começa a ser escrito dentro disso. Temos o lado água, o “Melô do centro da terra” e o lado fogo. Isso pra gente é muito claro agora, que visualizamos de fora — até porque estávamos mergulhados nisso. E quando você coloca “mergulho”, era algo que eu estava colocando há um tempo também, e hoje de manhã me veio isso na cabeça. Estou falando disso que eu vivi por um ano inteiro pesquisando, a gente ficou ali quatro ou cinco meses indo pra ilha, pra poder pegar nos instrumentos. Nossa intenção não era fazer colagens e não só pegar fusões de referências. Era realmente conviver essa situação para saber depois como que a arte ia falar com as nossas inspirações – cantando, com a caneta, com a guitarra, compondo melodias e com a Orquestra Afrosinfônica também. Então a gente começou a entender que tinha que participar mesmo do processo, mergulhar nele, para aí ser digerido e sair de forma natural da gente. Não seria mais uma ferramenta de colagem de processo artístico pra fazer um produto. Era isso que a gente queria, mergulhar para entender o que uma obra tem, o que a arte tem. A gente começou a sentir outros núcleos com outras artes – um disco que tem relação com cinema e com literatura, e isso começa a gerar coisas. Também podemos citar situações como o próprio manguebeat, com suas profusões de artistas e expressões de forma diferenciada, fazendo ali uma construção de mesmo ideal. É algo que a gente ama e que a gente vê. A Tropicália também, outras artes que a gente usou pra entender essa arte que está pairando, a expressão que está falando por nossas vidas como instrumento. E a gente foi para a ilha e encontrou lá esse grupo chamado Maré de Março, que são essas pessoas que convivem, que passaram por um canto e por outro, levaram o [mestre] Lourimbau lá. E nessa construção, a gente abriu os olhos para ver que o que a gente estava fazendo era um aprofundamento. E voltando ao mergulho, no começo da minha fala, eu percebi que era um batismo. Porque quando você se batiza, tem essa sensação da água, do nascer de novo, de voltar com uma nova ideia e visão. Pra gente nem é uma nova visão de Salvador, porque de Itaparica você vê Salvador de frente; mas uma nova visão de Brasil. E por isso que o caminho da música é Bahia-Brasil, e o disco começa a ser traçado dessa forma, com essa gênese inicial: água.

TMDQA!: Você meio que antecipou um pouco do que eu ia perguntar. Porque acho que o Baiana usa muito bem essa dualidade. Tanto que o disco é dividido em duas partes e parece que te leva numa jornada — meio que literal, porque dali da ilha vocês partiram pra Inglaterra. Tem toda a simbologia da água do centro da terra, do Navio. Ia perguntar qual era o norte de vocês nessa viagem, mas pelo que entendi, vocês foram entendendo aos poucos, é isso?

