E o mato que é bom, o fogo queimou
Cadê o fogo? A água apagou
E cadê a água? O boi bebeu
Cadê o amor? O gato comeu
E a cinza se espalhou
E a chuva carregou
Cadê meu amor que o vento levou?
(Passarim quis pousar, não deu, voou)

 – “Passarim”, de Tom Jobim, 1987.

Há trinta anos, Tom Jobim lançou Passarim, disco repleto de mensagens ecológicas e apelos românticos bilíngues, um disco com uma melancolia coberta por sonoridade ensolarada, fortemente influenciada pelo jazz fusion da época. Um álbum complexo, com camadas e camadas de sentidos escondidas pelos embalos do samba chique e da bossa nova que consagraram Jobim.

Hoje, no esquizofrênico ritmo do nosso 2017, Passarim foi desmembrado, retorcido e reconstruído em um semi-fictício passeio sonoro por um Rio de Janeiro pós-apocalíptico, e rebatizado Am_Par_Sis.

Montado totalmente a partir de samples de Passarim, Am_Par_Sis é o novo álbum do Sentidor – uma das frentes artísticas de João Carvalho, mineiro que há alguns anos se aventura nas texturas da experimentação digital quando não atua como músico em grupos como o El Toro Fuerte ou produtor de parceiros prolíficos como o compositor Jonathan Tadeu. Como Sentidor, João corta, distorce e cola samples em obras que vão da contemplação pacífica ao desapego total por qualquer sentido harmônico, trabalho que eleva a outro nível no novo álbum.

Am_Par_Sis, que sai na próxima sexta-feira (24), é um trabalho especial, dono de uma linguagem própria, envolvido por um contexto próprio. É um disco repleto de narrativa e sombra. Um disco que funciona fora de contexto, numa audição casual, mas que reverbera profundamente depois que compreendemos as intenções de João ao (des)construí-lo.

Troquei uma ideia boa com ele sobre o disco, papo que reproduzo a seguir, logo abaixo de uma pequena prévia de Am_Par_Sis – um vídeo para “O Pássaro Canta Parecido Com A Música Que Fizemos (The Bird Sings Like The Songs We Made)”, faixa final do álbum:

Faixa Título: Qual foi o processo de construção do Am_Par_Sis?

Sentidor: A ideia do disco e a ideia de usar o Passarim surgiram mais ou menos ao mesmo tempo, mas o pensamento inicial tinha mais a ver com o conto do que com a parte musical. A gente tava passando pelos momentos pré-impeachment e acho que foi o começo de um cenário de caos político que tá durando até hoje, né? Eu tava lendo bastante sobre a guerra na Síria e especificamente sobre Rojava, uma região que foi retomada do Estado Islâmico e reconstruída por um grupo Curdo que defende a ideia de democracia direta. Não sei se tudo isso faz sentido à primeira vista, e eu tô sendo superficial com a coisa toda. Mas essa série de acontecimentos foi se ligando na minha imaginação e eu acabei desenvolvendo essa ideia de um Rio de Janeiro pós-guerra, e de um processo de reconstrução que acontecesse ali. No final de contas, eu acho que é um disco cujo tema principal é essa ideia de reconstrução. Porque era o que eu vinha vivendo emocionalmente, porque acho que é o que a gente tá vivendo de alguma forma enquanto sociedade. E porque o sample é exatamente isso, né? Pegar uma música, desintegrar ela de algum modo, e colocar junto de novo, de uma outra forma, com outro significado.

Faixa Título: E por que o Passarim?

