Depois de abrir as férias pelo Primavera Sound, sobre o qual falei aqui, encerrei a viagem novamente em Barcelona por uma excelente razão: para enfim conhecer, o Sónar Festival, meca dos adoradores da (boa) música eletrônica, realizado desde 1994 em Barcelona com franquias em diversas cidades do planeta. A 23ª edição do festival rolou no último fim de semana, e coincidia perfeitamente com o roteiro da minha viagem. Não tinha porque não ir.

Conhecia o Sónar pela fama e pelas duas últimas edições realizadas em São Paulo: em 2012, com nomes como Kraftwerk, James Blake, Mogwai, Justice e Flying Lotus –  um dos melhores festivais que presenciei no Brasil – e no ano passado, numa versão muito reduzida, de apenas um dia e um palco, com os Chemical Brothers. Vivenciar o Sónar em casa, com toda a glória que o cerca, certamente seria uma experiência incrível e inigualável, e foi. Mas também foi bem diferente do que eu esperava.

A estrutura do Sónar em Barcelona, atualmente, é nababesca. É algo de impressionar a qualquer um, e olha que eu tinha acabado de assistir ao Primavera, outro mamute dos festivais internacionais. Basicamente, o Sónar é dividido em três frentes: Sónar + D, Sónar By Day e Sónar By Night. Não conheci a primeira, dedicada a palestras, conferências e workshops de música e tecnologia voltados para profissionais da área. Mas vivi intensamente as outras duas, as grandes atrações do festival, com uma programação gigante de shows, DJ sets e performances exclusivas.

Inicialmente, eu imaginava que a divisão entre Sónar By Day e Sónar By Night – realizados em dois endereços diferentes – era mera disposição de tempo e de espaço, uma forma de dividir melhor as apresentações para melhor proveito do público. Achei estranho, inclusive, saber previamente de pessoas que só iriam a uma das duas etapas. Na minha pequena cabeça acostumada à ideia ambiciosa de aproveitar sempre o máximo de um festival, comprar um passe para todos os shows seria uma forma de viver a experiência completa do Sónar e de conhecer novos artistas, aquela coisa toda. Mas lá eu entendi o motivo da separação, que revelou-se a bênção e a maldição do Sónar. Explico a seguir:

Sónar By Day

Imagens reais: Oneohtrix Point Never no SónarHall

A photo posted by Guilherme Guedes (@gguedes) on

Enquanto o Sónar By Night rolou somente nos dois últimos dias do festival (ainda bem), o Sónar By Day toma conta da programação completa, em três dias repletos de shows das 13h às 23h. O By Day acontece na Fira Montjuíc, um espaço relativamente próximo ao centro da cidade, com quatro palcos capazes de receber um público grande o suficiente para encher a maioria dos shows, mas pequeno a ponto para permitir um bom trânsito entre eles e uma convivência amistosa entre os milhares de pagantes.

O Sónar By Day foi certamente a minha etapa preferida do festival. Lá era possível ver de bebês (mesmo!) a idosos (ou seria a moda dos cabelos platinados?) curtindo shows quase sempre ótimos, com sistemas de som e luz de altíssima qualidade. Com um palco ao ar livre, dois palcos indoor e um auditório reservado para shows especiais, conectados à programação do Sónar +D, o By Day oferecia uma curadoria artística louvável e uma estrutura eficiente, e não coincidentemente sediou a maioria dos meus shows favoritos do evento.

 

BADBADNOTGOOD A photo posted by Guilherme Guedes (@gguedes) on

Do que pude ver, adorei o live brilhante do David August, o set acalorado da Black Madonna, o downtempo hipnótico do Nicola Cruz, o rap furioso do Roots Manuva e o show do Oneohtrix Point Never, uma bizarrice sem fim que choca, confunde e desorienta, capaz de ampliar o horizonte musical de qualquer um. Kelela e Jamie Woon, sem energia, decepcionaram, mas em compensação fui surpreendido positivamente pelos shows do Dawn of Midi – um espetáculo de virtuosismo introvertido, se é que isso faz sentido – do 65daysofstatic fazendo trilha ao vivo para o jogo No Man’s Sky, e do BADBADNOTGOOD, com repertório firmado no ótimo III (2014) e antecipando algumas coisas do IV, novo álbum que sai em julho.