Russo: É. Falando nisso, parece que a gente está falando de uma pesquisa para escrever um livro, e disso e daquilo. O que aconteceu é que, como a gente estava indo para a ilha toda semana, ia fazer show e voltava para a ilha… Como a gente estava nesse processo, de sempre voltar, começamos a abordar motes e assuntos que seguiam numa direção de criação. Era muito intuitiva, e naturalmente a primeira música que a gente trabalhou foi “Água”. E a gente falou de tudo isso, dos rios, de como esses povoados acontecem, de como somos feitos de água, que a gente já tem tudo isso. Na própria citação de Antônio Carlos e Jocafi, “num ponto futuro/o doce e o sal vão se misturar”. Fala dessa coisa da ciência, e essa música é um ijexá, ficou muito linda. Eu fico muito feliz, que a minha voz, com a de Antônio Carlos e Jocafi, ficou muito fundida ali, a gente está cantando junto coladinho… E isso me emociona tanto, porque eu tenho essas memórias afetivas de quando a gente gravou e era justamente essa intenção, apresentar uma voz só, e a construção com a Afrosinfônica dessa música é grandiosa, é muito profunda. E a gente conseguiu ter essa síntese ali do disco com essa faixa “Água”. E aí quando você sai da ilha, tem “Bola de Cristal”, que fala do neandertal, dessa evolução em relação aos tempos, à temporaneidade, e os elementos da ilha vão sempre de encontro ao surgimento do Brasil, de como foi esse encontro no Brasil anterior. Então vai sempre pra esses exemplos, através das histórias das pessoas. O método de criação para que isso fosse algo complementar e de modo cronológico como está no disco, veio das idas de vindas para a ilha, porque a gente sempre voltava com um novo assunto. E quando esse novo assunto acabava, essa música depois de um mês ou três meses, ela acabava sendo completa também. A gente complementava o resto das letras, formatava as ideias, pra gente continuar fazendo as nossas prés, né? Sempre fazendo uma prezinha, um trecho, um rascunho de música. Juntaram esses caminhos. O que a gente não sabia, o que era novo pra gente, era que isso fosse cíclico. Que no final, tivesse um link com o próprio começo. A gente não entendia que tinha água, centro da terra e fogo. Não sabíamos que eram três. E depois a gente começou a linkar isso a Salvador e toda essa região — Feira de Santana, recôncavo, sertão, o fogo, a água (que seria a ilha de Itaparica) e todos esses ambientes que ela leva a gente a encontrar. Não só a ilha, porque se você está na ilha, você está em muitos outros lugares. E o centro da terra, o meio do mar, na hora da travessia de barco, a gente conseguiu mergulhar nesse mantra. E tem uma relação com o cinema, né, porque foi feito já de uma trilha, que o Roberto Barreto juntou com o Lourimbau pra fazer, que se chama “Trampolim do Forte”, que trata justamente do salto das crianças ali do forte, justamente para se desprender dos problemas, das perseguições, de todas essa situações. Então já era esse mergulho. Cada ida à ilha era sobre um mote, sobre um assunto, e aí fomos achando esse quebra-cabeças. Até perceber que isso fazia parte de um ciclo, porque a gente ia, voltava e as coisas eram construídas dentro dessa travessia. O próprio movimento acabava dando esse método de começo, meio e fim pra gente. Quando terminamos – esse disco foi um processo de um ano, indo pra lá, tentando entender — e quando a gente chegou no final, começou a perceber, olhar de fora e perceber “nossa, realmente, está tudo indo em ciclo, o caminho é esse”, e começou a fazer esse tipo de leitura, como eu estou fazendo pra você agora.

TMDQA!: Acho que de cara, algo que impressiona mesmo sem dar play é ver a lista de participações especiais e convidados, porque são nomes que impactaram a música ao longo das últimas décadas — se você pensar em Antônio Carlos e Jocafi, por exemplo, BNegão, Manu Chao, mas também o Edgar, que teve um dos discos mais elogiados do ano passado. De certa forma, é algo novo que resgata parcerias do passado. No topo disso tudo, o Ganjaman, agora produzindo com vocês na Bahia e tudo mais. Queria que você me contasse um pouco como foi a escolha desses convidados e o que cada um trouxe de diferente pro disco.

