Stéphane San Juan por Nathan West
Foto: Nathan West

Por Nathália Pandeló Corrêa

Chanson e funk. Rhythm & blues e samba. World music e jazz. Encontros tão improváveis como estes povoam o novo álbum Saved By The Drums, lançamento do baterista, percussionista, produtor e cantor francês Stéphane San Juan. Desde 2017 radicado em Nova York, onde toca com Bernard “Pretty” Purdie, nome potente do funk, e com o duo On Fillmore (de Darin Gray & Glenn Kotche, do Wilco), Stéphane reúne no novo disco uma vivência musical e plural que vem de berço.

Seu pai tem ascendência espanhola, nascido e criado na Argélia; e a mãe, de origem alemã-italiana, nascida no Vietnã e criada em Madagascar. Após habitar a cena acid jazz em Londres e um ciclo de quatro anos como integrante da banda da dupla malinesa Amadou & Mariam em turnês mundiais, o músico passou ainda temporadas em Bangladesh e Cuba, aterrissando finalmente no Brasil, onde viveu por 15 anos. Após conhecer Domenico Lancellotti, Kassin e Moreno Veloso, e integrar o núcleo +2, veio de mala e cuia para o Rio de Janeiro em 2002, passando a integrar a Orquestra Imperial, a acompanhar nos palcos nomes como Vanessa da Mata e Adriana Calcanhoto e a gravar com João Donato, Elza Soares e Caetano Veloso, entre outros.

Do alto desses anos de carreira, ele montou um disco sem amarras, com uma versatilidade rítmica digna de um dos maiores nomes da percussão na música popular brasileira, Wilson das Neves, a quem dedica esse trabalho. Enquanto se desdobra entre variados projetos (que incluem a atuação como baterista e percussionista na turnê mundial de David Byrne), o próprio Stéphane San Juan se multiplica em sonoridades variadas, criando híbridos da world music, dos sons cubanos, dos ritmos africanos que foi absorvendo ao longo de sua longa convivência com músicos de todo canto.

Sem dúvida, uma das mais importantes foi com Wilson das Neves, que definia Stéphane como “o francês mais brasileiro que já conheci”. Embora tenha falecido em agosto de 2017, o lendário baterista brasileiro aparece na faixa “Le jour où descendra la favela et que ce ne sera pas le carnaval”, versão da clássica composição do sambista, “O dia em que o morro descer e não for carnaval”. A cada música, a lista de convidados especiais de muitos lugares e idades se estende para criar uma sonoridade intensa e quente, reflexo daquele adolescente que começou a conviver com músicos de países africanos em Montpellier — e nunca mais parou de batucar.

Stéphane San Juan conversou com o Tenho Mais Discos Que Amigos! sobre o novo disco, já disponível nas plataformas de streaming e em vinil através da Silene Records. Confira abaixo:

https://open.spotify.com/album/5RBKhsQMeOD43m3eoNFw9p?si=0K6rYOB1S_uilIIleJXjQg

TMDQA!: Você começou a tocar bateria na adolescência, depois de ser expulso de três escolas. Imagino que essa tenha sido a primeira vez que a bateria te salvou, mas houve outros momentos ao longo da sua carreira em que você retornou às baquetas como uma forma de sanidade, de não perder o foco de quem você é?

Stéphane San Juan: Quando tinha 9 anos de idade, a minha mãe ficou muito doente e foi internada em hospitais psiquiátricos, foi muito difícil para mim e o meu jeito de expressar os meus sentimentos na época foi de ir contra tudo que representava autoridade, o que resultou em várias expulsões escolares por motivos de má disciplina.

Um dia meu pai me levou a uma festa e no primeiro andar havia alguns instrumentos como piano, violão e uma bateria. Sentei ao piano por alguns minutos, peguei o violão trinta segundos e sentei à bateria a noite inteira. Meu pai viu e me ofereceu minha primeira bateria, passei então a descarregar meus sentimentos no instrumento. Foi uma terapia, uma salvação, sem isso provavelmente teria tido problemas maiores com autoridades, justiça, etc. A bateria salvou a minha vida e continua salvando até hoje, ela é a minha terapia, minha melhor amante e a minha mais fiel companheira de vida. O título “Saved by the Drums” se refere também a “Saved by the Bell”, quando a campainha toca e assim salva o boxeador antes de ele cair e perder a disputa.