A questão é que os headliners do festival estavam quase todos agendados no Sónar By Night, então assistir às performances vespertinas quase nunca saciavam o apetite. E foi aí que surgiu minha grande decepção com o Sónar.

Sónar By Night

ANOHNI

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O Sónar By Night é um universo completamente diferente do Sónar By Day. É em outro local, em um conjunto de pavilhões enormes bem afastado do centro de Barcelona, num espaço muito, mas MUITO maior que o espaço onde acontece o By Day. O By Night recebe outros quatro palcos, todos maiores em tamanho e em público que a etapa diária do festival. E é aí que o problema começa.

Quem vai a um festival não deve, de forma alguma, esperar conforto. São dezenas de milhares de pessoas em um mesmo ambiente, o que torna toda e qualquer movimentação confusa, cansativa e estressante. Foi assim em todos os festivais que fui na vida. Mas no Sónar By Night tudo isso é amplificado: a impressão, a todo momento, é que o Sónar cresceu demais, ficou ambicioso demais, e enquanto a etapa By Day é charmosa e convidativa, com uma bela representação do cenário musical eletrônico de vanguarda, a etapa noturna é opressora, mal-organizada, voltada para um público disperso, mais interessado no batidão da EDM que no eletrônico bem alambreado.

 

  Tietando o Four Tet na balada.   A photo posted by Guilherme Guedes (@gguedes) on

Minha primeira decepção foi no show da ANOHNI. O show, mesmo poético e emocionante, não conseguiu reproduzir com fidelidade a intensidade que propõe, e começou com um atraso generoso e som baixo, inaceitável para um palco ao ar livre como o que recebeu a cantora. De lá, fui conferir o novo show do James Blake, extremamente prejudicado por um público desinteressado, com gente demais falando, andando, fotografando, tropeçando, enfim; fazendo tudo menos ver o show. Blake é grande demais para tocar no auditório do Sónar By Day, é claro, mas naquelas circunstâncias quem mais perdeu foi o próprio, cujo show na íntegra foi difícil de tolerar até pra mim, um ávido fã do britânico e do novo disco dele, o ótimo The Colour of Anyhting. Uma pena.

Verdade seja dita: além de tudo, eu estava extremamente cansado, o que dificultou tudo e provou que o Sónar não é feito para ser consumido na íntegra. É humanamente impossível viver com disposição o Sónar By Night depois de dois dias no Sónar By Day. Vi um pedaço do grandioso-porém-levemente-cafona Jean-Michel Jarre, passei pelo SónarCar para ver um tanto do maravilhoso set dançante do Four Tet, curti de longe um pouco do Richie Hawtin e pronto. Entre bêbados desmoronando, tretas entre turistas descamisados e bares superlotados, fui embora.

Na segunda noite, mais esperto, cheguei tarde só para o set do KAYTRANADA, ouvi de longe um pouco do Laurent Garnier e depois do excepcional show do Stormzy pedi pra sair e não vi mais nada. Mesmo cheio de disposição para me divertir, ainda mais na despedida das férias, o show de horrores do dia anterior se repetia, e até conseguir uma água era um suplício. Não dava mais.

Se eu voltaria ao Sónar? Para o Sónar By Day, sem dúvidas. Para o Sónar By Night… Difícil dizer nunca, mas acho melhor evitar. Numa próxima, a boa talvez seja caçar uma das festas OFF Sónar que infestam Barcelona na semana do festival. O fato é que, ao tornar-se o maior festival de vanguarda do mundo, o Sónar não conseguiu resolver as próprias dores de crescimento, e arrisca perder, a longo prazo, tudo aquilo que o fez chegar onde chegou. Torço pelo contrário.

P.S.: a quem interessar, o festival anunciou as datas da edição que rola no ano que vem em Barcelona.

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