Russo: A gente não teve esse processo de escolha, sabe? Antônio Carlos e Jocafi a gente já convive, era o sonho da minha vida conhecer eles, desde que eu fiz o Paraíso da Miragem [disco solo de Russo, que conta com participação do duo], é um processo de vida mesmo. Meu sonho era conhecer, entender, e a gente já vinha compondo junto outras canções, e no meio do processo todo, porque eles também já têm todas essas imagens e vontade de pesquisar, dentro da coisa da música da Bahia, a gente acabou compondo junto a faixa “Água”, que era toda instrumental. Então as coisas fluem de modo muito natural, a ponto de eu não saber, quando a gente fez, como escolher o que a pessoa cantasse nesse história. O Curumin também é uma presença muito clássica e tal, e quando a gente faz a música com um tema, que foi todo pesquisado, e o Curumin falando dessa ideia do sonar, que é esse aparelho que fica debaixo do barco, pra poder fazer a leitura do fundo do mar, mas ele é o cara que está em cima do barco olhando para as estrelas para se orientar. Então no final das contas, a gente começou a perceber a comunicação de Curumin com Edgar — ele também já é alguém que a gente tinha convidado para participar do show, já tinha andado em São Paulo junto, a gente compactuava muito com as ideias dele, com a desconstrução e construção que ele faz em todo momento. Essas pessoas vieram junto com a gente porque viram, naturalmente, que além de fazerem parte do nosso ciclo familiar — à exceção do Manu Chao e do Adrian Sherwood — as outras pessoas estão aqui no nosso campo, elas vieram porque perceberam que a gente estava há um bom tempo pesquisando para fazer esse disco, a gente estava conversando sobre. “Eu voltei na ilha, Curumin, foi lindo! A gente estava tentando ir lá no terreno dos egunguns, mas não deu certo. O Lourimbau parece que vai amanhã com a gente”. E ele “olha, que massa!”. “É, a gente viu algumas coisas de cartografia lá, queria que a gente pudesse escrever uma letra sobre as estrelas, não sei…” E ele “ô, que massa”. Então tudo é feito naturalmente. Os samples que foram colocados da música jamaicana, que fica transitando entre um reggae, um rocksteady, um soul… Porque já são linguagens que o Curumin também já domina e tem muitas possibilidades de diálogo com ele sobre isso. Então veio dessas coisas que já vinham da convivência antiga e que foram se misturando pelo efeito de uma dessas músicas. A música acaba puxando os cantos e as vozes que vão ficar melhor nela, como se ela selecionasse esse tipo de coisa. Se não fosse dessa forma, a própria agenda não ia bater, não ia dar pra gravar, o timing ia passar, eu não ia conseguir puxar certos assuntos com o Curumin ou o Edgar. Foi tão natural e sem pressa, deixou acontecer, aí tinha tempo da música esperar. Tanto que hoje eu fui ver a quantidade de estúdio que a gente foi gravar, foram vários nesse processo. Fazia mais parte da escolha do estúdio o processo da música, quando ela podia ser gravada, do que uma agenda de programação que a gente estava falando. Foram muitos rascunhos e brincadeiras pra resultar nisso que temos no disco. Com relação ao Adrian Sherwood, parte de um sonho de fazer uma relação do samba-reggae com seu mestre regente, com o engenheiro de som da música jamaicana, que tem a função de cortar as frequências, de fazer essas novas ambientações sonoras. Tem 10 anos que a gente fala de fazer essa relação de um samba-reggae verdadeiro, tocado por vários músicos, com esse mestre regente, que se chama Mestre Jackson, com esse engenheiro de som, que se chama Adrian Sherwood, um cara fantástico. A gente levou essa percussão, essa coisa do samba-reggae, nessa música “Navio”, pra Londres, pra ele fazer essa ressignificação. A gente tinha o sonho, desde “Duas Cidades”, de fazer essa ressignificação de um samba-reggae dub. O Manu Chao é até engraçado, porque eu não acreditava. Beto falava que essa música tem tudo a ver, “Sulamericano” e tal, e eu nunca acreditei. Até que um dia ele pegou uma guia – uma das guias que eu tinha vergonha de mostrar pra qualquer pessoa – e ele mostrou. De repente estava a voz do Manu Chao ali gravando no gravador dele, de forma amadora. Aí começou a se reconstruir essa situação aí também. Mas as pessoas do Brasil vieram muito dessa convivência que temos com eles.

TMDQA!: Agora eu tenho mais uma curiosidade mesmo. Eu notei que você citou a letra de Batuque ali no meio de “Redoma” — na verdade, citação de “Ponte de Safena” que também está no Goma Laca. Sei que são projetos diferentes, mas acho que têm em comum essa busca pela ancestralidade. Teve algum motivo especial pra você recorrer a esses versos agora?

Russo: São duas letras que são bem interessantes você citar, que vêm de outros lugares. É um processo que tem tudo a ver com o disco e ajuda a fazer a leitura. Na música brasileira antigamente se encontrava muito isso, versões, as letras que se encontravam ali… Eu acho isso muito bom porque também vem da música jamaicana, de fazer versões. Então de “Batuque” eu citei essa letra em “Redoma”, que é uma música que falava muito sobre isso. É uma junção de signos, de patuás, é como se eu jogasse tudo isso dentro do mesmo celeiro, quebrando ali a faixa do território do recôncavo e o sertão, essa mistura que faz o samba e o forró se unirem, e nessa letra eu cito. A outra faixa, “Arapuca”, é uma faixa que eu canto com o Curumin no disco dele que eu também cito. E são dois códigos fortíssimos, porque ali quando citei “Redoma”, eu estava com o Letieres [Leite], e ele é um homenageado nessa coisa do disco, a [Orkestra] Rumpilezz é muito elogiada pela gente na música “Salve”. Então cria um grau de comunicação de coisas feitas fora, de letras e citações que começam fora do Baiana, a trazer um efeito do tempo. Assim como você vai ver a trilha do filme “Trampolim do Forte” em “Melô do centro da terra”, vai conseguir entender dentro do Baiana como funcionavam essas mensagens. E em “Redoma” você consegue entender a comunicação da letra com o Samba de Lata de Tijuaçú, e a complementaridade da letra já traz pra você um outro sentido, um entendimento. E lá no “Goma Laca” eu citei um trecho de “Redoma” dentro de uma canção. Então já é uma citação à própria canção que viria a sair depois. Era essa a ideia.