TMDQA!: A música brasileira tem uma vocação percussiva muito forte, com uma raiz ligada à música africana, com a qual você também tem intimidade. Com a sua vivência em lugares tão distintos ao longo dos anos, que lição você tira das diferenças rítmicas inerentes a cada país? O que nos torna únicos e o que nos torna semelhantes, musicalmente falando?

Stéphane: O tambor tem várias funções. A comunicação, os fraseados rítmicos de cada nação ou povo são uma linguagem usada para poder mandar mensagens através florestas, montanhas, etc. De uma certa forma, foi o primeiro telefone, cada povo com próprios instrumentos e linguagens distintas; o poder de cura, junto com a dança e as bênçãos, é uma parte essencial em rituais religiosos, o ritmo é presente em todo tipos de manifestação como festas, preparação a caça, rituais religiosos, casamentos, enterros, etc. Os ritmos e linguagens percussivas são a assinatura de um povo assim como comida, roupas, danças, máscaras, costumes, arquitetura.

Cheguei no Brasil depois de conviver e trabalhar muitos anos com músicos africanos, na Europa e na África do Oeste, Mali, Senegal, Gana. A música brasileira tem muitas influências dos índios nativos, da Europa, soou familiar para mim porque ritmicamente tem raízes na África que foi se transformando e evoluindo com as migrações dos africanos através da escravidão. Como vieram pessoas de várias etnias distintas, uma mistura aconteceu quando chegou nas Américas e nos Caribes. Mesmo sendo proibido pelos colonizadores escravagistas, uma nova linguagem foi se desenvolvendo e assim nasceram vários ritmos próprios derivados, por exemplo Samba no Brasil, Rumba em Cuba, Jazz nos EUA, etc…

Aprender o Português ou Italiano, Francês, Espanhol será mais fácil para quem já estudou Latim e Grego, da mesma forma tocar. Samba, Jazz ou Rumba é mais fácil para quem já toca música Africana, ressaltando que mais fácil não quer dizer dominar automaticamente.

TMDQA!: Você teve muitos parceiros musicais ao longo do tempo, inclusive aqui no Brasil. Na hora de dar forma a este disco, como você montou o time de colaboradores? O que levou em consideração e o que cada um trouxe de si para o projeto?

Stéphane: Montar o time foi muito natural. Queria ter uma gravação de qualidade, por isso chamei os lendários engenheiros Eduardo Costa para gravar nos estúdios do Kassin, Scotty Hard para mixar e Mike Fossenkemper para masterizar. Os músicos brasileiros que participam desse disco são pessoas com quem convivi e toquei por muitos anos, são todos artistas, compositores que admiro e que sempre me apoiaram. Sempre sonhei de gravar com o grande Armando Marçal e o dueto com o Wilson das Neves foi a ocasião ideal, Pedro Sá, Guilherme Monteiro e Guilherme Lirio nas guitarras é um luxo assim como as teclas do Danilo Andrade e o contrabaixo do Guto Wirtti. Alguns deles, além de tocar, são também parceiros nas composições, Alberto Continentino, Gustavo Ruiz, Kassin, e outros cantam comigo Rogê, Wilson das Neves, Zé Manoel, Zero Telles. Os dois músicos americanos são o cellista Jeffrey Ziegler e o trompetista Michael Leonhart, com quem trabalhei logo depois de chegar em Nova York.

Fiz questão de ter várias gerações representadas, de 23 até 80 anos de idade e escolhi eles porque sabem servir a música ao invés de querer mostrar serviço. Sou muito agradecido a eles pois gosto muito do resultado, nada se faz sozinho e sem eles não teria disco.

TMDQA!: O título do disco é muito evocativo do poder transformador da música. Como você vê a educação musical e o acesso a música hoje? Acha possível transformar vidas com um instrumento nas mãos?

