Against Me! - Transgender Dysphoria Blues

Against Me! - Transgender Dysphoria Blues

Em maio de 2012, quando foi publicado o artigo na edição americana da revista Rolling Stone onde se assumia transgênero, Laura Jane Grace não tinha a menor ideia de como reagiriam familiares menos próximos, amigos e os fãs do Against Me!, banda fundada por ela quinze anos antes. Laura era, enfim, Laura, e não mais Tom Gabel. A mudança era significativa, principalmente por se tratar de alguém cuja vida foi construída publicamente dentro de uma banda de punk rock. Depois de mais de trinta anos, Laura dava voz, diante de si e incontáveis outros desconhecidos, ao próprio instinto, censurado por conceitos limitados e preconceitos perpetuados pela vida em sociedade. Laura era ela mesma.

Para uns, pode parecer pouco – afinal, é acima de tudo uma decisão individual baseada em um comportamento pessoal. Mas não é. Na era da vaidade, das selfies, das redes sociais enquanto vitrines, Laura deixou os cabelos crescerem, adotou saias, botas de salto alto e blusas sem manga como figurino, sem a menor vergonha ou pudor. E o melhor: Laura compartilhou as mágoas e os anseios de todas essas transformações em Transgender Dysphoria Blues, o sexto álbum do Against Me!.

Transgender nasceu como um álbum conceitual, muito antes da revelação de Laura, no segundo semestre de 2011. O disco contaria a história trágica de uma prostituta transexual, e foi encarado por fãs e integrantes do Against Me! apenas como mais uma adição ao catálogo do grupo, repleto de faixas angustiadas sobre questões sociais, políticas e comportamentais. Seria o primeiro álbum independente da banda desde os EPs lançados antes de Reinventing Axl Rose (2002), estreia do grupo, e uma resposta a White Crosses (2010), considerado excessivamente polido e comercial por fãs antigos do grupo. A temática permaneceu a mesma, mas Transgender virou um marco na carreira do Against Me!, na vida pessoal de Laura, e na cena punk e hardcore, castigada há décadas pela superficialidade das bandas mais populares do estilo.

Apesar de tratar objetivamente da disforia de gênero de Laura e os sentimentos relacionados à questão, Transgender Dysphoria Blues vai além. O foco do álbum não é exatamente a sexualidade e os dilemas relacionados a ela, e sim o desconforto, a sensação de inadequação, de não se sentir parte do mundo ao redor ou do próprio corpo. Com berros furiosos contra o aprisionamento de ideias, Laura escancara o óbvio: não é preciso ser “machão” para rebelar-se contra estereótipos, para quebrar paradigmas e traçar um caminho próprio.

Na faixa-título Laura é precisa: “Você quer que a vejam como mais uma garota, mas eles só veem uma bicha / Eles prendem o fôlego para não adoecer”, e em “True Trans Soul Rebel”, sintetiza o próprio desespero: “Antes de nascer, você já está morto / Você dorme com uma arma embaixo do travesseiro / Você segue pelo caminho óbvio / Abre as suas veias e deixa sangrar / Será que Deus ama o seu coração transexual?”. Por fim, rebela-se, em “Black Me Out”: “Eu não quero ver o mundo daquele jeito nunca mais / Eu não quero me sentir fraca ou insegura / Como se você fosse o meu cafetão / Como se eu fosse a sua puta”.

Obviamente, não é a primeira vez que uma banda ou artista usa a própria arte para subverter os conceitos de gênero. De David Bowie a Lady Gaga, passando por New York Dolls, Ney Matogrosso, Prince, Joan Jett, Queen e Marilyn Manson, não faltam exemplos de ícones dispostos a nos fazer reavaliar nossos conceitos. Na verdade, não foi nem a primeira vez em que o tema foi abordado por Laura, que em “The Ocean”, de New Wave (2007), cantou: “Se eu pudesse ter escolhido, eu teria nascido mulher / Minha mãe me disse que teria me batizado Laura” – apesar do verso, à época, ter sido encarado sem muita seriedade.

Laura tornou-se pioneira por dois outros motivos: em primeiro lugar, ela abriu precedente ao fazer uma mudança tão importante e radical no auge da carreira até então, em vez de firmar-se inicialmente como artista a partir desses questionamentos, a exemplo dos supracitados. E em segundo lugar, Laura sem querer botou em xeque o círculo punk/hardcore, que apesar de dar voz a minorias e teoricamente defender todo tipo de liberdade civil, é dominado por homens, presos em eternos debates sobre quem é mais tradicional e fiel às regras impostas pela “cena”.

Resultado de mais de dois anos difíceis, que custaram dois integrantes à banda – o baterista Jay Weinberg e o baixista Andrew Seward, substituídos respectivamente por Atom Willard e Inge JohanssonTransgender Dysphoria Blues é um dos álbuns de rock mais importantes da década, apesar de boa parte da imprensa especializada ignorar completamente o disco. Transgender é o melhor e mais importante álbum do Against Me!, e é o grito de liberdade não só de Laura, mas de toda uma geração criada por quem aprendeu a rotular a vida em zero ou um, negro ou branco, esquerda ou direita, hétero ou homo, mas clama por libertar-se dessas prisões. É o símbolo de quem vive uma transição intensa e globalizada, onde tudo parece prestes a desmoronar o tempo todo, simplesmente porque ninguém tem a menor ideia do que virá a seguir. É rock feito com ferocidade, energia e algo relevante a ser dito.

Vida longa a Laura Jane Grace.

Nota: 8,5/10

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