TMDQA!: Falando no Manu Chao, sei que ele é francês, mas acho que ele cumpre um papel importante ali em “Sulamericano”, que é trazer um lado latino, cantado em Espanhol mesmo, com o flow muito característico dele mas que remete a toda essa cena rap que a gente tem aqui na vizinhança do Brasil. Por ter uma música com esse nome, inclusive, eu senti uma intenção de assumir a nossa condição de sulamericanos, de latinoamericanos, algo que parece meio relutante pro brasileiro, talvez pela diferença na língua, mas por ser um país continental também, não sei. Enfim, queria saber por que foi importante ter essa participação e essa música, essa provocação no disco. E como veem essa força que a música feita na América Latina está ganhando em nível global agora?

Russo: Acho fantástico. Eu tenho minhas matutagens, de ficar matutando sobre esses assuntos. Concordo com tudo que você falou, e fico vendo como as coisas funcionam. Geralmente o país que a gente mais percebe, principalmente falando de indústria cultural, são os Estados Unidos. A gente vê muito a perseguição dos orientais, e aí surgem bandas de rap com nomes de Wu-Tang Clan, com nomes orientais, o Bruce Lee nas televisões… O tempo que se estão perseguindo os árabes, você via muito melodias árabes nos raps norte-americanos, você conseguia ver todas essas relações. Você encontrava melodias que vinham disso. Me parece um contraponto em relação à destruição, a arte vem ali para fazer esse contraponto, pra transformar em arte aquele povo que foi subjulgado. Então quando você vê a música latina no momento que o Trump está mandando eles se retirarem e a perseguição que a gente viu acontecer, e vêm os mexicanos com força, o reggaeton estourando daquele jeito, “Despacito”, tudo mais, eu não consigo não fazer esse tipo de relação com as culturas latinas e tudo mais. Daí à situação do Manu Chao, daí eu começar a música falando “sou sulamericano/de Feira de Santana/aviso americano/não acredito no Obama/revolucionário”… citando tudo isso, “nas veias abertas da América Latina”, com Galeano… Esse complemento do Sr. Matanza, que é esse personagem que o Manu Chao traz, que é do Mano Negra e remonta a uma época em que ele passou aqui por Salvador e morou aqui, então esse tipo de complemento pra mim beira o inacreditável, da música trazer esse personagem pra essa construção, sabe? A gente nunca imaginava, ele veio e foi uma montagem que traz mesmo esse novo perfil, novo olhar de emancipação de sulamericano, de entendimento. O BaianaSystem vem de uma situação de ter o Ramiro Musotto como nosso mestre, né? É algo do começo. Depois disso a gente veio caminhando, ele tinha uma orquestra chamada Afro Sudaka e montava tudo isso. Então essa consciência sulamericana sempre esteve muito forte no Baiana. Mas nos outros discos, por essa relação muito forte com o samba-reggae, com Bahia-Jamaica, a gente não deixou tão transparente. Mas estava ali, claramente, em “Lucro” – “tire as construções da minha praia, não consigo respirar” – é uma cúmbia, e isso tudo sempre foi muito forte na gente. E isso agora aparece de forma mais destacada, mais clara e o mais claro possível. “Vou traçando vários planos pra poder contra-atacar”, “se a justiça é cega”, em defesa mesmo à sulamérica. É nisso que a gente se enquadra, é isso que a gente gosta, é o melhor território pra nós. É o mais natural quando a gente vai compor coisas assim, a gente está em Salvador e sente o Pelourinho, muito real. E salve Gerônimo.

TMDQA!: Agora, o futuro realmente não demora, porque vocês já estão somando 10 anos de carreira. Olhando pra trás, como você vê o aprendizado e a evolução que tiveram até aqui?