Stéphane: Na minha opinião, a educação musical deveria ser obrigatória para todos, como em Cuba onde se estuda solfejo e piano na escola assim como matemática, história etc. Estudar música é aprender a ouvir o mundo exterior e isso em si já é uma habilidade essencial para progredir e evoluir na vida. O acesso de hoje é maior com a internet com possibilidade de ouvir quase qualquer disco em um click e estudar instrumentos através de vídeos, mas eu prefiro o contato humano, ter um professor ou mestre para nos guiar é muito precioso.

Conheci muitos músicos em trinta anos de profissão e todos tiveram uma experiência transformadora com a música. Eu recomendo a todo mundo a aprender a tocar instrumentos, mesmo só por lazer, nunca é tarde demais para começar.

A educação é a chave da evolução humana e fico sonhando com um mundo aonde todos teriam acesso a educação de graça, o único obstáculo para isso acontecer é a sede de ganância daquele 1% de seres humanos que, no papel, possuem o planeta. Espero que um dia sejam derrubados, quando o exemplo da revolução francesa virar um vírus mundial.

TMDQA!: Você dedicou o disco ao Wilson das Neves e o chama de seu “pai espiritual”. Você já conhecia o trabalho dele antes de se mudar para o Brasil? Pode compartilhar com a gente um pouco do que ele te ensinou ao longo dos anos de convivência?

Stéphane: Conheci o trabalho do Wilson das Neves antes de me mudar para o Brasil como baterista, mas não como cantor-compositor. Tinha o disco em duo com a Elza Soares e algumas faixas instrumentais em coletâneas, como por exemplo “Pick up the Pieces”. Conhecer ele pessoalmente foi uma grande honra, uma iluminação. Ele foi com a minha cara desde o primeiro dia que encontramos, foi num show do João Donato em Copacabana, fiquei muito impressionado vendo e ouvindo ele tocando bateria, me senti atraído pela energia e luz que ele emitia. Ele viu que o que eu queria era aprender, como ele dizia “beber da água”, daí me levou para a escola de samba dele, o Império Serrano, e entrei na bateria, mas me avisou: “Posso te ajudar a entrar, mas para ficar vai ter que ter talento!” Desfilei anos e foi uma revelação e um grande ensinamento social e musical. Ele viu que eu queria evoluir como pessoa e me levou nas cerimônias de Ifa, me apresentou o Babalaô dele, o Zero, que me iniciou e virou meu padrinho. Conviver com um mestre como Wilson Das Neves foi um imenso privilégio, uma viagem no Brasil de várias épocas, me ensinou a malandragem através da sua própria filosofia, como ser humilde com a sua própria criatividade. Se alguém o elogiava sempre dizia “Quem me ensinou sabia”, como não se apegar ao mundo material “Tenho tudo que eu quero porque não quero nada”. Assim como na África, eu não pedia nada a ele, aprendia só o observando e escutando ele falar, prestando atenção a cada detalhe e acredito que ele gostava muito disso. Ele me incentivou a compor e cantar ao me pedir uma letra em francês para uma música dele e virou “Rue de mes Souvenirs”, gravada pela Orquestra Imperial. No show de oitenta anos dele no Rio e em São Paulo, cantamos essa canção juntos, eu em Francês e ele em Português com a versão escrita pelo Chico Buarque. Daí veio a ideia de a gente gravar juntos “O Dia Em Que O Morro Descer e Não For Carnaval”, samba dele com Paulo César Pinheiro. Fiz a versão em francês que levamos para o Paulinho aprovar, ele gostou e gravamos.

Considero a presença do meu mestre Wilson e meu padrinho Zero nesse disco como uma bênção. Ele me tratou como filho e eu como pai, estou eternamente agradecido por tanto carinho e amor, pois graças a ele aprendi a viver melhor socialmente, espiritualmente e, naturalmente, musicalmente. Agora ele vive no andar de cima e tive a chance de ser acolhido nos EUA por outro gigante do ritmo, meu novo guru, o baterista compositor Bernard “Pretty” Purdie. Ô Sorte!