Sentidor: Eu passei boa parte da vida sem ouvir Tom Jobim porque sempre associava com algo velho, tradicional. E é claro que, na época que eu parei pra ouvir, eu levei um susto. Porque não é nada disso. O Passarim especialmente é uma das coisas mais malucas e mais atuais que eu já ouvi, me tocou e mexeu comigo pra caramba. Mas acho que existe essa pompa e esse endeusamento dos clássicos que acabam assustando e distanciando a arte da gente que é mais leigo, haha. Eu quase deixei esse disco passar. A minha vontade era de quebrar essa pompa, sabe? Aquela coisa de “Sem deuses, sem mestres”. E aí pra contrapor essa base, eu pus o que eu acho que tem de mais atual, que é musica digital em geral, mas principalmente o funk. Talvez não fique tão aparente porque é um disco bem soturno e lento, mas a minha base de sampling sempre foi meio roubada do funk. E aí a história encaixou toda pra mim: Uns moleques perdidos num Rio de Janeiro pós apocalíptico, reconstruindo uma comunidade fazendo uma música eletrônica-funk-esquisita com um disco do Tom Jobim.

Faixa Título: A sensação geral parece ser a de que o mundo tá prestes a acabar, né? E é louco pensar que a humanidade tá nesse modo desde sempre. Imagina estar vivo no fim da Segunda Guerra, com as bombas nucleares? Isso 70 anos atrás.

Sentidor: Totalmente, cara! Eu fico pirando nesses ciclos. É uma sensação relativamente recorrente né? Toda vez que tem algum tipo de grande mudança. Eu acho que a gente viveu uma década relativamente mais tranquila, mas se a gente vai olhando mais pra trás, esses momentos sempre rolam. É uma coisa do jeito da História mesmo, eu acho… E aí semana passada eu li duas notícias que tinham tudo a ver com as minhas ideias do disco também… Sobre a estátua de Ozymandias que encontraram debaixo duma favela no Egito, e uma outra contando a história da primeira favela brasileira… Então eu acho que a temática tá aí de alguma forma mais ampla.

Faixa Título: E como você vê a forma como os artistas nacionais refletem esse tipo de acontecimento na própria obra? Ao mesmo tempo que tem muita gente engajada, quem tá nas camadas mais comerciais não parece refletir o que tem acontecido.

Sentidor: É complicado né? Eu sinceramente entendo um pouco do silêncio por ser uma questão muito confusa. Eu vejo muita gente com a ideia de fazer “música política”, a coisa toda do “Fora Temer” e como isso virou uma espécie de jargão, até nas camadas comerciais… Eu acho que o importante é que a parada seja sincera, sabe? Que ela diga de algo que afetou a sua realidade, ou a realidade de alguém que você conhece, algo que realmente possa tocar as outras pessoas. Eu não disse uma palavra sobre a conjuntura política atual em si no disco – é um disco instrumental num geral, mas acho que dá pra entender hahahaha – mas acho que tem algo de político sempre que as pessoas se abrem pra outras realidades, pra nossa história, até mesmo pros nossos sentimentos e a nossa cabeça. Acho que o disco é meio isso. lembrar do passado, pensar no futuro, e tal.

Faixa Título: E nesse contexto, o seu disco é interessante porque à primeira vista, se o ouvinte não lê nada sobre ele, essa mensagem nem aparece. Mas a tensão, a melancolia, o baque emocional tá muito presente.

Sentidor: Pois é… Eu gosto dessa ideia de não ter que guiar muito a forma como as pessoas vão sentir o trampo. Sei lá, aqui é diferente, a gente tá conversando sobre e tudo mais. Mas eu tento que os discos do Sentidor funcionem tipo paisagens mesmo, sabe? Eu tenho conversado muito com alguns amigos que trampam com música experimental também com a ideia de música como “ecossistema”. Quer dizer, é uma viagem nossa, mas é como se o disco fosse um mundo bruto que tá lá, pra ser explorado da forma como as pessoas preferirem. O disco sozinho causa um impacto muito diferente do que o disco lido com o conto que tá no “booklet” digital, que por sua vez também é diferente da impressão que as fotografias da Krishna Montezuma passam. Cada pessoa vai ter uma chave de interpretação muito diferente dele, apesar de ter uma base fixa de ideias e sons que geraram o trampo.

Am_Par_Sis estará disponível nos principais serviços de streaming a partir do dia 24, com distribuição nacional pelo coletivo mineiro Geração Perdida de Minas Gerais, e do selo inglês Sounds and Colours no exterior.

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