Russo: Falar de futuro pra mim é muito difícil em relação a entender os 10 anos do Baiana. Porque eu olho a idade com o que tem dessa alma de fazer, e recriar e inventividade, e os processos pra gente estão novos. Como eu vejo que ainda tá novo, a ponto da gente conseguir nesse disco ter mais de 60 pessoas nesse disco, e foi um processo tão verdadeiro — não foi participação, elas viveram com a gente, já conheciam a gente e entenderam esse processo — por isso ficou tão intrínseco, a ponto de na música “Água” você não entender se sou eu ou se é Jocafi que está cantando. Então essas participações ficaram tão interligadas, com a Afrosinfônica e todo mundo, eu sinto mais a ideia de aprendizado em relação ao sentimento de manter nova essa vontade de fazer uma música inventiva, que tem um entendimento de diálogos, social, urbano, de todas essas questões e levantar perguntas. E principalmente de uma valorização da cultura brasileira, da música brasileira, da ideia do álbum, do disco, de incentivar o público a decifrar as coisas. Para que a partir disso a gente possa chegar num momento em que as pessoas possam se preparar para as transformações que vêm pela frente, sejam políticas, sejam sociais. Porque a arte faz isso, a arte tem esse sentido de leitura de profecia durante os tempos, você encontra isso na arte e ela consegue fazer isso. E a gente se coloca como instrumento de pesquisa justamente para que aflore na gente poder falar sobre coisas que vêm na frente, que pode ser que aconteçam e tal. Eu tenho visto isso acontecer nas letras de músicas que eu gosto muito, e é isso que faz as pessoas entenderem aquilo como atemporal. Falar aquela frase clássica quando ouve uma música, “nossa, isso aqui é tão atual”. E a gente tem muito o entendimento do ciclo. Desses 10 anos, o que eu posso colocar é que o Baiana evoluiu muito — primeiro por conseguir fazer um samba-reggae dub, como eu tinha te falado (risos) — poder chegar em Londres, fora as coisas técnicas e práticas de sonhos da gente, e de comunicação com um público maior e um organismo só se comunicando. A gente podendo aprender e escrever letras através dessa relação… É o entendimento de um ciclo. Quando termina ali um processo do Baiana — seja um disco, seja um vídeo, um texto, uma arte, uma máscara — é porque está começando um outro processo. A gente entendeu agora esse ponto de estagnar quando você termina o processo. A gente tem um entendimento do ciclo agora bem mais claro, nesse ponto que a gente evoluiu. E no ponto também de poder ter agora tanta gente relacionada, sem nenhuma apropriação, com uma coisa muito clara desses mercados, porque as pessoas que estão com a gente compartilham das mesmas ideias, dos mesmos ideais.

TMDQA!: Aproveitando que você falou sobre esses aspectos políticos da arte… Não sei se você concorda comigo, mas o mero protagonismo do Baiana no cenário musical brasileiro é algo político. Porque música hoje em dia é tida como uma forma de se aproveitar do dinheiro do estado; porque sempre teve orgulho de onde vem, seja de Salvador, seja da África, do Caribe; pelo que vocês cantam, mesmo. Me vem muito em mente você cantando “você tem poder pra mudar o mundo” em “Bola de Cristal”, por exemplo — a música termina e isso fica ecoando. Enfim, essa é uma visão minha, mas queria saber se você também vê dessa forma. Não cheguei a ver vocês se posicionando especificamente a favor ou contra políticos e partidos, mas você acha que o Baiana tem essa importância pra um debate social e racial, além do musical? Esse é um propósito de vocês ou algo que surge naturalmente?