TMDQA!: O álbum tem uma forte verve jazzística, mas sem se prender a um gênero específico. Quais os bônus e os ônus de se dedicar a um projeto tão abrangente em estilos e influências?

Stéphane: Acredito que o Jazz é a forma musical mas livre, permite tudo e de fato é um dos fundamentos deste disco.

No Brasil aprendi a compor canções, mas para esse segundo álbum solo não queria me limitar ao formato de canção e poder extrapolar melodias, temas, queria também improvisar como faço em shows. Sempre fui sincero como pessoa e isso transparece como compositor, viajando e morando em vários países de cultura musical forte, fui de fato influenciado por vários estilos. Como sou francês, escrevo letras em francês e isso é o ponto comum entre todas as faixas, assim como a fonte africana de todos os ritmos.

O ônus é que talvez fique difícil saber em qual categoria colocar o disco numa loja, do ponto de vista de marketing complica um pouco porque o mercado gosta de classificar por estilos, mas o bônus é que com um disco, o ouvinte consegue dar uma volta ao mundo sem sair de casa.

TMDQA!: Esse disco parece que funciona como uma viagem sentimental por tudo que fez você se apaixonar pela bateria e pela percussão. Você acha que esse álbum tem o potencial de incentivar novos músicos e aspirantes a músicos?

Stéphane: Espero que sim, com esse trabalho quero provar que tudo é possível, que sonhos se realizam com esforços, dedicação e fé, por isso temos que ter cuidado com o que sonhamos! Como o tambor, gravar músicas e lançar no mercado é um jeito de se comunicar. Nesse disco quis compartilhar com o mundo exterior a minha experiência de músico com a diversidade dos ritmos e melodias que fazem parte da minha jornada, e também através das letras que são espirituais (Elegua, Tranquille), sobre vivência pessoal (Mon Papa Etait Là, Brise) ou com assunto político (Notre Histoire, Le Jour Où Descendra la Favela…, A Voz Que Não Se Cala).

TMDQA!: Em um mundo cada vez com mais medo do outro, do estrangeiro, você propõe uma música sem fronteiras entre países e ritmos. Você acredita no poder da música para unir culturas?

Stéphane: Com certeza, no meu caso conheci o mundo graças à música. O que importa é o que toca e como toca, o resto não importa. Estou atualmente em turnê mundial com o David Byrne e ele prova isso muito bem, na equipe tem pessoas de vários horizontes no palco como fora do palco, o comentário do público é igual a cada noite: ” é o melhor show que já assisti na minha vida”.

Meu pai veio da Argélia, na África do Norte, e minha mãe do Vietnã, no sudeste da Ásia, eu nasci francês e sempre foi atraído e curioso pelas chamadas diferenças. Sou contra o princípio de fronteiras, a ideologia de raça ou orientação sexual, somos todos seres humanos, almas que vieram aqui embaixo para fazer a espécie evoluir. Como em nosso corpo, que é constituído de bilhões de células, cada um de nós, hoje mais de sete bilhões, forma a Humanidade. A ideia de território se refere à nossa parte mais animal e é um jeito de fazer dinheiro (passaporte, câmbio, taxas de importação, exportação etc). Acredito que no longo prazo a Humanidade terá que abandonar esse conceito, a elite queira ou não. A miscigenação, o problema dos refugiados na Europa já são alguns sinais do começo do fim dessa era. O crescimento de políticos extremistas comprova o medo da mudança que já está acontecendo. Observei que em caso de catástrofe aparece solidariedade e o medo do outro desaparece, talvez alguns terremotos e tsunamis resolveram essa questão, pois não se pode brigar com a Natureza e o nosso caminho só pode ser o Amor.

TMDQA!: O nome do nosso site tem tudo a ver com a nossa relação próxima com a música, que vira uma espécie de amiga em bons e maus momentos. Pra você, qual seria o disco “de cabeceira” de Wilson das Neves, o álbum mais essencial da discografia dele?

Como cantor: “O Som Sagrado Do Wilson Das Neves”

Como band leader: “O Som Quente é o Das Neves” de Wilson das Neves e Conjunto

Como músico: “Coisas” de Moacir Santos

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