Russo: O Baiana com certeza tem essa influência política em tudo, na poesia, na guitarra, na música que a gente ama, que é o samba-reggae, uma música de resistência. Falou das ruas, tá falando de política; falou do mercadinho de dona Maria, está falando disso; falou da feira, está falando de política; não falou de política, está falando de política. Não quis fazer, está fazendo parte do número de pessoas que não quiseram fazer. A missão nesse lado político, pra mim, está sempre relacionada. O viés político está em toda e qualquer parte da situação. Porém, o Baiana fala sim. O Baiana aconteceu muito nessa coisa do, sei lá… Às vezes as pessoas veem a nossa mensagem poética, forte, com vários desdobramentos e reflexões dentro disso, e as pessoas acreditam que a gente não dá nome aos bois e tudo mais. O Baiana falou Fora, Temer, falou de Marielle dentro de uma TV, então as pessoas já esperam isso do Baiana. Mas o principal agora é abrir diálogo em relação a isso, não o falar por falar. Não são slogans, né? Mas as ideias mais fortes que precisam ser colocadas, a gente coloca sim, nos momentos certos, elas são mais refletidas. Uma coisa que eu concordo com você é que a ideia do Baiana não tem necessariamente um lado político dentro dessa situação toda, mas pra onde o Baiana caminha é de ação. Não do agente, mas de transformar o que faz as pessoas serem daquela forma, e não tentar mudar aquela pessoa, entende? É tentar transformar a visão, o comportamento, e a gente acha que na raiz da questão… Eu acho, na verdade, isso é pessoal meu, dentro do que eu falo no Baiana como minha expressão política e somando às de outras pessoas – porque no Baiana temos muitas pessoas que têm esse potencial e usam isso – é justamente tentar ir no X da questão, no comportamento, no porquê do feito e não muito no feito, que é onde a gente pode somar com pessoas que não têm a opinião igual à da gente. Até porque estamos todos procurando uma resposta, então você tem que estar do lado da pessoa e ser um agente de transformação, até pra você entender também o que levou ela a racionalmente a falar coisas tão absurdas. Esse papel que eu acho que é mais de reflexão agora pra traçar vários planos para poder contra-atacar – mas esse traçar vários planos é muito importante para poder contra-atacar, pra você não entrar nesses meios de manipulação, de correntes, de fakes e tudo mais. É levar à reflexão antes da ação. Então dentro disso, quando você coloca que o Baiana não cita nomes, que não vai e tal, temos sim citado, nesses momentos mais estridentes, como todo o povo, todo mundo junto, a gente fala, também somos porta-vozes, e às vezes a gente transfere, informa, tanto quanto o povo que está ali na frente. Mas chega um momento que a gente precisa mesmo é dixavar esse entendimento para não ficar só no slogan e não ir mais profundo. E principalmente aprender a decifrar junto com público, que é o mais importante. Aprender a ler esses momentos, seja num show, seja nas informações que chegaram na cabeça do público antes de ter determinado show, se é o dia da eleição, se não é o dia da eleição… É muito importante, é um aprendizado, um laboratório que a gente sempre cultiva.

TMDQA!: Queria entender também o que vocês estão pensando pra transpor esse disco pra experiência do show. Acho que todo mundo que viu a turnê do Duas Cidades sentiu esse impacto do ao vivo e como ele ampliou a experiência com o disco. Tinha a sonzeira, claro, mas a parte visual também, a dança e tudo mais. Vocês pensam em manter essa vibe pros shows ou tentar algo diferente?

Russo: Recriar. O Baiana é recriar, sempre. A gente tem vontade de fazer um show igualzinho o disco, sim, quando a gente tiver a possibilidade de fazer isso, com todo mundo que participou e tal. Mas o Baiana vem dessa cultura do sound system, das recriações, letra de uma música no instrumental da outra, instrumental da outra música na letra da outra, canto outra parte, canto o começo da letra de Curumin, vou pra outra rima minha que nem está nessa música, está no primeiro disco. Então isso aí pra mim é onde o Baiana consegue recriar e fazer um adubo melhor pra nascer as próximas canções. As pessoas que já são público de longa data do Baiana já sabe que a gente faz isso, você consegue ver canções desse disco com um vídeo que foi do lançamento do “Duas Cidades” – imagine isso. Quando eu fiz o programa com a Martinelli [Roberta Martinelli, apresentadora do programa Cultura Livre, da TV Cultura], você consegue ver no YouTube, eu cantei “no tempo que a pedra lascada fazia o papel de bala de metal/ não tem diferença do homem moderno pro homem de neanderthal” [cantando versos de “Bola de Cristal”, do novo disco]. Cantei essa letra que eu estava começando a escrever numa viagem que eu fiz para o Chile. No final das contas, é recriação mesmo, a gente vai fazendo em cima do sistema e dos aprendizados que a gente teve com essa cultura de Bahia-Jamaica, né? Pout-pourri do samba-reggae cantado com várias canções naquela levada, um instrumental que você vira o lado e pode cantar um soul, ou um baião, ou um rock, e você vai fazendo aquilo acontecer. Essa é a inventividade que instiga o público que conhece aquela estética. A nossa estética é essa, mergulhada na música jamaicana de recriação, de ressignificação das ideias das letras e é assim que a gente faz o nosso jazz, com colagens diferentes. Isso o público já está ligado, mas a gente tem esse sonho sim, de juntar todo mundo e fazer exatamente igual o disco também, em um momento mais de celebração. Vamos ver como é que vai acontecer. Estamos nas épocas dos carnavais, do verão, então agora é sincretismo bombando, antropofagia na veia, a gente vai misturando tudo. Estou aqui nos ensaios e estou vendo que as pessoas já estão tocando de novas formas, fazendo novas recriações, tirando novos retratos da música pra gente poder ter essas lembranças no carnaval. Vai vir depois do carnaval, vai vir com certeza com uma experiência bem maior.

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